Cancro. Quando menos é mais

A opção mais sensata em alguns casos não é tratar, mas antes fazer uma vigilância ativa

Parece contraintuitivo, mas há cancros que não deviam ser diagnosticados e menos ainda deviam ser tratados. Porque sendo indiscutível que o diagnóstico precoce salva muitas vidas, é igualmente certo que o sobrediagnóstico e o sobretratamento são dois problemas que causam muitos danos.

Em 1999, o Governo sul-coreano implementou um programa nacional de rastreio de cancro que incluiu a prescrição, por rotina, de ecografias à tiroide. Em 2011, o número de diagnósticos de cancro de tiroide tinha aumentado 15 vezes, por comparação com os valores de 1993. Mas, apesar da brutal subida de diagnósticos, o número de mortes por cancro da tiroide não desceu. Esse dado fez soar o alerta: o que se julgava ser uma epidemia de cancro da tiroide do país, era afinal, uma epidemia de excesso de exames. As conclusões foram uma lição para todos os outros países desenvolvidos, onde os números de cancro na tiroide estavam a aumentar.

Diz o ditado que “quem procura, sempre encontra”. E isto é especialmente verdade para a tiroide. “Se fizermos ecografias tiroideias à população adulta de forma indiscriminada, podemos encontrar uma prevalência de nódulos tiroideus assintomáticos e clinicamente irrelevantes que pode rondar os 30-60%. A esmagadora maioria destes nódulos – mais de 90% – são benignos e sem interesse de diagnóstico”, refere Hélder Simões, especialista em endocrinologia dos Hospitais CUF Lisboa.

A isso se chama sobrediagnóstico: a deteção de uma doença que não iria, no futuro, trazer qualquer queixa ou dano. “E o excesso de ecografias do pescoço é a raiz do problema”, frisa Hélder Simões. O médico explica que o exame é muitas vezes pedido por rotina e não devia ser. Apesar de 10% dos casos de cancro da tiroide serem muito agressivos, esses casos, que considera darem “má fama” à doença, apresentam-se de forma diferente, por exemplo, com grandes massas no pescoço visíveis e de crescimento rápido. “O excesso de ecografias tiroideias, pedidas de forma indiscriminada, não está a evitar o aparecimento destes casos mais invulgares, e que importaria detetar mais cedo.”

Também na urologia, com a massificação da análise ao sangue do Antigénio Específico da Próstata (PSA), uma parte significativa das lesões hoje detetadas são clinicamente irrelevantes. “Os carcinomas que nunca causariam sintomas e muito menos a morte representam entre um terço a metade dos diagnósticos de carcinoma da próstata”, declara Jorge Fonseca, diretor da unidade de urologia da Fundação Champalimaud, em Lisboa. Não causaria sintomas se não fossem tratados, mas acontece que muitos são. O que conduz a um segundo problema, bem maior: o sobretratamento.

À vezes, o melhor é não tratar

“Cancro” é a palavra que ninguém quer ouvir. Mas uma vez dita, tudo o que paciente quer é ser tratado e tudo o que o médico não quer é arriscar tratar a menos. Então, pode acontecer que faça o oposto, o que também é um problema. “O sobrediagnóstico pode transformar pessoas saudáveis em doentes, por ansiedade e por sobretratamento, designação dada aos tratamentos desnecessários, que não têm qualquer benefício e, frequentemente, causam sequelas, nomeadamente a incontinência urinária e a disfunção erétil”, defende Jorge Fonseca.

Por isso, a opção mais sensata em alguns casos não é tratar, mas antes fazer uma vigilância ativa. Em homens “com uma esperança de vida superior a 10 anos e com carcinomas da próstata de baixo risco, indolentes ou aparentando ser clinicamente insignificantes”, os doentes devem apenas “ser colocados numa cuidadosa vigilância para que, caso o tumor se venha a tornar agressivo, não se perder a oportunidade terapêutica curativa”, mas “evitando o sobretratamento”.

O mesmo acontece, ou devia acontecer, com alguns cancros da tiroide. “Apesar de haver muitos dados que mostram que os pequenos carcinomas, detetados de forma incidental em pessoas assintomáticas, sobretudo nas mais velhas, podem apenas ser vigiados durante longos anos, o destino de muitos destes doentes acaba por ser uma tiroidectomia, a cirurgia que remove totalmente ou parcialmente a glândula”, conta Hélder Simões. O procedimento, detalha, embora geralmente seguro, não é isento de riscos e consequências futuras: pode causar paralisia de corda vocal, problemas em manter as concentrações adequadas de cálcio no sangue e os doentes que removem totalmente a tiroide têm de tomar um comprimido de substituição hormonal o resto da vida.

