Aproximar-se da fé em tempo de crise na Igreja

Filipe Santos é diácono, está prestes a ser ordenado padre e não se desviou da rota com o choque dos testemunhos de abusos sexuais. Pelo contrário, quer contribuir para que se faça justiça. Sofia Salgado Pinto está a trabalhar em comissões diocesanas viradas para a mudança e por acreditar tanto que é possível não virou as costas, tornou-se numa voz mais ativa. Frederico Fonseca tem 29 anos e foi batizado na noite de Páscoa. O pretexto era vir a casar, mas acabou a reencontrar uma ligação há muito perdida. Rita Sacramento Monteiro não quis ficar a comentar de fora, como se não fizesse parte, quis fazer-se ainda mais próxima, lutar pela transformação.

O dia era 13 de fevereiro e o relatório da Comissão Independente que investigou os abusos sexuais na Igreja era divulgado, num terramoto embrulhado em testemunhos brutais que chocaram a sociedade portuguesa. As portas já se tinham aberto lá fora, noutras geografias. Dos Estados Unidos a França, os relatos desconcertantes de inúmeras vítimas tinham ecoado pelo Mundo. Portugal chegava tarde a uma realidade dura e trágica, mas chegava. E abria-se um escândalo e uma crise sem precedentes na Igreja Católica. Nesse dia de fevereiro, Filipe Santos pôs-se a ler os testemunhos, uns atrás dos outros, perturbado pela carga do pormenor, do detalhe, entristecido, desiludido.

Na sacristia da Igreja de Meinedo, Lousada, perto das sete da tarde, põe as vestes brancas e roxas e prepara-se para rezar a missa, ao lado do padre, como todos os dias, exceto à segunda-feira, dia de folga, quando vai a Vila do Conde para estar com a família. Filipe é diácono, há de ser ordenado padre neste verão. Tem 27 anos, feitos a 27 de março. E recua uns anos para tentar encontrar respostas ao caminho que a vida tomou. Nasceu numa família católica, os pais e avós iam todos os domingos à missa, andou na catequese em catraio, “o percurso normal numa família crente”. Participava no grupo coral desde pequenino. “E acho que foi aí que comecei a gostar da figura do sacerdote, era um homem sereno, que transmitia paz, preocupado com as pessoas, comecei a achar que gostava de ser como ele.” Na verdade, teria uns 12 anos quando decidiu secretamente que queria ser padre. Só que era muito novo, quis esperar, dar tempo ao tempo, amadurecer a ideia. Cruzou-se, pelo caminho, com um professor de Filosofia que não era crente. “E que expressava algumas opiniões contrárias à fé. Ainda me questionei, será que Deus existe mesmo? Que está mesmo comigo?” Mas a morte do pai, tinha ele 16 anos, foi um momento-chave.

Mesmo que pareça paradoxal, foi aí que teve a clara perceção de que Deus existia. “Naquele momento, passei por um questionamento mais profundo. Zanguei-me com Deus. Mas depois percebi que se estava zangado com ele era porque ele, de facto, existia na minha vida. Esse momento foi imprescindível, acabei por me aproximar dele.” E de tudo o resto, das celebrações litúrgicas, dos grupos paroquiais. Quis saber como é que podia ser padre, ganhou coragem para perguntar ao pároco, entusiasmou-se com a ideia. Um papel para preencher, um primeiro encontro, e depois outro e outro. A decisão estava tomada. Tinha 17 anos quando saiu de casa para ir morar no Seminário Bom Pastor, em Ermesinde, trocou de escola secundária, de Vila do Conde para Ermesinde. E os amigos? “Para eles foi estranho, eles já sabiam que vivia a minha fé com intensidade, mas não contavam que fosse dar esse passo.” A mãe ficou apática, mas apoiou. E, de repente, um miúdo habituado a viver com a mãe e a irmã mais nova estava a morar com cerca de 30 jovens, “e com três padres formadores”, com regras, a ter disciplinas para lá da escola, como Teologia, encontros com uma psicóloga.

