Breaking. Das ruas de Nova Iorque para os Jogos Olímpicos

O anúncio da confirmação como modalidade oficial em Paris 2024 foi o reconhecimento do desporto para lá de uma cultura que há muito respira no nosso país. Os giros sobre a cabeça, os mortais, a dança sem limites saltou do “underground” para conquistar os holofotes mundiais. A pouco mais de um ano dos Jogos Olímpicos, há atletas em Portugal que são esperança. E já estamos no aquecimento. Mesmo que o caminho se adivinhe duro.

Um mapa-mundo numa das paredes da casa onde mora em Londres tem riscados os países por onde já passou em competições. Os cabelos curtos, nuances loiras, o casaco preto fechado até ao pescoço. Aos 30 anos, Vanessa Marina tem tanto de doçura como de garra e ambição. É a maior esperança olímpica que Portugal tem no breakdance, ou melhor, no breaking, o nome oficial da dança nascida no Bronx, Nova Iorque, no meio da cultura hip-hop, na década de 1970, há 50 anos. Do berço da rua, do “underground”, os giros sobre a cabeça, os mortais, as acrobacias de b-boys e b-girls saltaram para os Jogos Olímpicos. Estávamos em 2020 e o anúncio da confirmação como modalidade oficial em Paris 2024 – depois do sucesso nos Jogos Olímpicos da Juventude, em Buenos Aires – era o reconhecimento do desporto para lá da cultura, do estilo de vida.

“Nunca pensei que fosse possível. É muito positivo para mostrar que isto já não é uma modalidade de rua, de marginalidade, como ainda se associa muito.” Na verdade, o breakdance atravessou-se no caminho de Vanessa numa sucessão de acasos. Desde catraia que dança, em Leiria, terra que a viu nascer. Ballet, dança contemporânea, hip-hop. Mas só aos 18, quando se muda para Lisboa para estudar na Escola Superior de Dança, é que um amigo a leva para o mundo do breaking. O parque de estacionamento da estação de comboios do Oriente era o estúdio improvisado que um grupo usava para treinar. Vanessa aprendeu aí mesmo, a ver battles coordenadas num encanto que não mais viria a esmorecer. A tentar e a errar, vezes sem conta.

Está no mesmo fuso horário de Portugal, fala com o coração na boca. Foi parar à capital britânica em 2014, mal acabou a licenciatura em Dança. Levava na mala o sonho nunca cumprido de vir a fazer parte de uma companhia de dança contemporânea. Muitas audições frustradas. “Ao mesmo tempo, sempre me mantive ligada ao breaking, já tinha contacto com pessoas que praticavam aqui, porque tinha participado numa competição, no Porto, e tinha feito amizades.” As ruas de Londres serviam de palco aos treinos e decidiu desligar-se da dança contemporânea, dedicar-se só ao breaking. Foi então que se fez vencedora da final do Reino Unido da Red Bull BC One, a mais famosa competição mundial da modalidade, que acontece desde 2004 com finais nacionais em mais de 30 países. E que Vanessa estava habituada a ver em vídeos. “Foi uma confirmação de que era boa naquilo que fazia e isso pôs-me no mapa das b-girls a nível mundial, foi uma catapulta.” Afirmou-se num universo ainda muito masculino – só há uns anos é que a Red Bull BC One incluiu a categoria de b-girls na competição, o que é revelador de que há cada vez mais mulheres, mas elas ainda são menos do que eles na modalidade.

Vanessa Marina, em 7.º lugar no ranking mundial, é uma das esperanças olímpicas de Portugal. Está a morar em Londres
(Foto: Dean Treml/Red Bull Content Pool)

Voltemos a Londres. O mar de oportunidades fê-la ficar. Tem um part-time num restaurante, dá aulas de dança em escolas secundárias – e para isso muito contribuiu a fama que ganhou na Red Bull BC One inglesa. No tempo que sobra, treina e viaja para competir. Já se mandou sozinha para muitos países. Desde então, venceu as últimas duas Red Bull BC One Portugal e, no ano passado, em Nova Iorque, conseguiu ser uma das atletas a chegar ao palco principal da final mundial. No mesmo ano em que conquistou uma medalha de bronze no Campeonato da Europa. Chama-lhe “persistência, dedicação, consistência”. Viver do breaking a tempo inteiro era uma miragem que está mais perto de se tornar real. Os Jogos Olímpicos têm dedo nisso, as marcas podem começar a despertar para patrocinar atletas, o caldo está a cozinhar-se. Vanessa está em sétimo lugar no ranking mundial e há uma certeza: quer fazer parte do primeiro lote de sempre de b-girls nos Jogos Olímpicos. A ambição não a deixa querer nada menos do que isso.

