Arrendamento compulsivo. Será ou não será?

Constitucional ou inconstitucional? Dois direitos em confronto? Um ataque à propriedade privada? Uma tentativa de regular o mercado? Subsidiar a especulação? Garantir rendas acessíveis? O programa “Mais Habitação” esteve em consulta pública até sexta-feira, vai a Conselho de Ministros na quinta, 16. A 1 de abril, há manifestações em Lisboa e no Porto. “Casa para viver” é o mote do protesto.

A crise da habitação estala, a contestação aumenta, o programa “Mais Habitação” é criticado de alto a baixo, o arrendamento coercivo de casas devolutas abana por todos os lados. O Estado quer dar um sinal ao mercado: esta habitação não pode continuar vazia injustificadamente. Tem sido a medida mais atacada. A Direita acusa o Governo de abalar a confiança no mercado e de atacar a propriedade privada. A Esquerda discorda dos benefícios à banca e das vantagens aos proprietários. O direito à propriedade de um lado. O direito à habitação do outro. Será mesmo assim?

O Governo debita as suas intenções. Arrendar para subarrendar a preços acessíveis, domesticar o setor, aumentar a oferta, dinamizar o mercado, travar a especulação. O presidente da República, no seu primeiro comentário público, usou um ditado. “O povo costuma dizer que só se sabe se o melão é bom depois de o abrir. É preciso abrir o melão”, disse. O melão já está aberto. O programa esteve em discussão pública até sexta-feira e estará no Conselho de Ministros na próxima quinta. A 1 de abril, há manifestações pelo direito à habitação em Lisboa e no Porto, que junta associações, coletivos, ativistas.

O assunto ferve. Como se resolve a grave crise da habitação? Chovem críticas, abundam perplexidades, duvida-se da aplicação prática. Se o Estado não cuida dos seus edifícios devolutos, que nem sabe quantos são, como quer cuidar das casas dos outros? Muitos apontam o dedo. Onde está o exemplo? A proposta que mais frenesim está a causar, já prevista na lei, tem exceções, não se aplica a casas de férias, a casas de emigrantes e de pessoas deslocadas por razões de saúde, profissionais e formativas, a casas cujos proprietários estão num equipamento social, como um lar ou a prestar cuidados permanentes como cuidadores informais.

A medida não convence a Associação Nacional de Proprietários (ANP). Ter uma casa devoluta para arrendar e não poder escolher o inquilino não faz sentido para António Frias Marques, presidente da ANP. Se o arrendamento coercivo avançar, recorrerá à justiça nacional e internacional. “Só uma mentalidade muito longe do que é a idiossincrasia do povo português pode propor uma coisa destas”, refere.

Frias Marques vê duas conceções diferentes. “A propriedade é do dono que pode fazer o que quiser, mediante determinadas regras. E há um grupo que acha ‘eu tenho cá uma ideia na cabeça e eu é que lhe vou dizer o que deve fazer e quem vai meter na sua casa’.” Há direitos e há ideologias. “A minha liberdade acaba quando começa a liberdade do outro e há quem ache muito bem entrar pela casa dos outros. O que é grave é terem-se lembrado disto”, remata.

O constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, professor, ex-deputado do PS, considera que se está a fazer um “aproveitamento puramente demagógico” do arredamento obrigatório das casas devolutas que, em seu entender, não deixa de ser o que é, um arrendamento, uma situação provisória com compensação ao proprietário. “É aproveitamento demagógico colocar-se a tónica numa questão que é uma situação de recurso, de última análise, uma medida que tem largos antecedentes”, comenta. Usada antes e depois da ditadura, no Estado Novo e na democracia, nos tempos da vida dura antes do 25 de Abril, por todos os governos da Esquerda à Direita. “Não tem nada de novo numa prática legítima e obrigatória dos estados de direito.” A obrigação do Estado intervir em defesa e segurança de bens e pessoas sempre existiu. Por isso, defende ser demagógico e “absurdo” falar-se em ataque ao direito à propriedade privada. “O direito à habitação e o direito de propriedade estão em permanente diálogo desde sempre.” Não há qualquer confronto, em sua perspetiva.