“Não éramos muitos jovens, é certo, mas também não somos assim tão raros como se pensa. Hoje, vai havendo vocações mais tardias, de quem já estudou, já trabalhou. Mas havia outros jovens da minha idade ali comigo.” Aos 19, mudou-se para o Seminário Maior do Porto, cursou Teologia na Universidade Católica. Foi ordenado diácono em dezembro, o que até já lhe permitiu celebrar batizados sozinho, e está quase, quase a tornar-se padre. “Estou na fase do estágio pastoral, em Lousada, a tempo inteiro. Acompanho o padre, vivo com ele na mesma casa, a minha missão é perceber como é que ele faz.”

E aquele dia de fevereiro? Foi difícil. “Claro que me questionei. Mas tenho esperança no futuro e quero contribuir para que a justiça seja feita. Para que este seja um tempo de mudança. Não adianta andarmos com rodeios, isto aconteceu e faça-se justiça. É essa a missão que Jesus nos pede, procurar a justiça e a verdade.” Não notou uma baixa nas pessoas a assistir às missas, mas sentiu a desilusão, sobretudo pelo encobrimento, de padres, bispos. E escolheu estar do lado da solução, ao invés de “criar ainda mais problemas”. Foi isso, afinal, que o fez não se desviar do caminho. Agarra-se à ideia de mudança e sonha, mesmo que tenha os pés assentes na terra. Sabe bem que, olhando para a realidade em Portugal e na Europa, os fiéis estão envelhecidos e que não há renovação. “Mas se a Igreja for um exemplo e se dialogar com os jovens – que é algo que não acontece, ouvir verdadeiramente os jovens – será um grande passo para haver renovação. A Igreja nunca tinha sentido antes necessidade de se abrir, e agora precisa de deixar de ser totalmente hierárquica, de dar voz aos leigos, para não ficar para trás.” Para isso, muito vai contribuir a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, em agosto, “apesar de todas as polémicas”. “É uma grande oportunidade para a Igreja, que vive uma crise, e não há dúvidas disso, se converter.”

Um Papa a abrir as portas do futuro

O Papa Francisco tem vindo a abrir as portas e os ventos da mudança talvez comecem a soprar. A tolerância zero com os abusos, a conversa aberta sobre a homossexualidade ou o celibato – que não é dogma, não está escrito nos Evangelhos, é apenas uma disciplina e que até só existe na Igreja latina, fruto de uma tradição que se sedimentou. “Também não podemos cair no erro de querer mudar tudo à pressa. Mas o que o Papa está a tentar fazer é provocar o diálogo”, aponta Filipe. Um diálogo que há muito é pedido por movimentos progressistas, que reclamam a modernização de uma Igreja bafienta, parada no tempo. O Movimento Nós Somos Igreja já nos anos 1990 pedia o fim do celibato, a ordenação das mulheres, a abolição do fosso entre fiéis e clero, a reconciliação com divorciados, recasados, crentes homossexuais, em vez de condenações redutoras.

(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

“Muitas destas questões já têm sido abordadas pelo Papa Francisco, que abriu caminhos. Já avançou, por exemplo, com mulheres a ocuparem posições importantes na estrutura do Vaticano, no acesso dos recasados aos sacramentos em algumas circunstâncias”, elogia Alfreda Ferreira da Fonseca, que esteve na fundação do movimento. E que aplaude o processo sinodal iniciado pelo Papa em 2021. Até 2024, o Sínodo vai auscultar os leigos por todo o Mundo, não só padres e bispos, todos, para repensar a Igreja, em novas formas de ser Igreja. “Estamos no século XXI, a Igreja tem que se abrir à realidade da vida contemporânea.” Mais ainda quando está mergulhada numa profunda crise, também em Portugal, depois do trabalho da Comissão Independente que destapou uma realidade violenta (e a que se seguiu uma comunicação desastrosa do clero) e que fez abanar as estruturas.

