Margarida Rebelo Pinto

As palavras que te digo


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

No princípio era o verbo. E no final também será. As palavras que usamos não só definem a realidade em que estamos inseridos, como nos definem dentro dela. Vivemos de tal forma submersos em expressões importadas e neologismos parolos que quase nem damos por isso. Eu dou. Encanto-me ou desencanto-me com quem as usa com propriedade, ou as abastarda com erros de grafia, ausência de hífenes, abreviações mutiladoras ou inadequação no uso. Poupem-me ao “bjos” em vez de “beijos”, ao “tásse” e a outras trapalhadas linguísticas, isto para não falar da utilização do invasor K em detrimento da digníssima letra Q, sempre acompanhada da amiga U. A grande Clarice Lispector dizia que a palavra é o domínio que temos sobre o Mundo, e o Mundo, convenhamos, não está o melhor lugar.

Na minha infância, Portugal respirava ainda uma certa influência da língua francesa. As meninas da alta burguesia aprendiam a falar francês em casa com uma mademoiselle. No tempo dos meus avós, usar vocábulos franceses era chique: a Luisinha tem uma certa allure, o João tem um ar blasé, cultiva o estilo négligé. Negligé também era um roupão leve e sedutor, entre um véu e uma nuvem que adensava o desejo. E quando a decoração de uma sala era um pouco decadente, dizia-se que era délabré.

Os galicismos caíram em desuso agora, por causa da linguagem empresarial e da tirania virtual, andamos todos aos papéis ou a fazer figuras ridículas, ou ambas as coisas. Passamos a vida em zooms e em briefings, a tentar agilizar e alinhar cenas. Não inventem: budget é um orçamento, call é uma chamada, meeting é uma reunião, deadline é um prazo. Na vida social e amorosa, tudo se complicou terrivelmente. As pessoas conheciam-se através de amigos ou em eventos profissionais, no elevador do prédio, na turma da escola, num café, numa viagem de comboio. Nos dias de hoje os dedos deslizam pelo visor de um esperto telemóvel, vulgarmente chamado smartphone, a isto chama-se scroll. Caso seja na aplicação que dá pelo nome de Tinder, o dedo indicador aprova quando escorrega para a direita e deita fora quando escorrega para a esquerda, até encontrar alguém com quem se faz match (ou super match). E assim se desperdiçam horas, dias e até semanas a dar à tecla em conversetas virtuais, que nem sempre desembocam num encontro a quatro olhos, o qual, quando se dá, é designado como date. E se as coisas não correm bem (quase nunca correm), entra em campo o ghosting, prática que significa ignorar, desaparecer do mapa, e/ou bloquear. Nas redes sociais, onde o bullying é o prato do dia, existe todo um mundo de neologismos bacocos: amigar, desamigar, dar visto, compartilhar, tagar e por aí fora. Vivemos cercados de vocábulos que moldam a nossa realidade. De férias, num resort, não sobrevivemos sem a password da rede wireless, o bluetooth e a cloud, enquanto tentamos fazer um reset. E que tal irmos a zeros, deixar a tecnologia de parte por um par de horas e ler um romance em papel ao som de uma qualquer sinfonia de Beethoven? Acredito que, depois desse par de horas a alimentar o cérebro e a consolar os sentidos de forma saudável, seríamos mais felizes e menos reféns do maldito metaverso que nos embrulha os dias.

É urgente sair deste Matrix infernal, é lá fora que a vida acontece.