“Os edifícios para habitação, para utilização, que temos construídos, não são para enfeitar as ruas – para isso temos as estátuas, os jardins, os parques, as fontes”, afirma António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL). Casas vazias são casas sem gente. “Se o que foi construído para ser utilizado não está a ser utilizado, não está a contribuir quer para a economia, quer para a função social para que foi construído”, acrescenta.

Há situações e situações, avisa. Casas vazias por falta de manutenção, por falta de dinheiro dos proprietários, por conflitos de herdeiros. “Há um conjunto de fatores que podem justificar prédios não utilizados, mas a administração pública tem a obrigação de intervir para resolver o assunto. Não é nenhum escândalo, nem um ataque à propriedade. O que está aqui em questão é utilizar o que existe.” O resto, prossegue, “são desvarios para desviar as atenções”.

Haverá melhor inquilino do que o Estado?

Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), advogado e professor de Direito, está preocupado com o arrendamento coercivo, aconselha os associados a impugnar qualquer movimentação nesse sentido, garante que recorrerá à justiça nacional, aos tribunais europeus, ao Tribunal dos Direitos Humanos se necessário for. “Afinal, o Estado vai mesmo entrar pelas casas dentro, não é como disse o primeiro-ministro numa entrevista.” É uma ideia que não engole. “Não é apenas inconstitucional, como veremos, mas é uma verdadeira violência, um atentado aos direitos humanos.”

Menezes Leitão recua a 1975, a Vasco Gonçalves, aos arrendamentos feitos pelas câmaras, e encontra demasiadas semelhanças. “É uma lei decalcada a papel químico”, repara. “O que se verificou, na altura, é que proprietários ficaram sem as suas casas toda a vida.” “É uma situação violentíssima, estar a colocar gente dentro de uma casa sem que o proprietário conheça, ocupar património alheio sem consultar o próprio”, sustenta.

Há, no entanto, quem não se importa de arrendar ao Estado. Paulo Bastos arrendou o seu T3, em São João da Madeira, à Câmara. Vender não fazia parte dos planos. O programa municipal arrendamento para subarrendamento surgiu na altura certa, no ano passado. Fez cálculos, pesou prós e contras, assinou contrato com a Câmara, que trata do subarrendamento a famílias candidatas a habitação social. Ana Bastos, a filha, tratou-lhe da papelada, o contrato foi assinado em dezembro de 2022.

“O nosso inquilino é a Câmara e a Câmara não foge, chega ao dia certo e faz a transferência”, realça Ana Bastos. Há dores de cabeça que se poupam. Lidar com atrasos nas rendas, eventuais processos judiciais que implicam pagar a advogado, a incerteza de acertar ou não no inquilino, como ficará o imóvel depois de arrendar. Ao fim dos cinco anos de contrato, renováveis mais uma vez, a Câmara tem de entregar a habitação tal como estava. E o programa isenta dos 28% a pagar em sede de IRS.

Os 4,70 euros por metro quadrado acabam por compensar. “Fizemos essas contas e, para nós, fez toda a diferença”, adianta Ana Bastos. “Haverá um inquilino de maior confiança do que uma câmara? Não precisamos de ir lá tocar à campainha para que nos pague a renda, não nos vai entregar o apartamento destruído.” Tudo na balança, vê vantagens. “Acaba por ser um bom negócio, o valor da renda não é assim tão mau e, no fundo, também é uma ajuda a quem precisa de casa.”

São João da Madeira mostra que é possível, de forma livre, não imposta, arrendar ao Estado. O regulamento do recente programa de arrendamento para subarrendamento foi feito de raiz, o objetivo é celebrar 20 contratos em dez anos, há três assinados deste outubro do ano passado, o quarto deu entrada há duas semanas. É mais um instrumento para fazer face à carência habitacional no município com 975 alojamentos vagos, segundo os Censos de 2021, menos do que os 1242 registados em 2011.