Como disse o Papa Francisco, não basta pedir perdão às vítimas, “é necessário continuar a fazer tudo o que for possível para desenraizar da Igreja a chaga dos abusos sexuais contra menores e abrir um caminho de reconciliação”. Alfreda subscreve. E por isso defende que é preciso dar continuidade, “o processo não acabou, haverá outras vítimas que vão falar”. “Claro que o relatório é chocante, é um horror, e é particularmente horrível na Igreja, que deveria ser um espaço absolutamente seguro.” Mas há uma vantagem clara. Agora, “já se fala abertamente que é preciso acabar com isto, que é preciso tomar medidas para prevenir abusos” – vários movimentos, incluindo o Nós Somos Igreja, subscreveram uma carta à Conferência Episcopal Portuguesa com sugestões de medidas, nomeadamente a suspensão preventiva dos alegados abusadores. “Não se pode pensar mais na instituição do que nas pessoas, o descredibilizar as vítimas para proteger a instituição não é aceitável.”

E perante uma Igreja portuguesa que não tem tido capacidade para se atualizar, como sustenta o movimento Nós Somos Igreja, e que já vinha a assistir ao afastamento progressivo dos fiéis, ainda antes deste escândalo, Alfreda recorda que a Igreja não é constituída só por padres e por bispos, “é por todos os que se reconhecem em Jesus Cristo”. “Dentro da Igreja Católica há muitos movimentos, muitas formas de viver a fé. É bom que se perceba que somos muito diversos. E que somos nós, os leigos, a fazer as mudanças.”

Das comissões diocesanas ergueu uma voz crítica

Sofia Salgado Pinto está a batalhar exatamente por isso, pela transformação – já lá iremos. É ligada à Igreja desde que se lembra. Na adolescência, esteve em grupos de jovens, chegou a ser catequista, e foi descobrindo a fé na Igreja e para lá dela. “Fazer esse caminho de distinguir o que é a fé e o que é a Igreja foi algo muito importante.” Não que quisesse desligar-se da instituição, pelo contrário. Ainda hoje, aos 52 anos e já professora na área de Gestão na Universidade Católica do Porto, mantém ligações. Faz parte de duas comissões diocesanas do Porto, nomeadas pelo próprio bispo, uma para o diálogo inter-religioso e uma comissão sinodal. “Esta última tem o desafio de escutar, sobre o que a Igreja faz bem, o que pode fazer melhor, sobre o que tem que ser mudado.” Olhemos, pois, para esse trabalho. A comissão de que faz parte criou vários espaços de escuta nas estruturas da Igreja e não só, foi à procura de “pessoas que estão mais afastadas, exatamente para perceber o porquê, o que gostariam de ver diferente, e se uma mudança os faria ter outra ligação”.

“Se o bispo do Porto entender, afastar-me-á das comissões diocesanas. Mas, enquanto a Igreja me permitir ter esta voz e liberdade, vou continuar a fazer caminho. A transformação é possível, a sociedade precisa de uma Igreja diferente, que não exclua nem marginalize. Afastar-me não resolve nada”, garante Sofia Salgado Pinto, membro de duas comissões diocesanas no Porto
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Um relatório síntese que engloba as paróquias do Porto foi enviado para Roma. O mesmo foi feito um pouco por todo o lado e já há um primeiro relatório do Sínodo, com testemunhos de diferentes regiões do Globo. “É muito interessante ver que muito daquilo que ouvimos localmente é partilhado entre geografias e contextos muito distintos.” O relatório põe o dedo em muitos pontos importantes. Mas ainda há caminho a trilhar. Depois desta primeira fase de escuta, é tempo de reflexão. Só então haverá uma reunião de bispos em Roma para tomar decisões sobre a transformação necessária.

É por isto, por estar em estruturas orientadas para a mudança, que Sofia não quis virar costas numa fase dramática para a Igreja, num momento complexo para todos os católicos. Quis estar ainda mais perto, tornar-se mais ativa, fazer-se ouvir. Está a ler o relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais de fio a pavio, ainda não acabou. “Estando eu envolvida e sentindo-me parte desta Igreja, não podia deixar de o ler. E não se consegue ficar indiferente.” Da costela académica, diz ser “um relatório exigente, bem estruturado e bem fundamentado”. Que é duro de ler, “é uma grande violência”. E não é uma questão de número (estima-se em mais de 4800 abusos nas últimas sete décadas), mesmo que fosse só uma vítima, está em causa “a falta de respeito pela dignidade humana, quando o mais básico que Cristo nos pede é amar o próximo e respeitá-lo”. Perceber, em cima disto tudo, que pessoas com responsabilidade tiveram conhecimento de casos e que o encobriram é uma dor ainda maior.

