Valter Hugo Mãe

As rendas


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Algumas pessoas próximas lidam ainda com as prestações de compra de suas casas e contam agora como sobem para lá de qualquer decência. Uma amiga, por um bocado de chão que não tem mais de 50 metros quadrados, vai ver sua prestação subir 300 euros. Praticamente, dobra a renda. Uma família aqui de Vila do Conde vê a renda subir 900 euros. Habitar, subitamente, será a única coisa possível. Não sobra para comer ou vestir. Acabam-se todas as coisas, os óculos que eram urgentes, o dentista, a visita aos domingos aos pais que estão em Bragança. Não vai sobrar dinheiro para nada. Na verdade, vai faltar. Cumprida a renda de casa, faltará para tudo.

Esta semana, apareceram os primeiros desesperados. Querem vender livros e desenhos, quadros que ganharam de prenda de casamento, alguns barros de Barcelos, quase tudo muito irrelevante, apenas uma arte terna que se cuida mais por sentimento do que por mercado. Quando não sobra mais nada, o que as pessoas vendem é exactamente o sentimento, como quem procura já não sentir, não estar mais atento, não saber de nada.

É confrangedor que alguém não se acuda nem com vinte e cinco euros. Que um adulto, trabalhador, ainda empregado, não tenha vinte e cinco euros para o essencial e se veja obrigado a abdicar do cântaro de Jorge Barradas ou do galo de Barcelos da Rosa Côta ao qual já se colou o bico. É o regresso ao Portugal da miséria, sem brio nem vergonha, que não basta nem para quem tem emprego.

Tenho vergonha de voltar a este tempo. Encurralados nesta lonjura da Europa, somos sempre mantidos em certa ingenuidade. Acostumados a ter menos, viver pior, parece que qualquer pouco sossego já é a sorte toda. Comparados com a maioria dos países da União, somos postos como mão-de-obra barata, estamos sempre convidados a emigrar, parece não haver melhor destino que o de abandonar isto tudo. É revoltante.

Não é verdade que não possa ser feito de outro modo. Temos sempre políticas que nos protegem quase nada, como se houvesse uma intenção clara de prestarmos vassalagem aos interesses dos poderes estrangeiros. Países mais aflitos do que nós conseguiram, em alguns anos, resultados admiráveis que os tiraram da mira da fome e da emigração. O que falha aqui, então? Que justifica esta cidadania sempre humilhada que não é capaz de apontar o país à prosperidade e à decência para com os seus trabalhadores?

Comprar um cântaro de Jorge Barradas com direito de repetição, foi o que fiz. Quer dizer, quando a pessoa quiser, vem buscá-lo exactamente pelo mesmo valor. Vira uma espécie de penhor. Não quero ficar com o Jorge Barradas de ninguém. Haveria de gostar de ter um que fosse meu. Eis a Páscoa. Cada um ter noção de que, neste tempo que agora aperta, não se pode comprar tudo. Porque parecendo que a oportunidade é perfeita para comprar um pequeno e bonito cântaro, também pode ser como vendemos a alma, se ainda sobra alma a alguém.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)