As estratégias e os segredos por trás dos saldos

(Pedro Granadeiro / Global Imagens)

É uma oportunidade para as duas partes. Quem vende escoa o stock. Quem compra gasta menos naquela peça que andava debaixo de olho. Não há uma fórmula de cálculo universal, há normas estabelecidas, cada vez mais maleáveis. As estações do ano já não marcam a época, a tradição já não é como era. E as promoções atrás de promoções baralham as regras do jogo. Seja para que lado for, a economia pula e avança.

Beatriz Casais, docente de Marketing na Universidade do Minho, aborda vários aspetos neste mundo dos saldos, esse escoamento de stock, de excedentes de produção por vários motivos, é uma nova coleção que está a chegar, são os limites da sazonalidade, esse fôlego para a economia. “É bom para as empresas que escoam o stock e tiram algum retorno, com menos receita naturalmente.” E não só. “Os saldos também são uma forma de chegar a outros mercados com menor poder económico.” A outros segmentos de público. “Há consumidores que estão muito atentos à époSaldos, saldos, saldos. E o mundo parece que vira do avesso. Tudo mais barato, há que aproveitar, pesquisar o que vale a pena, comprar em loja ou comprar online, aquele artigo que anda debaixo de olho há já algum tempo. Vale ou não a pena? A lei pede transparência a quem vende. Quem compra tem de fazer contas à vida e decidir. Há, no entanto, vários fatores e diversas condicionantes nesta equação. Os saldos existem para escoar stock. Mas as promoções a toda a hora trocam as voltas à cabeça dos clientes. Cálculos feitos, os saldos fazem a economia rolar, apesar dos preços mais baixos. Ponto final.

A questão económica não é um pormenor sem a mínima importância. Hélder Barbosa Ferreira, professor na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, especialista em Marketing e Estratégia, considera que este fator merece a devida atenção. “Poder-se-ia pensar que o aumento das compras a preços mais baixos, na campanha de saldos, se traduz num valor inferior para a economia, mas, na prática, isso não ocorre.” A disponibilidade de ambas as partes, quem vende e quem compra, faz a economia pular e avançar. “Para que isso ocorra, impera que do lado das empresas se alcance eficácia e eficiência no processo, conferindo-lhe disponibilidade financeira para se reinvestir e produzir valor, fomentando um círculo virtuoso, reduzindo o desperdício e obsolescência, e aumentando a produção para satisfazer novas e emergentes necessidades, de modo a produzir riqueza”, sublinha. Saldos são benéficos para a economia, está visto. Com alguma ponderação. Uma campanha de saldos, sustenta Hélder Barbosa Ferreira, deve reger-se “por pressupostos sustentáveis, éticos e de combate ao despesismo supérfluo”. E isto tem o que se lhe diga (e já lá vamos).

Primeiro, as regras. Os saldos têm a sua missão. Daniela Trindade, jurista da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, lembra que os saldos existem para escoar stock. “Há um limite de dias por ano, não deve exceder os 124 dias seguidos ou interpolados”, adianta. Os saldos já não se confinam às estações do ano, como antigamente era habitual. E como se calculam os valores a praticar nos saldos? Não há um valor universal para aplicar, as percentagens são flexíveis. Não há uma máquina de calcular única para todos. Daniela Trindade explica que a regra que existe é que o preço de saldo tem de ser mais baixo ao praticado nos últimos 30 dias. Isso tem mesmo de ser.

Uma peça que estava em armazém pode voltar à montra ou às prateleiras de uma loja. O objetivo é vender o que não é da nova coleção. “O valor dos descontos é definido pelas marcas, leia-se marcas retalhistas, que procuram, através das campanhas de saldos, concretizar os seus objetivos. Não obstante, em outros casos ou modelos de negócio, o valor dos descontos pode ser negociado e coordenado com as marcas dos produtores/fornecedores, dividindo esforços na plena execução da campanha de saldos”, observa Hélder Barbosa Ferreira.

Quem vende tem a faca e o queijo nas mãos. “É o comerciante que decide os produtos que estão em saldos”, reforça Daniela Trindade. E é sempre preciso comunicar à entidade reguladora, neste caso a ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, com aviso prévio de cinco dias, no mínimo, de que vai haver saldos. “Quem não cumpre as regras, sujeita-se a multas que podem chegar aos 30 mil euros em caso de pessoa coletiva.” E a loucura instala-se? Já não é bem assim (e já lá vamos).

Os saldos são uma oportunidade para todos os elementos da cadeia de distribuição, sem exceção, de cima para baixo, de baixo para cima, a hierarquia aqui não importa. Ninguém tem nada a perder, todos saem a ganhar. Para quem compra e para quem vende – pelo menos é essa a sensação. Produtores e retalhistas escoam stock. E não só. Hélder Barbosa Ferreira acrescenta mais vantagens para esses lados: mais receita, mais fluxo de caixa, escoar produtos em fim de vida, fora da estação, fora de moda, sem tração. “Adicionalmente, resolve problemas como a acumulação de produtos menos valorizados em risco de obsolescência, custos de armazenagem e redução da rentabilidade por inerente redução de rotação”, assinala.