Mas é pragmática. Põe os olhos nas empresas – está presente como não executiva no conselho de administração de duas empresas -, onde já há canais de denúncia para casos de assédio. E “se as empresas estão a fazer esse caminho, a Igreja também tem que o fazer, não é preciso inventar a roda”. Até porque “isto não é uma fase que se deixa acalmar e depois fica resolvido”. “Não fica. Os casos vão continuar a aparecer. Tem é que haver mecanismos, processos de averiguação, de controlo.”

(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Por acreditar tanto num futuro diferente, Sofia enche os pulmões para dizer que é urgente salvaguardar que os espaços da Igreja são seguros para crianças, adultos vulneráveis, idosos, deficientes, homossexuais, pessoas recasadas, para toda a gente estar, com mais ou menos fé. E vai continuar nesta luta. Tem assumido posições públicas onde não cala a solidariedade com as vítimas, assinou a carta aberta a D. Manuel Linda, subscrita por 441 católicos da diocese, que deu nota do desânimo perante a gestão do caso dos abusos. “Se o bispo do Porto entender, afastar-me-á das comissões diocesanas. Mas, enquanto a Igreja me permitir ter esta voz e liberdade, vou continuar a fazer caminho. A transformação é possível, a sociedade precisa de uma Igreja diferente, que não exclua nem marginalize. Afastar-me não resolve nada.”

Um batismo aos 29 anos e o reencontro

Ao cabo de quase dois meses desde o dia da apresentação do relatório devastador, o tema continua a ferver no espaço público. Sem cair no esquecimento. A linha de apoio às vítimas deixou de existir após a apresentação do relatório, mas as queixas continuam a chegar às comissões das dioceses, segundo a Conferência Episcopal. Ainda há poucas semanas, tempo de Quaresma, a Arquidiocese de Braga (que, em contraste com outras mais resistentes, tem sido ativa na condenação, no afastamento de suspeitos de abuso e até na disponibilização de acompanhamento às vítimas) publicou uma carta a pedir fidelidade, que os católicos permaneçam firmes na fé. Frederico Fonseca talvez não a tenha lido. Nem precisa. Aos 29 anos, e depois de muito tempo desligado da Igreja, foi batizado ontem, noite de Páscoa, na Sé de Braga. Não convidou familiares nem amigos, quis um momento só dele. Pensando bem, se recuar à infância, a família sempre quis batizá-lo, só que houve um contratempo e acabou a adiar-se eternamente. Tem resquícios de memória dos tempos em que ia à missa e em que andou na catequese em miúdo. Contudo, já há muitos anos que se afastara. Não da fé, que sempre viveu de forma muito pessoal, mas da Igreja.

No ano passado, a pretexto de se querer casar pela Igreja, a noiva é católica e assim fez questão, sabia que tinha que se batizar. Decidiu em setembro e em outubro já estava num curso Alpha. É um curso de fé cristã, normalmente com o objetivo de atrair pessoas que não frequentam a Igreja, que estão afastadas da fé ou que querem completar o percurso. Assustou-se logo que soube que duraria até abril, a julgar que ia voltar a uma espécie de catequese entediante. Mas o tempo passou a correr e mesmo depois de adiar os planos do casamento pela Igreja (ele e a noiva estão prestes a emigrar para os Estados Unidos graças às dificuldades atuais) não desistiu. Foi até ao fim. “Entrei num grupo, que se reunia de quinze em quinze dias, e percebi que tinha uma ideia muito errada. Encontrei uma Igreja mais jovem, mais atualizada, voltei a criar uma ligação que estava meio adormecida.” A par de tudo, encontrou um padre “de discurso leve, que cativa”.

