Joel Neto

BBC Vida Selvagem


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Na semana passada, a história era a de ‘Magogo’, a chefe de um clã de 13 suricatas instalado numa ilha de terra barrenta algures no Pans do Botsuana. Seis adultos e sete crias viviam na mais pura pacatez (caçando, abrindo túneis, catando-se, empertigando o pescocinho à procura de manchas em movimento na imensidão de sal) até uma cobra morder fatalmente uma das fêmeas adultas. Foi quando eu ergui uma sobrancelha: os restantes membros do clã refugiaram-se na toca, mas não sem que ‘Magogo’ designasse um macho para acompanhar a enferma na sua agonia – e ali ficou ele, mimando-a até que expirasse.

A vida da família mergulhou então numa espiral. Preocupada com a cobra, ‘Magogo’ ordenou uma fuga rumo a outra ilha, mas a viagem foi tão mal organizada que se perderam seis dos filhotes. Ocorreu uma zaragata com um grupo rival, porque um dos machos do clã – o parceiro da rainha – se lembrou de ir roubar infantes para compensar os que se tinham perdido, e os rivais arrebanharam as crias todas, as suas e a que restava à família. Foi precisa nova refrega para a recuperar, e, reposta a paz, ‘Magogo’ ordenou uma valente tareia ao companheiro, que só se safou porque, vendo-o exangue, um dos machos que o puniam teve um rebate de consciência e mandou fazer alto, que o rapaz já apanhou o suficiente.

A valentia, entretanto, leva-o ao lugar de consorte. Pelas redondezas andam zebras e abutres, águias e chacais. ‘Magogo’ volta a emprenhar, mas a irmã mais nova, ‘Dragon Fly’, também. É um risco, e a jovem vê-se expulsa do clã. Mas o stress da sobrevivência fá-la perder a gravidez e pedir a reintegração, ao que ‘Magogo’ lhe exige uma vénia e depois a abraça. A chefe vem a dar à luz quatro novas crias, que a irmã amamenta com o leite da sua própria gestação interrompida. O grupo rival ainda quer acertar contas, mas agora o clã já não receia tornar a atravessar os 800 metros de deserto no sentido da ilha original. Aprendeu a trabalhar em equipa, tanto quanto a sua rainha aprendeu a reinar – e portanto hão-de viver felizes todos, não para sempre, mas até ao fim da estação.

Só o facto de tudo isto ser narrado com a voz de Eduardo Rêgo tem a sua magia. Mas a técnica posta ao serviço de cada documentário do BBC Vida Selvagem, que agora eu e o Artur nos sentamos a ver ao domingo de manhã, é impressionante. A mais breve sequência implica dias de gravação, o som é usado com a mesma acutilância com que Hitchcock sonorizava uma cena de chuveiro e, sobretudo, todos os dilemas daqueles bichos parecem humanos: o compromisso para com um moribundo, a inconveniência da impulsividade, a força da cooperação, a nobreza do sacrifício individual, um desejo de perdão que não é maior para o perdoado do que para o ofendido. E o afecto, claro. O amor.

Tanto nos ensinam os animais: a fasquia já vem alta. E não é que eles sejam pessoas como nós, basta que nós sejamos bichos como eles. Henry James, que gostava de narratologia, usava o termo “renderização”: muito mais do que contar alguma coisa ao outro, fazê-lo vivê-la. Foi por isso que passámos o Inverno, eu e o Chico, a ordenar a paisagem à volta do cemitério do Melville, lá em cima na matinha. No dia em que o meu filho quiser sepultar ali o primeiro pássaro que encontrarmos morto no quintal, saberemos que estamos a educá-lo como deve ser.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)