As refeições em família dos chefs com estrela Michelin

Ninguém a assume como uma “obsessão”, mas é quando a estrela Michelin chega ao firmamento de um cozinheiro que se alcança o alfa e o ómega da satisfação pessoal, profissional e empresarial de um projeto muitas vezes sonhado. A transformação em pratos e experiências da cornucópia de sabores e cores que diariamente bailam nas suas cabeças é tarefa dura. Como se conjuga um quotidiano tão exigente com a família? O que fazem fora do restaurante? O que se perde para ganhar a consagração? Entrámos na casa de quatro chefs com estrela Michelin.

António Loureiro

aCozinha Guimarães

Amor no máximo, desperdício no mínimo

Mal se põe o pé na casa de António Loureiro, 54 anos, sente-se no ar, para lá dos cheiros que já saem das panelas, uma espécie de aura. Nada de esotérico por ali se passa: é apenas o resultado da energia que está pregada em cada um dos membros da família do chef, somada ao carinho que vidra os olhos de António e da mulher, Isabel, quando, a meio da confeção do jantar, selam a cumplicidade com um beijo e à alegria que os três filhos do casal espalham, quase sem intervalos, pela casa. A receita a que António se agarra para amenizar a intensidade dos dias tem um ingrediente principal: o amor.

A um canto da ilha onde se confeciona o jantar, Antero, o filho mais velho (23 anos) que trabalha a tempo inteiro n’aCozinha (o restaurante que deu, em 2019, a estrela Michelin ao pai), despacha com esmero os cogumelos que farão companhia ao arroz. Na ponta oposta, Inês, 12 anos, fatia com delicadeza mais cogumelos. José António, 20 anos, chega mais tarde à conversa, preso que esteve aos livros de Gestão, curso que frequenta no polo do Porto da Universidade Católica.

É Andreia, namorada de Antero, quem atira a primeira acha: “Os horários [do namorado] são chatos”. Os do chef também. Nada que atrapalhe a logística familiar. Isabel, 51 anos, professora no polo de Guimarães da Universidade do Minho, explica como se desfazem os nós: “É bom ter muitos filhos. Ajudam-nos, ajudam-se uns aos outros e, sobretudo, são o motivo para chegarmos a casa o mais cedo possível”.

Os relatos do dia de cada um, as novidades e o debate sobre as dificuldades têm poiso comum: a cozinha, pois claro. “Quando passamos para a sala é tempo de diversão”, diz Isabel. “Ou de tirar uma soneca”, graceja o chef. “Sim, os dias de folga são passados na cozinha”, confirma José António. “Acho que é uma coisa cultural, tipicamente portuguesa”, opina Isabel, que acentua: “O restaurante chama-se aCozinha precisamente por isso: quisemos levar para lá o que se passa aqui em casa”.

Entretanto, vai ganhando corpo a máxima de António Loureiro: “O melhor cozinheiro é aquele que cozinha sem receita”. É o que ele faz: amanha os cogumelos e prepara o estrugido que há de receber o arroz, ao mesmo tempo que espreita as costelinhas estacionadas no forno e recheia com enchidos a couve que servirá de entrada, acompanhada de um (extraordinário) shot de caldo recuperado de uma refeição do dia anterior. Reduzir, até ao limite do possível, o desperdício e aproveitar tudo o que é aproveitável é, de resto, regra indisputável na família. Em casa e no restaurante.

Palato, conversa e golos

Altura para a questão sagrada: no restaurante, manda o chef. E na cozinha lá de casa? “Manda ele. No resto, partilhamos”, diz Isabel, que recebe resposta pronta do chef: “Somos sócios no negócio e na vida”. “Mandamos todos”, completa Antero. Uma democracia, portanto? “Hummm”, retorque José António: “A mãe sempre ‘impingiu’ certas coisas, para o bem e para o mal. O pai só intervém quando é preciso”.