“Entrei num grupo, que se reunia de quinze em quinze dias, e percebi que tinha uma ideia muito errada. Encontrei uma Igreja mais jovem, mais atualizada, voltei a criar uma ligação que estava meio adormecida”, explica Frederico Fonseca, batizado na noite de Páscoa, aos 29 anos
(Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

A cada encontro, o debate de um tema ligado à Igreja, mas com adesão ao quotidiano de qualquer um. “Por exemplo, no caso de uma pessoa que tem uma doença terminal e de repente fica boa, o coordenador lançava a questão sobre se acreditamos que foi Deus que a curou.” O exemplo que lhe vem à cabeça não é ao acaso. Frederico perdeu a mãe para uma doença terminal, tinha ele 15 anos. Hoje, consegue olhar para trás e entender que, na altura, se agarrou à fé. “Houve ali qualquer coisa que me ajudou a aguentar.” E logo na fase em que recuperou a ligação à Igreja, o caso dos abusos sexuais caiu que nem vendaval. Um choque. “Não é só o que aconteceu, é a forma como foi tratado, o adiar, o encobrir. É grave. Foram cúmplices de um crime.” Nem por isso largou a ideia do batismo. “Não tenho dúvidas que os níveis de confiança baixaram muito. Já para não falar que a minha geração, que já era desligada da Igreja, agora mais ainda. Mas acho que não se pode meter tudo no mesmo saco. Não se pode culpar o todo por causa de alguns.” E a fé, essa, não abala, vive-a à margem de qualquer estrutura. “Acredito muito no praticar o bem, que depois há retorno.”

Da raiva, da desilusão a querer dizer “presente”

Rita Sacramento Monteiro, que faz parte do movimento internacional Economia de Francisco, lançado pelo Papa, fala pelos cotovelos. E é mais implacável, ou não estivesse ligada às estruturas eclesiásticas desde sempre: “A Igreja tem que dar um sinal claro de arrependimento e de transformação de tudo o que levou a que o abuso e o encobrimento fosse possível. Não se pode vacilar. E que este seja um momento para os católicos não serem mornos. Eu faço parte desta Igreja. Agora estamos todos a comentar de fora? Então qual é o meu lugar? O que é que posso fazer?”. Tem 36 anos, cresceu em Oeiras numa família católica e da desilusão fez forças. Mas comecemos pelo princípio. Catequese, crisma, escuteiros, grupo de jovens, todo um percurso de formação cristã. Foi acólita, leitora, formadora de leitores, catequista, dirigente do Corpo Nacional de Escutas, trabalhou com crianças e jovens durante onze anos. A lista é interminável.

Em 2011, já Rita trabalhava numa empresa de energia, integrou o movimento CVX – Comunidade de Vida Cristã. “Uma associação internacional de fiéis, de todas as idades, que tem sido essencial para crescer na fé como adulta.” Foi através deste movimento que fez as malas, em 2015, para ir para um centro de acolhimento de refugiados na Sicília, Itália, uma “experiência forte, de conhecer pessoas de outros lugares, de outras religiões”, onde chegou a acompanhar as orações de homens muçulmanos. À chegada a Oeiras, incentivou a paróquia de São Julião da Barra a responder ao apelo do Papa e a acolher uma família de refugiados da Síria. O tema nunca mais lhe saiu da cabeça, ainda foi em missão a Lesbos, Grécia.

Anos mais tarde, estávamos já em 2019, deu por ela a ler uma carta que o Papa Francisco escreveu aos jovens de todo o Mundo a desafiá-los a pensar e a colaborar no desenho de uma nova economia. “Uma economia verdadeiramente inclusiva, humana e sustentável, que cuide de todos”, explica. Foi uma dos 50 jovens portugueses que responderam, uma dos cerca de três mil no Mundo. O nome não é inspirado no Papa, é inspirado em São Francisco de Assis, pelo cuidado aos mais frágeis, aos mais pobres. Rita esteve na fundação do grupo português da Economia de Francisco, que quer “ser aberto a todos, crentes e não crentes”. Para pensar numa “economia que não continue a destruir ecossistemas, pessoas, a criar desigualdades”. O desafio foi um sinal claro da Igreja de que a fé pode ser vivida em várias dimensões da vida. “Eu não sou a Rita católica, a Rita cidadã, a Rita profissional, a Rita mulher. Não, a minha fé só faz sentido se enformar tudo o que sou.”