Paula Gaio, vereadora da Ação Social, Inclusão e Habitação da Autarquia sanjoanense, destaca várias vantagens, desde dar resposta à lista de famílias inscritas na habitação social, à diminuição do número de casas sem utilização, ao pagamento que não falha, à isenção no IRS. “O município é uma pessoa de bem, não vai ficar a dever”, destaca. Mas deixa um aviso: “Isto dá trabalho, atender os senhorios, esclarecer as dúvidas, fazer o contrato de arrendamento, explicar esta e aquela cláusula.” Não é à vontade do freguês.

Em 2021, segundo os Censos do Instituto Nacional de Estatística (INE), havia 348 097 alojamentos vagos para venda ou arrendamento no país. No segundo trimestre desse ano, e face ao período homólogo, o número de novos contratos de arrendamento subiu 49,3%, contabilizando um total de 20 568. Na última década, o valor das rendas subiu 28% e o valor das casas 80,5% (acima dos 18% nas rendas e 48% das casas na União Europeia).

A venda de casas devolutas não é o grosso do negócio do imobiliário. O arrendamento também não. Dos vários contactos feitos pela “Notícias Magazine”, percebe-se que este setor não tem muita expressão, que os proprietários de casas devolutas são discretos, querem vender e não arrendar, falam de licenças demoradas, que as câmaras deviam tratar de habitações que estão a cair. São casas devolutas, nas mãos de agências imobiliárias, que não querem cair no arrendamento coercivo.

Há pontos sem consenso, a constitucionalidade é um deles. Marta Vicente, professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica, onde leciona Direito Constitucional, nota que o direito de propriedade é um direito especial que tem duas faces, dois alçapões. Uma é o que não está na Constituição. “O Parlamento tem muita margem de manobra para legislar o conteúdo do direito de propriedade”, aponta. Outra é o direito puro e simples, como outro direito, liberdades e garantias.

Ana Bastos e o marido trataram da candidatura para o pai de Ana arrendar um T3 à Câmara de São João da Madeira. E fazem um balanço positivo de ter a autarquia como inquilina
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

“A questão é em qual destes alçapões a medida vai ser enquadrada”, assinala. Se for no segundo, “a análise vai ser mais exigente”. Para Marta Vicente, restringir a liberdade de dispor de um bem, associada à liberdade de estabelecer um contrato, não significa que seja inconstitucional, ou obrigar a vender uma casa por não realizar obras seja uma medida mais agressiva do que outras que já existem. “O legislador tem um problema muito sério para resolver”, conclui.

O fenómeno não é novo, a preocupação sempre existiu

Em 2021, de um total de 5,9 milhões de alojamentos familiares clássicos recenseados, segundo dados dos Censos, 69% são de residência habitual, 19% de residência secundária ou sazonal e 12% encontravam-se vagos, o que equivale a 723 215 unidades, mais de 15% a necessitar de reparações profundas. Nos Censos, não existe o conceito de casas devolutas, os alojamentos não ocupados como residência habitual são classificados como residência secundária ou uso sazonal, vagos para venda ou arrendamento e vagos por outros motivos.

Sónia Alves, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, geógrafa, mestre em Planeamento do Território, doutorada em Sociologia, retém um número. “Só 69% do nosso stock de habitação é permanentemente usado. Este valor não tem comparação com a maior parte dos países desenvolvidos da Europa, onde as preocupações ambientais, e com os impactos associados à construção e manutenção de infraestruturas públicas, têm levado à opção por modelos de urbanismo da cidade compacta, que procura incentivar a colmatação de espaços e edifícios que não estão a ser usados.” E o peso dos alojamentos vagos, salienta, é muito maior do que na maior parte dos países do norte e centro da Europa.