À mesa de jantar, na sala aquecida por uma magnífica lareira, a conversa mistura-se com o enlevo gastronómico suscitado pela comida do chef. Camadas de sabor puxam pelo palato. Nada que interrompa a troca de mimos. “O Antero gosta muito de cozinhar, mas gosta mais de comer”, brinca o pai. “Já o José António prefere comida mais saudável. No Porto, faz jantares para os colegas – e cobra por eles”, diz a rir. “Eu também gosto de cozinhar”, atalha Inês. “Gosta”, confirma a mãe, “mas tem mais jeito para as artes”. (“Golo!”, dispara António. O Vitória entra a ganhar no jogo com o Gil Vicente, coisa que, para um vimaranense nado e criado como ele, nunca é circunstância de somenos.) Outra pergunta inescapável: os problemas do restaurante afetam a vida caseira? Resposta pronta do chef: “Nunca! Quando vai ao restaurante, a Isabel paga. No trabalho, o Antero trata-me por chef. Construímos propositadamente um muro para separar as duas partes. Creio que é esse o segredo do sucesso”. “O restaurante foi o nosso quarto filho. Por isso lhe dedicamos tanto amor. É por isso que separamos sempre as águas”, vinca Isabel. Sobra um problema, identificado por José António: “Quando a minha mãe vai de férias, o frigorífico fica vazio”. “Sei sempre o que há no frigorífico”, responde o pai. “Sim, sim”, brinca o filho.…

(Fim da partida: perde o Vitória. Um desperdício pouco compaginável com a filosofia dos Loureiro. Nada que lhes abale a paixão – pelo Vitória e pela família.)

A refeição
Caldo cozido com couve recheada de enchidos . Costela mendinha assada no forno com castanhas e arroz de cogumelos

Antes da estrela
1987 Primeiro trabalho no restaurante Beira Rio (Guimarães); 1988- 1997 Passa por vários restaurantes de cozinha tradicional; 1998 Abre o restaurante Ruínas (Guimarães); 2004 curso de formação na Escola de Hotelaria no Porto; 2005 Chef executivo de seis Pousadas de Portugal (todas no Alentejo raiano); 2010 Estágio na Quinta das Lágrimas (Coimbra), The Kitchin (Escócia) e Belcanto (Lisboa); 2011 Chef executivo no Hotel Meliá Braga; 2016 Abre aCozinha (Guimarães); 2019 Conquista a estrela Michelin

Descubra as diferenças

Ele £ Ela

Livros
Cozinha | Filosofia

Bebida
Tinto | Cerveja

Refeição
Tripas à moda do Porto | Batatas recheadas com carne do dia anterior

Destino
Praia | Qualquer casco viejo (zona histórica) em Espanha

O pormenor


Por estes dias, António consome as (escassas) sobras dos dias a ler “O cozinheiro dos reis”. O livro retrata a história de Carême, o primeiro chef celebridade, criador do uniforme de chef e a “toque blanche”, a característica touca de cozinha. Carême foi o rei dos chefs – e o chef dos reis (Luís XVIII, Jorge IV, czar Alexandre I). No campo dos molhos fez uma pequena revolução, subdividindo-os em quatro preparados básicos: o bechamel, o velouté, o espanhol (ou molho escuro) e o molho de tomate.


Óscar Geadas

G Pousada Bragança

Em casa do chef “manda” a Geadinhas

Dê-se a volta por onde se der, a voz e os palpites de Joana, 11 anos feitos e uma “carreira” já devidamente programada – “Quero ser médica” -, tomam conta das conversas. A filha mais velha de Óscar Geadas, 45 anos, é um portento de simpatia e uma manejadora de falas. Hão de ter sorte os pacientes que lhe calharem, se o destino que tem em mente se cumprir.

“Geadinhas” para os amigos da escola e para a família mais chegada, Joana é a prematura “chefe” da casa do chef. Estão em preparação os condimentos que darão corpo ao macarrão com carne picada que, depois de polvilhados com queijo, serão acomodados no forno. Pede-se a Joana uma apreciação sobre o pai, e a coisa sai à velocidade de um tiro: “É um ursinho de peluche. Vai do 8 ao 80 num instante, mas passa-lhe depressa”. Óscar sorri. A mulher, Goreti, bancária de 43 anos, assina por baixo a avaliação da filha: “Tem um excelente coração, mas é de zanga fácil”. João Maria, 4 anos, ainda não opina. A brincadeira e os dois cães que vagueiam por ali a pedir atenção ocupam-lhe o tempo que os crescidos e a crescidinha dedicam à conversa.

O chef e a mulher estão a criar uma chef

Quando se conheceram, vai para duas décadas (casaram há 17 anos), Óscar andava pelos lados da Engenharia Alimentar . Foi Goreti que, sabendo do gosto de Óscar pelos tachos, o empurrou para a culinária. Aposta certeira. O marido alcançou o que muitos entendidos do chamado fine dining achavam bastante improvável: conseguir uma estrela Michelin na pacata cidade de Bragança, onde os custos da interioridade atrapalham muito mais do que deviam.