“A Igreja tem que dar um sinal claro de arrependimento e de transformação de tudo o que levou a que o abuso e o encobrimento fosse possível. Não se pode vacilar. E que este seja um momento para os católicos não serem mornos. Eu faço parte desta Igreja. Agora estamos todos a comentar de fora? Então qual é o meu lugar? O que é que posso fazer?”, avança Rita Sacramento Monteiro, fundadora do grupo português da Economia de Francisco, membro de uma Comunidade de Vida Cristã e voluntária na Casa Velha
(Foto: Carlos Alberto/Global Imagens)

Há várias linhas de trabalho, desde as finanças à agricultura e justiça. E muitos jovens, da área académica e não só, a trabalhar. Já surgiram iniciativas, uma rede de agricultores por uma agricultura mais inclusiva e sustentável, podcasts, programas de literacia financeira. Em 2022, num encontro em Assis com o Papa, todos os envolvidos assinaram um pacto com um conjunto de visões para a economia. “É interessante no espaço eclesial poder ocupar um lugar onde sinto que as minhas preocupações sociais, económicas, políticas têm lugar.”

O projeto foi de tal forma impactante que a empurrou para decisões radicais, uma vida mudada para sempre. Despediu-se em 2021 da empresa onde esteve dez anos, foi morar cinco meses na Casa Velha, associação de Ecologia e Espiritualidade em Ourém. Viver em comunidade, na Natureza. E foi tudo tão transformador que decidiu mudar-se de Oeiras para o campo, vive perto de Coimbra agora. Vinha de anos difíceis, a morte da mãe há quatro anos vítima de cancro, logo depois a perda da avó materna, e talvez o luto também tenha sido motor para tudo o resto. Tinha rezado e implorado muito por um milagre pela mãe. “Foi uma oportunidade para perceber que não acredito num Deus que seleciona quem morre, quem fica doente. A fé animou-me e inspirou-me a escolher a vida, a alegria. Percebi que a fé não é uma coisa estanque, não é uma garantia, é um exercício permanente de busca.”

A mesma busca que teve que fazer quando o furacão dos abusos sexuais chegou a Portugal. Ficou desolada, triste, zangada. Da dor e empatia que sentiu pelas vítimas à raiva, raiva mesmo, pelo encobrimento. “Houve dias em que me senti mesmo assim. Como é que o encobrimento foi possível numa Igreja cuja existência serve para a antítese disto, para cuidar da dignidade do outro, para o amor e não para a destruição?” E depois veio a perplexidade, a inquietude pela forma como os resultados do relatório foram geridos. “Tem que haver assunção da responsabilidade total. Numa fase tão frágil é preciso tomar decisões e a comunicação foi atabalhoada, pouco empática, pouco clara. A Igreja devia ter-se assumido como um exemplo para a sociedade num momento como este.”

Ao mesmo tempo, o turbilhão que lhe ia lá dentro, a necessidade de refletir também ela sobre como é que pode ajudar como leiga. Sentiu-se perdida. “É que a Igreja não são os bispos, os sacerdotes, somos todos. E esta ferida que se abriu, que expôs a fragilidade da Igreja estrutura, que mostrou que é uma realidade humana, que são pessoas que erram, trouxe a oportunidade de os católicos pensarem sobre qual é o nosso lugar no meio disto tudo. Escolhi contribuir para a mudança que me parece necessária.” E este, tem a certeza, é o momento de olhar para Portugal. De dar um murro na mesa, erguer a voz. Pede mais leigos competentes ao serviço da Igreja, em lugares de decisão, mais representatividade, mais diálogo. Só espera uma coisa, na verdade. Que deste tormento possa sair uma Igreja renovada, em muitos sentidos.