A investigadora olha para o arrendamento obrigatório de casas devolutas como uma medida contra a retenção de habitação, com contrapartidas. “Esta medida de regulação deve ser entendida no contexto de um pacote mais vasto de medidas de incentivo (por exemplo de subsídios e isenções ao arrendamento acessível) que exigem dos senhorios que as casas sejam arrendadas no mercado ou ao Estado, que depois as vai subarrendar a um preço de renda acessível.”

A preocupação com casas devolutas sempre existiu. Lisboa lidera o número com 47 748 alojamentos vagos, segundo os Censos de 2021, dos quais 21 749 estão para venda ou arrendamento, menos do que os 50 751 registados uma década antes, nos Censos de 2011. O Porto tem sensivelmente menos de metade, 20 270 ao todo (menos do que os 25 833 de 2011), apenas 9610 para venda ou arrendamento. Lisboa e Porto lideram esta lista.

A diferença é alguma entre norte e sul, litoral e interior. Braga tem 7772 alojamentos vagos em 2021, menos do que os 10 634 de 2011, e menos de metade, 3935, para vender ou arrendar. Bragança aumentou o número de alojamentos vagos em dez anos, de 1591 em 2011 para 2400 em 2021, de momento com 1147 para arrendar ou vender. Coimbra também aumentou de 11 752 para 15 854, tal como Évora de 3618 para 4304, Viseu de 6661 para 6858 e Castelo Branco de 1127 para 1649.

Na Madeira, o número também subiu ligeiramente: de 17 572 em 2011 para 17 979 em 2021 com 9139 no mercado de venda ou arrendamento. Aveiro tem 4616 alojamentos vagos, em 2011 eram mais 341. Sintra continua com muitos vagos, 17 035, mas uma diminuição significativa, tendo em consideração os 23 132 de 2011 – ainda assim tem 6866 para venda ou arrendamento. Cascais também diminuiu, não tão expressivamente, de 13 684 para 11 197, com 5281 no mercado. No continente, Barrancos é o concelho com menos alojamentos vagos, 144, segundo o último Censos. Nos Açores, Corvo tem apenas 47 vagos, Laje das Flores 194.

Sónia Alves aponta alguns fatores que explicam a elevada percentagem de alojamento vagos, como mudanças relacionadas com o mercado de trabalho e a perda de população. “O problema da habitação vaga também é o resultado de políticas, tipicamente das que bonificaram a compra, facilitaram a expansão dos perímetros de construção em detrimento da reabilitação e incentivos ao arrendamento”, observa. O olhar nesta realidade não é de agora. “Mas existia sobretudo com o segmento de edifícios antigos degradados que estavam a contribuir para o declínio dos centros históricos, que perdiam residentes e atividades a um ritmo sem precedentes, num contexto que se apoiava sobretudo a aquisição, não a reabilitação e o arrendamento”, recorda Sónia Alves, que se lembra de um dos poucos programas que existiu para apoiar a reabilitação, o Regime de Reabilitação de Imóveis Arrendados (RECRIA), implementado entre 1988 e 2011, que também apoiava investimento em devolutos, nos edifícios onde havia pelo menos um contrato antigo. Fizeram-se planos de intervenção, contactaram-se proprietários descapitalizados pelo congelamento de rendas, inquilinos com baixos rendimentos. A taxa de execução foi baixa. Segundo Sónia Alves, devido ao modo como o programa foi inicialmente desenhado. “O investimento requerido aos senhorios era desproporcional face ao retorno que podiam esperar das rendas, e/ou face à sua capacidade financeira. Um outro obstáculo teve a ver com a burocracia e nas respostas dos processos administrativos que eram demorados e dissuasores da intervenção privada.” Em Lisboa, lembra, sobretudo no centro histórico, a Câmara assumiu a promoção direta da reabilitação perante a incapacidade ou recusa dos senhorios em fazerem as obras para as quais eram intimados. Retiraram-se conclusões de tudo isso. “As políticas podem efetivamente influenciar o comportamento dos atores, mas os resultados dependem muito dos incentivos à ação dos privados e das câmaras”, revela Sónia Alves.

