Valter Hugo Mãe

Arrumar


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Sou reticente a culpar-me de alguma coisa. Tenho sempre a impressão de que vou sanar cada problema com sobriedade e bastante calma. Apenas agora coloco a hipótese de me declarar desarrumado, quero dizer, de tendências acumuladoras e ávidas para lá do saudável. Estou sem método para guardar de verdade. Sou culpado de não saber bastar-me com nada.

Convenço-me de que só transformo os espaços em armazéns compactos porque me falta a biblioteca perfeita, o escritório perfeito, faltam-me paredes para os quadros e armários para as lembranças todas. Sou agarrado a lembranças e vejo valor em tudo, sobretudo, confio na sinceridade das ofertas que me fazem e compadeço-me com a alegria ou ternura com que cada pessoa me traz o mais simples e simbólico objecto.

Começo pelas melhores intenções. Juro a mim mesmo que não trarei mais nada para casa. Nem livros nem porcelanas, nem canetas nem panfletos. Depois, dá-me pena de não ter, de não arquivar, de não poder ler melhor mais tarde, sublinhar, juntar onde tenho outros documentos que se tornam importantes para lembrar ou saber. Tenho pena que as coisas se percam, que as pessoas se percam, que ninguém lhes preste atenção, ao que são e ao que fazem. Penso que guardar suas pistas é fazer-lhes companhia. Tenho horror da solidão e talvez me sinta bastante sozinho também.

Nunca se consegue andar facilmente onde eu próprio aconteço. Quero dizer, há sempre mais um móvel, mais cadeiras, poltronas, as caixas de livros, as peças grandes da Júlia Ramalho, da Júlia Côta, malas para cada tipo de viagem, mais livros, e sacos dos hipermercados com sei lá o quê à espera de escolha e arquivo. O tempo, contudo, é à revelia de grandes cuidados e não ajuda em nada. Já tenho dores de costas e ainda não comecei a arrumar a vida. Estou à espera das obras da casa, da biblioteca perfeita, das paredes, da filha dum raio de uma sala só para escrever e organizar os cadernos de apontamentos nos quais vejo a minha vida inteira.

Vou prometendo a mim mesmo que isto é uma contingência momentânea. Não significa nada. Mas estou com a idade do meu pai, não acuso o juízo de um pai de ninguém. Estou como um mocinho a jurar que farei a cama a partir do outono. O verão é demasiado ansioso para lembrar coisas práticas. Quero é andar na rua e achar que estou penteado. Quero mais, eu quero mais.

O algoritmo descobriu o meu defeito e passa a vida a mostrar-me vídeos acerca de como um espaço desarrumado corresponde a uma cabeça desorganizada. Subitamente, aparecem-me pessoas a mandar fazer a cama, coisa que manifestamente odeio. A conspiração virtual aperta a minha liberdade. Olho para diante e só vejo culpa em gostar de tudo e não querer perder nada. Recuso-me a mudar. Vou assumir tudo sem mudar nada. Não arrumo. Limpo o pó. É o que importa.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)