Porto, epicentro da modalidade

Mas recuemos umas décadas, até aos anos 1980, quando o breakdance explode na Europa. Esteve quase a cair no esquecimento até que voltou a ganhar força em Portugal, no final dos anos 1990, com o surgimento do grupo “Gaiolin City Breakers” (hoje “Gaiolin Roots”), no recreio do antigo Liceu de Gaia, a Escola Secundária Almeida Garrett. Júlio Lisboa, atual responsável do departamento de Breaking da Federação Portuguesa de Dança Desportiva, foi parte da formação inicial ao lado de nomes como MC Mundo e DJ Guze, ambos dos Dealema. Foi aí que a história começou a escrever-se em português, sobretudo a norte, no Grande Porto, epicentro do breaking em Portugal. O antigo Hard Club em Vila Nova Gaia era a casa de muitas battles. E o primeiro campeonato nacional, em 1999, na mesma cidade, abria as portas do futuro.

Pela primeira vez, um grupo de breakdance, feito de b-boys, era remunerado em Portugal, através de atuações, workshops, competições internacionais. A reboque, muitos outros grandes grupos surgiram. Desde “12 Makakos” em Lisboa, até “Zoo Gang” na Maia ou “Momentum Crew” no Porto. E o fenómeno de rivalidades, no início dos anos 2000, entre crews impulsionou uma dança urbana sem limites. De um movimento autodidata, aprendido nas ruas, a modalidade trilhava caminho. “Neste momento, está muito mais estruturado do que nesse início em que havia pouquíssimas escolas de dança com aulas de breaking ou até hip-hop. Era mesmo raro”, recorda Júlio Lisboa. Hoje, há muito mais escolas e professores da modalidade, embora não existam números exatos. A Federação está, aliás, a promover um curso de treinadores oficiais, o primeiro de sempre, que conta 16 inscritos.

O investimento está a começar a surgir, apesar de ainda ser muito parco em patrocínios, o que dificulta o objetivo de Paris 2024. Vamos a números. Há cerca de 200 a 300 praticantes de breaking no país, segundo a Federação. “E o número de federados está a evoluir de dia para dia”, refere Júlio Lisboa. Há 32 vagas (16 para b-boys e 16 para b-girls) a nível mundial para os Jogos Olímpicos. Portugal tem hipóteses? “São pouquíssimas vagas, é muito difícil. Ainda assim, acho que temos hipóteses de chegar lá. Portugal tem poucos atletas comparado com outros países. E mesmo com os poucos que temos conseguimos bons resultados nos campeonatos.” Uma ressalva antes de continuarmos: só existe um escalão no breaking, o absoluto, a partir dos 16 anos.

(Foto: Hugo Silva/Red Bull Content Pool)

A 1 de abril, o Campeonato Nacional – o terceiro oficial que vai acontecer cá -, na Maia, vai decidir os atletas que vão representar o país nos campeonatos da Europa e do Mundo, o primeiro passo rumo aos Jogos Olímpicos. Mas, antes disso, a 17 e 18 de março, acontece a afamada Red Bull BC One Portugal, pela primeira vez em Lisboa, até então aconteceu sempre no Porto. É a final nacional do evento. E embora não seja uma prova oficial (não entra nas contas para os Jogos), “é um evento muito importante na comunidade”. “Durante muitos anos, antes de surgir este lado mais oficial e desportivo da modalidade, quem ganhava a BC One era considerado o campeão do Mundo. E vencer continua a trazer nome, reputação, o que se reflete em apoios e patrocínios”, explica Júlio Lisboa.

A competição do prestígio

Aí, batalha-se um para um, formato que os Olímpicos vão adotar. A competição está aberta a toda a gente que queira aparecer. Max Oliveira, fundador dos “Momentum Crew” e há muito promotor da modalidade, nomeadamente com aulas no estúdio MXM ArtCenter no Porto, vai ser o host do evento. “A BC One é os Jogos Olímpicos da comunidade do breaking. Todos os atletas de elite querem fazer parte. E este ano a grande final mundial vai ser em Roland Garros, em Paris, o que é inacreditável”, exulta. Aos 43 anos, continua a ser um dos nomes mais populares do breakdance em Portugal. Ainda treina. Duas a três vezes por semana, para não enferrujar e continuar “a poder girar na cabeça”. Precisa de voltar bem atrás no tempo para se lembrar de como tudo começou. Tinha ele cinco anos quando, inspirado pela estrela da pop Michael Jackson, começou a dançar. Era gozado pelos amigos, “numa época em que ainda não se falava em bullying”, e acabou a dedicar-se às artes marciais.