“Sendo o cancro uma das principais causas de morte e, como tal, uma das doenças mais temidas, é normal que quer doentes, quer médicos pretendam, por princípio, diagnosticar e tratar todos os cancros”, começa por constatar Miguel Areia, gastrenterologista do IPO Coimbra e investigador do Centro de Investigação do IPO Porto. Mas esta máxima geral, também em gastroenterologia, não faz sentido em muitos casos particulares. O médico é da opinião que não vale a pena diagnosticar todos os cancros e que não faz sentido tratar todos os cancros diagnosticados.

Dá um exemplo concreto em relação ao cancro colorretal: numa pessoa com mais de 50 anos saudável faz todo o sentido efetuar o rastreio, em alguém com a mesma idade e patologia cardíaca ou pulmonar e uma clara incapacidade para as atividades do dia a dia “poderá não fazer qualquer sentido rastrear um eventual cancro”. Porquê? “Porque não será possível qualquer atitude terapêutica, dado que os riscos dos tratamentos seriam maiores do que os eventuais benefícios e não trariam uma melhoria da qualidade de vida ao doente”, esclarece.

Também no caso do cancro da próstata os tratamentos curativos devem ser reservados para doentes com uma esperança de vida de, pelo menos, 10 anos. “Doutra forma o tratamento pode ser pior que a doença”, argumenta Jorge Fonseca. “Uma vez que o carcinoma demora alguns anos para metastizar e dar sintomas e a esperança de vida do paciente já está limitada pelo seu estado de saúde, os tratamentos com intuito curativo são desnecessários ou prejudiciais, por ser previsível que, no intervalo de esperança de vida do doente, o tumor não venha a dar sintomas ou que estes sejam paliáveis de uma forma mais vantajosa.”

Os nomes das coisas

A discussão sobre o diagnóstico e tratamento em excesso de alguns cancros estende-se até à semântica. Afinal, o que é um cancro? O que cabe dentro desta palavra? A resposta é menos óbvia do que parece, até porque muda com frequência. Desde há pouco mais de uma década, começou a ser questionado o uso da palavra “cancro” para designar alterações celulares de baixo risco e não invasivas, sendo propostas várias terminologias alternativas, como displasia ou lesão indolente de origem epitelial (IDLE).

“Na gastrenterologia este foi um assunto muito relevante”, garante Miguel Areias. O médico explica que todos os cancros do tubo digestivo se iniciam com uma lesão – normalmente pólipos – que têm alterações celulares habitualmente chamadas displasia. “Essa displasia, se não tratada, normalmente removida por endoscopia, é que vai evoluir para cancro. Durante algum tempo, foi sugerido chamar-se a essas lesões “neoplasias intraepiteliais”, mas o termo “neoplasia” é sinónimo de cancro e criou-se muita confusão entre doentes e mesmo entre médicos não-gastrenterologistas, ficando a noção que todos os doentes tinham cancros e não pólipos.” Regressou-se à denominação de displasia, para evitar confusões e ansiedades.

Estas alterações de terminologia são estratégias para a redução do sobrediagnóstico e do sobretratamento e estão em cima da mesa em muitas especialidades. Há hoje uma discussão em curso sobre retirar a palavra “carcinoma” do diagnóstico de “carcinoma ductal in situ”, uma lesão não invasiva considerada o estádio 0 do cancro da mama, e iguais questões se colocam na urologia. “É compreensível que a palavra cancro, com a carga emocional que contém, promova um comportamento interventivo e o sobretratamento”, admite Jorge Fonseca. O médico salienta que a terminologia “lesão indolente de origem epitelial” ainda não é muito usada pelos urologistas, mas reconhece que “pode ser vantajosa”, na medida em que “tranquiliza médicos e doentes.”

Na endocrinologia, pelo contrário, essas alterações de definição já aconteceram e estão consolidadas. “Pelo facto de muitos dos tumores da tiroide terem um desenvolvimento indolente, permanecendo anos a fio sem qualquer evolução, as classificações têm tentado incorporar estas noções”, afirma Hélder Simões. “Alguns tipos de nódulos tiroideus previamente denominados de malignos – como alguns tumores bem definidos, contidos em cápsulas fibrosas, sem sinais de agressividade – têm sido reclassificados como lesões não malignas. Deixaram de ser designados como carcinomas.” Essas alterações, diz, têm permitido reduzir cirurgias desnecessárias mais extensas, com a tireoidectomia total.

Ninguém quer e ninguém deve arriscar o subdiagnóstico e o subtratamento de cancros que precisam de ser detetados e tratados rápida e agressivamente, mas também é preciso não perder a noção de que, como disse recentemente o médico e investigador Sobrinho Simões, “há muitos cancros que deveriam ser deixados em paz.”