Há que colocar na coluna dos proveitos o trajeto de Óscar, forjado a muitos golpes de coragem e outros tanto de determinação. Verdade que a coisa lhe estava mais ou menos agarrada à pele, uma vez que os pais têm há muito um restaurante em Bragança – O Geadas, no centro da cidade, poiso seguro para quem deseja comer bem (“O leitão que a minha mãe faz é incomparável”, jura Óscar). Mas a conquista também tem peso no lado dos custos. A gestão diária da casa e a logística familiar está por (quase) exclusiva conta de Goreti. E, claro, da “Geadinhas”.

À toa com os talheres

“Em casa ele não mete a colher. Não deve saber o que há no frigorífico”, diz Goreti a rir. “As compras faço-as sempre com a minha filha.” Óscar não chega a contrapor, porque sabe que os factos tendem a destruir os argumentos. Segue à procura de utensílios na cozinha. “Os talheres estão nesta gaveta, pai”, atira Joana. “Bolas: não sei do lugar de metade das coisas em casa”, confessa o chef. Já vai adiantado o macarrão. Óscar atreveu-se a colocar o sal no repasto, o que lhe vale uma (deliciosa) provocação da filha: “Está insosso. Vê-se logo que não percebes nada disto”! “Posso pôr o tomate?”, pergunta o chef a Goreti. “Pede à tua filha”, responde-lhe a mulher. O respeitinho é muito bonito.

A correria tende a amainar aos fins de semana. Embora as saídas dependam sempre da agenda do chef, é nesses espaços que a família busca a tranquilidade oposta à azáfama do quotidiano. “Este fim de semana vamos. Fizeste essa promessa”, cobra Joana. “Temos que ir”, confirma o pai. “Já basta as férias de verão. Quase nunca podemos contar com ele. Vamos com a minha irmã e os miúdos para a praia, ele aparece quando pode”, queixa-se Goreti. Vida dura? “Não é fácil, mas, francamente, não nos podemos queixar muito. Conseguimos ir mantendo uma dose apreciável de harmonia”, frisa Goreti.

Os olhos de Óscar arregalam-se. E voltam a arregalar-se, quando a mulher responde à inescapável questão da segunda estrela Michelin que o chef não esconde perseguir, “embora sem nenhum tipo de obsessão”. “Claro que quero que ele chegue às duas estrelas. Estamos cá para isso”, diz Goreti em tom assertivo. A família é sempre a primeira a provar os menus do chef. “São eles os meus maiores críticos. Quando não gostam, digo-lhes que não percebem a comida”, ironiza o chef. Por falar em comida: o macarrão está pronto. Todos na mesa às 19.30 horas, para que as crianças estejam na cama duas horas depois. Problema: o chef não encontra o individual. “As vezes que ele janta em casa são tantas que nem individual tem.” Quem atirou a “pedra”? A chefe “Geadinhas”, pois claro.

A refeição
Macarrão com carne picada e queijo (a receita passou de geração em geração na família de Goreti, ela própria “apaixonada por massa”)

É que não há volta a dar: seja a conversar, seja a provar, seja a provocar, é Joana quem toma as rédeas

Antes da estrela
1996 Primeiro trabalho no restaurante Geadas (Bragança); 2000 Formação na Escola de Hotelaria de Mirandela; 2003-2008 Trabalha no Geadas; 2009 Oficia no Feitoria (Lisboa); 2010 Exerce na Fortaleza do Guincho (Cascais); 2014 Abre o G Pousada; 2018 Conquista a estrela Michelin

Descubra as diferenças

Ele £ Ela

Livros
Cozinha | Romances

Bebida
Espumante | Vinho branco

Refeição
Tudo, “desde que tenha produtos locais” | Marisco

Destino
Praia | Tailândia

O pormenor
As facas são utensílio indispensável para qualquer chef que se preze. As que Óscar usa, além de eficientes no corte, são lindíssimas. Totalmente artesanais, saem das mãos de Gilberto Ferreira, cutileiro estacionado na idílica aldeia de Aveleda, incrustada no extraordinário Parque Natural de Montesinho.