Aos 18, numa viagem a Madrid, conheceu uma das crews de breaking pioneiras de Espanha. O resto é uma história sem fim. Os “Momentum Crew” nasciam em 2003, no Porto. Eram dois no princípio, são 14 agora, incluindo uma b-girl. Dos bons resultados em competições internacionais ao programa “Portugal Tem Talento”, que os catapultou para a fama para lá da comunidade do breaking, o fenómeno cresceu. “Com a exposição, conseguimos mostrar-nos, profissionalizar-nos e viver disto.” Tanto que estiveram três anos com o encenador Ricardo Pais no Teatro Nacional São João no projeto “Al Mada Nada”. Ou, mais recentemente, com Luís de Matos no espetáculo “Impossível”. Max resume: “O praticante de breaking tem que ter a preparação física de um atleta e o coração e a alma de um artista. Porque o breaking provém de um meio cultural e artístico”.

Fundador dos “Momentum Crew”, Max Oliveira é um dos nomes mais populares do breaking em Portugal e é hoje um promotor da modalidade
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Olhando para trás, nos últimos 20 anos, a evolução em Portugal é gigante. E o orgulho de ver a modalidade chegar aos Jogos tira-lhe o fôlego. “Perceber que os miúdos que andavam a dar cambalhotas no chão tiveram este reconhecimento é maravilhoso. É uma modalidade extremamente atlética, exigente, disruptiva. O breaking foi na história mundial uma das modalidades mais rápidas a atingir o patamar olímpico.” Mas a luta não acaba aqui. “Os meus pais diziam-me que era doido por assumir isto como futuro. E imagino que isso ainda aconteça.” Só que o patamar subiu. Aliás, Max, que hoje se dedica muito à produção de eventos, está a organizar “a primeira qualificação olímpica em Portugal”. Para lá das competições mundiais e europeias, cujos vencedores terão garantido lugar nos Jogos, haverá ainda cinco etapas de qualificação olímpica para Paris 2024 (que servem para somar pontos para o ranking mundial): Japão, Brasil, França, China e Portugal. “Vai acontecer na Alfândega do Porto, entre o final de agosto e o início de setembro.”

Um b-boy que é esperança

Deeogo Oliveira (nome artístico de b-boy) está, atualmente, em 34.º no ranking mundial. “No ano passado, estava em 25.º”, avisa como quem diz que os dados ainda podem girar. É do Porto e, aos 30 anos, é outra das esperanças olímpicas do país. A vida é um corrupio, entre dar aulas em vários pontos do norte do país, fazer o mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais na Escola Superior de Dança de Lisboa, treinar, competir. A dança apareceu aos nove anos, quando se aventurou contagiado pelo irmão mais velho. “Ele começou a dançar e eu comecei porque ele começou.” Aprendeu em armazéns, nas ruas. “Na altura, olhava para o grupo e eram todos mais velhos.” Do talento, diz que tinha pouco. “Foi a prática que me fez bom na modalidade. O breaking parece muito livre, mas é muito técnico.” E as competições chegaram quando entrou nos “Momentum Crew”, tinha ele 15 anos. Foi aí que “a coisa se tornou mais séria, estar ali era quase como jogar no F. C. Porto”.

Chegava a fazer treinos bidiários, de duas a três horas, entre a vertente acrobática e a vertente criativa. Com 18 anos, ainda entrou na universidade, curso de Multimédia, para desistir logo a seguir e perceber que a dança era mesmo o caminho. Não só o breaking, de que não conseguia viver exclusivamente. Teve de abrir o leque, foi fazer formação, em 2016, em interpretação e criação coreográfica. Simplifica. “Faço outros estilos de dança, nomeadamente dança contemporânea. Sou bailarino e tanto trabalho como coreógrafo como como intérprete em peças de dança, teatro, circo contemporâneo, com várias companhias. Gosto dessa fusão.”

Deeogo Oliveira cresceu no meio do mundo do breaking, mas teve de investir noutros estilos para conseguir viver só da dança. Está na corrida aos Jogos Olímpicos
(Foto: Hugo Silva/Red Bull Content Pool)

Apesar de todos os caminhos alternativos que teve que encontrar, há um ponto assente: “Nunca deixei o breaking. E sempre que não tenho projetos o que faço é breaking, é a minha raiz. É uma coisa que me completa.” Os Jogos Olímpicos são uma probabilidade ainda turva. Já há burburinho, porém acredita que “as coisas só vão realmente avançar, a nível de marcas, patrocínios, federação, depois de os Jogos acontecerem”. Para quem já competiu no Japão, Estados Unidos ou em França, países com força no breaking, a experiência é o ponto forte. “Não estou a treinar mais, estou a treinar melhor. Já não estou para novos mortais, dolorosos para o corpo. Mas consigo chegar longe na criatividade.”

No próximo fim de semana, vai voltar a competir na Red Bull BC One Portugal, que venceu no ano passado na categoria masculina. Vai interromper um tour na Bélgica com uma companhia de dança contemporânea só para estar cá. “Porque é uma competição muito importante.” Mesmo não contando para a qualificação para os Jogos Olímpicos. Aí, para Paris 2024, a expectativa de Deeogo é um trapézio que vai balançando. “Em Portugal, somos poucos mas bons. Só que temos um longo caminho pela frente.”