Apoios nas mãos do Estado ou do mercado?

O que se passa noutros países? A posse administrativa de casas devolutas existe na Dinamarca e nos Países Baixos. No primeiro, o município tem o poder de obrigar o proprietário a colocar a casa no mercado de arrendamento, caso esteja vazia por mais de seis meses. No segundo, os proprietários têm de comunicar às autoridades municipais sempre que um imóvel de habitação fica vazio, os prazos e as regras dependem de cidade para cidade. No município de Amesterdão, por exemplo, a casa não pode estar vazia por mais de dois meses, os proprietários são obrigados a comunicar às autoridades sempre que um imóvel residencial fica vazio, caso contrário, ficam sujeitos a multas entre os 4500 euros para privados e os nove mil para empresas.

No Reino Unido, as autoridades locais podem tomar posse de uma casa vazia há pelo menos seis meses. Em França, não há arrendamento coercivo, o preço das rendas é altíssimo, 58% das casas são propriedade de quem lá mora, 24% moram em espaços arrendados, 18% é habitação social. Irlanda acaba de lançar um plano para ocupar compulsivamente as habitações desocupadas. Na Alemanha, as cidades podem aceder a financiamento para responder ao problema dos alojamentos vagos.

Em Portugal, Menezes Leitão fala de “prazos curtíssimos”, notificação em dez dias, habitação arrendada ao fim de 90. Identificada uma casa devoluta, o proprietário recebe uma proposta para celebrar um contrato com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). Proposta não aceite, é dado um prazo, ainda não definido, para dar uso ao imóvel, se não acontecer, o Estado pode arrendar o imóvel de forma forçada. “O esquema está montado da perspetiva que não se pode recusar.”

“Se as pessoas não arrendam as casas é porque não confiam no mercado de arrendamento”, faz notar o presidente da ALP. O Governo quer agora que as empresas de água, luz e gás comuniquem baixos consumos às câmaras para detetar casas vazias. Para Menezes Leitão, a situação vislumbra-se como uma violação da privacidade e do regulamento da proteção de dados. “É uma violência brutal.”

Frias Marques frisa que se criou pânico na sociedade, que não é desta forma que se resolve o problema, que a medida fere a Constituição. “Atiram-se cá para fora estas coisas, arma-se esta confusão, as pessoas ficam atarantadas. Isto é política, mas é política que nós dispensávamos.” O presidente da ANP diz que se anda “a discutir o sexo dos anjos”, que o tema é uma “cortina” para desviar a atenção dos utentes sem médico de família, das escolas sem professores, das urgências fechadas, de gente sem transportes devido às greves da CP.

As opiniões divergem, não rumam para o mesmo sentido. Centrar o debate no arrendamento coercivo é “absurdo”, insiste Pedro Bacelar de Vasconcelos. Falar em inconstitucionalidade “é um problema anedótico”. “Não há nenhuma suspeita de inconstitucionalidade ou violação de propriedade que justifique o alarme criado.” Há outros aspetos que deviam estar em cima da mesa, sublinha, como a necessidade de limitar as circunstâncias em que a intervenção pública pode acontecer, a articulação com as câmaras, a atuação onde a carência de habitação é notória, as situações especulativas que se prolongam por tempo não razoável.

António Machado defende equilíbrio, que se construa habitação onde é preciso, que se aproveite o que existe e não é habitado. E avança com um exemplo: se 10% das 50 mil casas vagas de Lisboa fossem habitadas, resolvia-se o problema de cinco mil famílias. “Não está em causa o direito à propriedade, é uma intervenção lógica da administração pública”, afirma. “O direito à propriedade não pode prevalecer sobre o direito à habitação. Tem de haver equilíbrio. São dois direitos fundamentais. Se o primeiro não facilita o segundo, o segundo não pode ser exercido.”