Os consumidores também esfregam as mãos. Hélder Barbosa Ferreira destaca quatro fatores que provocam um maior apetite em consumir produtos em saldo. Desde logo, a possibilidade de comprar produtos geralmente inalcançáveis por causa do preço com os devidos benefícios de realização pessoal e de autoestima. Depois, a interpretação associada de poupar a médio prazo, comprando quantidades superiores em saldos para não gastar mais passado hoje, amanhã ou passado algum tempo. Terceiro, a hipótese de comprar presentes para diversas ocasiões. E, por último, sustenta, “aquisição por impulso, de forma irracional ou sem fins utilitários, passível de ser catalogado como consumo injustificado”. “Estes fatores norteiam a forma como os ofertantes definem, desenham e executam a campanha de saldos”, realça. Montras e montras com os descontos chapados em todo o lado. É chamar a atenção, claro está.ca de saldos.” Aqui a tradição ainda é o que era.

É o sentido de oportunidade a funcionar, esperar por aquela peça que de outra forma seria inacessível. Benditos saldos, neste caso, porque há pechinchas que se encontram. “É bom para a economia porque promove o consumo”, salienta a professora de Marketing. A inflação é para aqui chamada, entende-se porquê. “Os saldos ganham especial relevância em tempos de maior constrição financeira, inflação alta, e redução do poder de compra dos consumidores, o que conduz inevitavelmente à perceção de oportunidade, para investir e poupar”, comenta o professor universitário Hélder Ferreira Barbosa.

A canibalização da oferta

Uma coisa são os saldos, outra coisa são as promoções. Daniela Trindade, jurista da DECO, põe os pontos nos is. “Saldos são para escoamento de stock. Promoções são para potenciar a venda de determinado artigo quando quiser.” E aqui a coisa complica-se, há areias na engrenagem, os saldos não são limpinhos, limpinhos. As campanhas promocionais antes e depois dos saldos baralham as contas e refreiam ânimos. Hélder Barbosa Ferreira fala disso com exemplos à mistura. “Na prática, campanhas promocionais como a Black Friday ou Cyber Monday, entre outras, canibalizam a oferta, nomeadamente dos saldos. Inclusive, junto ao Natal, várias marcas usam promoções muito agressivas (exemplo, descontos superiores a 50%) o que enviesa a natureza e o objetivo dos saldos, que ocorrem normalmente no período seguinte.” Hoje são promoções, amanhã são saldos.

Beatriz Casais fala disso também. “O facto de haver promoções ao longo de todo o ano retira sensibilidade do consumidor aos saldos.” Ou seja, há sempre promoções antes e depois dos saldos. E quem compra pode preferir promoções e não saldos. A loucura dos saldos esfriou, em seu entender. “Antigamente, a época dos saldos era fixa, não havia a loucura porque era só naquela altura.” Mas agora as promoções atrás de promoções banalizam, de certa forma, o consumo e atenuam a loucura dos saldos. “Essa sensação de benefício permanente tende a minimizar os efeitos dos saldos no consumidor e esbater essa loucura”, frisa a professora de Marketing da Universidade do Minho.

(Pedro Granadeiro / Global Imagens)

Todas estas mudanças acabam por afetar o posicionamento das marcas, de uma maneira ou de outra. Pode mesmo fragilizá-lo. Beatriz Casais explica. Um produto chega à loja com o preço a que deve ser vendido, fica um curto período de tempo com esse valor na etiqueta e depois começa a baixar, a baixar, a baixar. O consumidor já sabe disso, os momentos em que isso acontece estão na sua cabeça. E o preço é riscado as vezes que forem necessárias. “O que gera uma confusão em termos de posicionamento.” O preço máximo que o consumidor está disposto a pagar, que as marcas sabem qual é, acaba por funcionar como um valor de referência que pode ser puxado para cima para depois descer nos saldos, podendo o preço de saldos ser, na verdade, o valor inicial que estava na mente das marcas como a quantia máxima que o cliente estará disposto a pagar. Parece confuso, mas não é. O primeiro preço na etiqueta pode ser um valor puxado para cima que em saldos é sempre uma descida.

À partida, parece que tudo se mistura, saldos com promoções, promoções com saldos. E não pode ser. “Por vezes, os clientes têm dificuldade em discernir o que é uma promoção de uma campanha de saldos, dada a política de descontos agressiva em ambas as situações, ou de produtos selecionados de uma estação versus produtos exclusivos ‘quase produzidos’ para a campanha de saldos, o que é antagónico ao propósito dos saldos e ilícito”, constata Hélder Barbosa Ferreira. As dúvidas instalam-se e podem travar a eficácia dos saldos, estratégias e táticas das marcas. “Se os clientes ‘sentirem’ que encontrarão, num futuro breve, descontos mais interessantes podem simplesmente adiar a sua decisão de compra.” As dúvidas instalam-se e as perguntas surgem. Os saldos compensam? Não serão engolidos por outras campanhas? As reduções não são todas iguais?