André Cruz

Feitoria Lisboa

À mesa cabem todas as conversas

O sossego da Quinta das Camélias, metida no interior de Pinhal Novo (Palmela), reconforta qualquer alma. Antes do escarcéu feito pelos gansos e pelos perus quando se encontram para marcar território (o galo, altaneiro, mantém-se imperturbável), ouve-se o zumbido das abelhas, atarefadas que andam a compor as colmeias estacionadas no meio de uma horta biológica impecavelmente tratada. As árvores de fruto libertam uma cornucópia de cheiros. O sol do final da manhã estende-se pela propriedade e solicita poiso numa das cadeiras do alpendre.

Assoma à porta André Cruz. O chef do Feitoria, que aos 34 anos conquistou a sua primeira estrela Michelin, vem de sorriso aberto. Como não? Está onde adora estar, com quem mais gosta de estar, no meio de um oásis gourmet, no sítio que lhe serve de inspiração para muito do que constrói com a sua equipa no restaurante do Hotel Altis Belém, em Lisboa. Um a um, aparecem os nove elementos da família que hão de sentar-se na comprida mesa de almoço. Tila e Saul, avós de Rita, a mulher de André, aproveitam o sol no alpendre. Rita traz Vicente, o filho de cinco anos, pela mão e carrega Duarte no ventre. Na cozinha, já tomada pelo cheiro da muamba, Helena, a mãe do chef, e Manuela, a sogra, trocam opiniões sobre a comida. José Carlos, o pai, e José Mariano, o sogro, chegam mais tarde. Trazem nas mãos uns benditos espargos selvagens . Beatriz, a irmã mais nova que deseja ser advogada, passa os olhos pelos calhamaços de Direito. Não há azáfama na cozinha. O chef supervisiona os trabalhos, mas são a mãe e o pai que deitam mão à mandioca. “É aqui que se vê quem cozinha melhor. Mas a verdade é que, quando o André toca nas panelas, o cheirinho é incrível”, diz Helena, embevecida. “Filho: vê lá se está bom de sal”, pede a mãe. “Está perfeito”, responde André.

André Cruz tem 34 anos e é chef do restaurante Feitoria

Há um ritual.… “O que levo daqui é de uma enorme importância, em termos criativos. Ver as coisas a acontecerem in loco, ter a oportunidade de absorver os inputs da natureza que posso transformar em pratos é uma coisa única”, frisa André Cruz. “Nem sequer tenho que decorar a informação da época. Aqui, é ela que me diz quais são os produtos que estão prontos a ser usados.”

Falhou na bola. E ainda bem…

É também por isso que a família ali se junta ao fim de semana. “É com eles que troco ideias sobre os passos a dar. Foi o que aconteceu quando surgiu o convite” para assumir a cozinha do Feitoria. Nada que tenha atropelado o ritual: “Aqui, depois de uma boa conversa e de um bom almoço, começamos a pensar no jantar”, diz o chef a rir. As conversas à mesa são tantas e tão cruzadas que é preciso séria atenção para apanhar o fio às meadas. É à mesa que o pai se confessa: “Queria que ele fosse futebolista. Ainda o levei ao Cova da Piedade, mas ele sempre teve jeito para os tachos. Provou estar certo”.

É à mesa que o sogro de André puxa os galões: “Isto é tudo muito bonito, mas sou eu que venho dar de comer às galinhas de dois em dois dias”. A mulher agradece: “Ainda bem, caso contrário não estávamos a comer esta, que está tão boa”. “Às vezes isto é uma confusão. Uns querem plantar nabos, outros couves, outros alfaces”, resume a mãe de André. Quem decide? “Ninguém. Depois de almoço, cada um vai para o seu lado fazer o que lhe apetece”.

Sabendo que a família já teve oportunidade de experimentar a comida que André serve no Feitoria, impõe-se a pergunta : a muamba que está na mesa ou o fine dining do restaurante? Responde o pai: “Cada coisa no seu lugar. Mas eu gostei muito da experiência”. Atira a mãe: “Gostaste tanto que comeste tudo. Foram 12 pratos”. André ri. A “estabilidade emocional e a alma revigorada” que o chef leva dos convívios com a família ajudam a encaminhar a logística exigida pelo quotidiano. “Levarmos os dois o Vicente à escola, todos os dias, é uma obrigação que nos impusemos. A partir daí vai cada um para o seu lado”, aponta Rita, produtora de televisão.