Para o secretário-geral da AIL, não é preciso que o Estado faça tudo, o sistema cooperativo poderia dar uma ajuda. “Chamar toda a gente ao problema é a solução. As sirenes já estão a tocar com esta proposta, toquem-se as trombetas para mobilizar o pessoal para as soluções. O objetivo é mais simples do que parece”, vinca. Em seu entender, há questões por resolver. “Continuamos a enfermar do pecado original, não se revoga a lei Cristas-Passos que desarticulou completamente o mercado de arrendamento, desestabilizou-o, encareceu-o.” Quem sofre são os mesmos de sempre, as famílias, os jovens. “A insatisfação é imensa, ou se tomam medidas que resolvam os problemas ou as coisas agravam-se.”

Sónia Alves concorda com as medidas de regulação. “Se existir financiamento, instrumentos coercivos e simplificação de procedimentos, os municípios poderão fazer bastante para contrariar o problema dos alojamentos devolutos, melhorar a qualidade da habitação e o aumento da oferta da habitação ao nível local.” Os alojamentos vagos e a reabilitação não podem, em seu entender, ser deixados exclusivamente à iniciativa privada. São problemas que têm de ser discutidos. “Um primeiro debate é sobre se os apoios devem ir para o Estado ou para o mercado? Quem consegue trazer para uso os vagos que existem?”

Vital Moreira, constitucionalista, professor catedrático jubilado, abordou o assunto no seu blogue. Considera “um erro político” o arrendamento compulsivo das habitações devolutas ao Estado que, escreve, se torna “um grande senhorio nacional”, contrariando “a solução municipalista que é adotada em geral noutros países”, uma visão que apelida de “hipercentralista e governamentalista”.

“Aparentemente, o Governo quis tirar rápido partido da ‘cornucópia’ do PRR para fazer um ‘brilharete político’, cooptando essa tarefa em substituição dos municípios”, sustenta. Os custos, as dificuldades práticas na concretização do programa, um possível número elevado de contenciosos, o aumento da desconfiança por parte de proprietários e investidores. Tudo isso é chamado para esta questão, segundo o constitucionalista. Vital Moreira não concorda com quem entende que se trata de uma medida equiparada à expropriação, nem com quem defende que não há qualquer problema devido à função social da propriedade. “Ora, o que pode justamente questionar-se é saber se o mesmo objetivo – ou seja, a mobilização de habitações devolutas para o mercado de arrendamento – não poderia ser atingido por meios menos lesivos dos referidos direitos do que o arrendamento compulsivo ao Estado, designadamente através da penalização fiscal dessas situações e de incentivos fiscais ao arrendamento”, argumenta. Talvez fosse por aqui. O constitucionalista tende a pensar que sim.

Números

Estes são números dos Censos 2021 do INE, explicando o organismo que, nesta consulta, não existe o conceito de casas devolutas. Os alojamentos não ocupados como residência habitual são classificados como residência secundária ou de uso sazonal, vagos para venda ou arrendamento e vagos por outros motivos.

4 142 581
alojamentos familiares clássicos de residência habitual em Portugal. Destes, 3 962 715 no continente, 85 074 nos Açores, 94 792 na Madeira

2 900 093
são casa própria, propriedade ou copropriedade; 922 810 são arrendados ou subarrendados; 319 678 outras situações

1 104 881
são residência secundária (1 072 531 no continente, 14 084 nos Açores, 18 266 na Madeira); 348 097 vagos para venda ou arrendamento (331 744 no continente, 7214 nos Açores, 9139 na Madeira); 375 118 vagos por outros motivos

No segundo trimestre de 2021, e face ao período homólogo, o número de novos contratos de arrendamento subiu 49,3%, contabilizando um total de 20 568 contratos

723 215
casas devolutas existentes no país, de acordo com o Governo.