Há um procedimento obrigatório por lei em nome da transparência. “O preço anterior e o preço atual têm de estar expostos para que sejam percetíveis ao consumidor”, avisa Daniela Trindade. Colocar a percentagem do valor de saldo não é obrigatório, embora, admita-se, pode ser apelativo encher montras com o aviso de saldos superiores a 50% ou até mais. O que tem de constar, dê por onde der, é o preço antigo e o preço atual. O consumidor precisa de saber essas informações. Uma das dúvidas mais frequentes é se um artigo em saldos pode ser devolvido e trocado. Pode, garante Daniela Trindade. “A troca é sempre relevante nas dúvidas que nos fazem chegar. Se um artigo tem um defeito que é visível ou já foi usado pode ser trocado”, sublinha a jurista da DECO. O que se aplica transversalmente a todo o tipo de comércio. Nas compras online, os habituais 14 dias para troca, em loja perguntar quais os tempos e procedimentos relativos a isso.

Campanhas e laços de confiança

Os saldos são uma boa opção para escoar produtos e as marcas utilizam várias ferramentas e campanhas ao longo do ano para aumentar as vendas. Quem vende vive dentro da cabeça de quem consome – até porque quem vende acaba por ser um consumidor também. Disponibilizar condições financeiras é uma tática antiga e que resulta grande parte das vezes. A forma de comunicar é fundamental. A disposição geográfica dos artigos também. Nada é por acaso quando se fala na eficácia de uma campanha de saldos.

Seja como for, as marcas devem cumprir as regras estabelecidas, exige-se transparência na forma como comunicam as efetivas reduções dos preços, quais os produtos que entram em saldo. “A transparência foi, aliás, um dos principais objetivos que levou o regulador a legislar sobre o tipo de informação a disponibilizar ao consumidor. Embora pareça pouco claro aos olhos do consumidor, se este for observador poderá compreender em profundidade as práticas promocionais levadas a cabo pelas diferentes marcas e construir ou não laços de confiança”, revela Hélder Barbosa Ferreira.

(Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens)

Qualquer truque menos recomendado tem consequências. “Um truque falacioso, identificado pelos consumidores, pode causar danos irreparáveis na reputação de uma empresa”, alerta o professor universitário. E quem compra não pode facilitar. “Cabe aos consumidores a árdua tarefa de se munirem de informação credível e confiável – preços reais, recomendados, características, benefícios, economias de custo – para se autocontrolarem, designadamente os seus ímpetos impulsivos de compra, de modo a não serem enganados, ludibriados.”

A criatividade é sempre bem-vinda. As marcas, refere Hélder Barbosa Ferreira, precisam de usar estímulos motivacionais criativos para o seu público. Para atrair, despertar interesse, provocar o desejo que leva à ação. “Até porque, apesar das compras planeadas serem mais racionais, na prática, muitas das decisões de consumo são emocionais e impulsivas. E isso revela-se perante as promoções ou perante os saldos.”

Os consumidores têm de estar de olhos bem abertos. Hélder Barbosa Ferreira aconselha a recorrer a plataformas de comparação de preços para avaliar se a campanha vale ou não a pena. Pesquisar antes de comprar, comparar características, benefícios, críticas e recomendações de outras pessoas. Até porque há diferenciais significativos no mercado na mesma indústria e nos diversos concorrentes em loja ou online e, já se sabe, é sempre importante tomar boas decisões. “Recorde-se que o preço de venda recomendado não é idêntico em todos os ofertantes pelo que o montante de desconto não deve ser tido em consideração, mas sim o preço final a pagar pelo bem ou serviço”, diz Hélder Barbosa Ferreira. Convém, portanto, não comparar apenas o preço recomendado e o desconto aplicado, mas sim o preço efetivo final cobrado.

“A análise de stocks nos websites das marcas é também um fator crítico, na medida em que várias vezes os produtos estão anunciados, mas as marcas não têm disponibilidade no ponto de venda físico. A ausência dessa análise pode levar a que um cliente tenha de decidir ‘a quente’ no ponto de venda por uma alternativa”, acrescenta Hélder Barbosa Ferreira. Definir um orçamento familiar ajuda, ajuda bastante, bem como estipular uma determinada verba para um determinado produto. “Ao colocar limites, imperará a racionalização da compra quando emergir o impulso do consumo inconsciente e, muito provavelmente, desnecessário.”

De qualquer forma, as empresas devem monitorizar constantemente as campanhas de saldos para qualquer ajuste que seja necessário fazer e até para adequar o stock à procura específica em cada ponto de venda. Outro mundo são as marcas de luxo. “O luxo para ser luxo não faz promoções, pode fazer saldos durante um período curto”, adianta Beatriz Casais. Luxo que é luxo é exclusivo e não aprecia estas vidas de promoções e saldos. De resto, os saldos seguem a sua vida. Com mais ou menos sucesso.