É (quase) sempre assim aos fins de semana: a família do chef junta-se no Pinhal Novo para saborear o sossego e a comida que André Cruz supervisiona

“À noite corre tudo a meu cargo. O que me custa mais é cozinhar.” Ninguém diria: Rita fez a bela tarte de frutos silvestres servida à sobremesa. “Quando está em casa, cozinha sempre o André, o que é muito bom. Mau é chegar a casa e não o ter lá, ou jantar fora com amigos sem a presença dele.” Pedem-se qualidade e defeitos do chef a quem melhor o conhece. “Gosta de ajudar os outros, mas é muito teimoso”, detalha Rita. Acozinha exige isso mesmo – carinho com a matéria-prima, teimosia com as construções gastronómicas. Segue o chef no bom caminho, portanto. Sempre com a família ali ao lado.

A refeição
Gambas violeta. Cogumelos, espargos selvagens e ovos estrelados. Muamba. Tarte de queijo, tarte de frutos silvestres e pudim caseiro.

Antes da estrela
2004-2007 Curso de formação na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril; 2007 Trabalha no Bica do Sapato (Lisboa); 2008 Exrrce no VírGula (Lisboa); 2009 Entra no Feitoria (Lisboa); 2014-2015 Viaja pela América do Sul – oficia no Gustu (Bolívia) e no Bogaró (Chile); 2015 Sub-chef no Feitoria; 2022 Substitui João Rodrigues na liderança da cozinha do Feitoria. Conquista a estrela Michelin

Descubra as diferenças

Ele £ Ela

Livros
Cozinha | Romances

Bebida
Sem preferência | Vinho branco

Refeição
Cozido à portuguesa | Bacalhau

Destino
Japão | Brasil

O pormenor

Apesar de alérgico às picadas de abelha – “Tenho sempre os anti-histamínicos à mão, mas reconheço que a apicultura é, para mim, um hobby delicado” -, André passa horas a fio a tratar das 27 colmeias da família. A assumida paixão pela Natureza é mais forte do que os inconvenientes que uma ferroada pode causar.


Vasco Coelho Santos

Euskalduna Studio Porto

560 pratos depois, a estrela é a família

Quase se esgotam os dedos das mãos, quando se contabilizam os projetos em que Vasco Coelho Santos, 35 anos, está metido. O Euskalduna Studio é a sua menina dos olhos (ali conquistou a almejada estrela Michelin), mas, além disso, o chef tem que dar conta do restaurante Semea by Euskalduna, da padaria Ogi by Euskalduna, da Peixaria by Euskalduna, todos no Porto, e do restaurante da Quinta do Seixo, no Douro. Acrescem a empresa de marketing Bastarda, de que é sócio, e o restaurante japonês que abrirá em breve na cidade Invicta. Donde: que milagre(s) faz este portuense de gema e portista de coração para acomodar a vida familiar no resto da vida, sobretudo quando há dois petizes para criar (o enérgico Vicente, três anos, e o tranquilo Vasco, seis anos)?

Tem a palavra Vera, 34 anos, advogada. “Costumo dizer que sou advogada nos tempos livres para poder ser mãe a tempo inteiro.” Quando conheceu o marido, Vera antecipava outro futuro. Desde logo, porque Vasco não mostrava queda para a gastronomia. “É verdade”, confirma o chef. Desistiu de Gestão a um ano de terminar o curso. Caiu a hipótese de assentar arraiais na gráfica que o pai detém. “Não me estava a ver sentado num escritório horas a fio.” E então? “Um amigo desafiou-me para entrar num projeto de restauração que queria abrir. Achei piada, mas não sabia nada de cozinha. Quando transmiti a decisão ao meu pai, ele comentou com os amigos: ‘O meu filho está louco! Quer ser cozinheiro!”.

ilho de chef sabe provar. Vasco, o filho, “repreende” Vasco, o pai: há demasiado sal no arroz. A culpa é do enérgico Vicente: escapou-lhe a mão…

O segredo para fazer tudo está na organização e na gestão do tempo. A logística reclamada pelo dia a dia das crianças fica a cargo de Vera, apoiada na Dona Tina, a empregada: “Deixa sempre a comida pronta, o que é muito bom, porque o meu jeito para a culinária é pouco. Quando muito, socorro-me da Bimby”, graceja. Sempre que possível, o chef levanta-se cedo, para servir o pequeno-almoço aos filhos. A partir daí entra Vera ao serviço.“Faço questão de os levar e ir buscar à escola, para passar com eles todo o tempo possível.” O problema surge aos fins de semana: “Tentamos aproveitar para estarmos com os nossos pais. Mas, entre convívios e festas de aniversários, os miúdos têm uma agenda social mais atarefada do que nós”. Organizar as horas quase em modo matemático é a solução. “Tento arranjar tempo para ir jantar fora com a Vera, pelo menos, uma vez por semana”, lembra o chef. “Verdade”, ratifica Vera. “E também faz programas com os filhos. Quando estão com o pai, eles aproveitam muito.” O jantar do dia, “simples, como os miúdos apreciam”, ganha forma. “É arroz com carne. Vou comer tudo para ficar muito grande”, diz Vicente. À solicitação do pai, é ele que coloca sal no arroz. “Menos, menos, menos”, pede o chef. O irmão decreta: “Está um bocadinho salgado”.

Os vês pelos bês

Euskalduna significa Basco. Trocado o B pelo V, chega-se ao nome Vasco. “Foi uma brincadeira que quis fazer, mas também o reconhecimento da importância que a minha passagem por alguns dos melhores restaurantes do País Basco [ver Antes da estrela] teve no meu percurso”, acentua o chef. Não são muitas as oportunidades que Vasco tem para, à moda do Porto, trocar os vês pelos bês em conversas de amigos. “Quando sabe que vão fazer uma jantarada a que ele não pode comparecer, fica triste”, assinala Vera. Solução: “De vez em quando, faço-lhe uma surpresa. Convido-os para virem cá jantar. É uma festa”. Quem cozinha? “É sempre takeaway.

Tempo de seguir para a mesa de jantar. Enquanto Vera trincha o bife de Vicente, ouve-se um queixume de Vasco. O cansaço carregou-o de torpor. O pai puxa brincadeiras e palavras de incentivo. Com a normalidade reposta, o chef retoma o fôlego e garante: “A estrela Michelin nunca foi uma obsessão. Sempre cozinhámos, e continuaremos a cozinhar, à maneiras das nossas avós, mas com um misto de culturas e de produtos locais frescos”. Vera atalha com um misto de graça e fé: “Não escondo que, sempre que chegava a altura de se conhecer a decisão, eu rezava r a minha mãe acendia velas”.

Vasco confecionou e serviu 560 pratos no Euskalduna até chegar à estrela. As contas foram feitas por Olga, a mais assídua cliente do restaurante. “E batem certo”, reitera o chef. São contas de tirar o fôlego. Ocorre que fôlego é coisa que não falta a Vasco. Um dos chefs mais promissores do Mundo, distinção atribuída, em 2022, pela Academia Internacional de Gastronomia, tem muito caminho para andar. O chef diz-se certo e seguro de conseguir encarar a empreitada apenas e só se nela enquadrar a família. “Quando trabalhei em Lisboa, aproveitava todos os fins de semana para vir ao Porto namorar com a Vera e ver os meus pais. Aprendi que a estabilidade emocional é decisiva. E aprendi para sempre.”

A refeição
Sopa de cenoura. Bifes com arroz de sertã, legumes com pesto e salada,

Antes da estrela
2008 Curso de formação na escola do chef Michel e estágio no Olivier (Lisboa); 2009 Estágio no Tavares Rico (Lisboa); 2010 Estágio no Mugaritz e no Arzak (País Basco); 2011 Estágio no El Buli (País Basco); 2012 Cozinheiro no Pedro Lemos (Porto); 2014 Começa a servir jantares privados; 2015 Abre o Baixópito (Porto); 2016 Abre o Euskalduna Studio (Porto); 2022 Conquista a estrela Michelin

Descubra as diferenças

Ele £ Ela

Livros
Cozinha | Romances

Bebida
Espumante | Vinho tinto

Refeição
Cozido à portuguesa | Bacalhau

Destino
Austrália | Ásia

O pormenor


As estantes de casa estão pejadas de livros de culinária, mas o que impressiona são as centenas de Funko Pops (peças normalmente feitas em vinil que são marcos da cultura pop), com destaque para Bart Simpson. Uma das peças, comprada por por 20 euros, vale agora 700 euros. “Há de ser uma das maiores coleções do género em Portugal”, garante Vasco.