Joel Neto

Ao contrário de Clemenceau


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Como assim, eu não devia ensinar o meu filho a cantar “isso do Hasta Siempre”, escrito “em honra de um assassino”? Três quartos dos nossos heróis mataram. Os próprios super-heróis mataram – até Batman, ao qual sempre atribuímos a regra de não matar, matou. Não estou certo de que Che Guevara tenha chegado a esperar tanto de si mesmo. Mas importa-me o que pode simbolizar também para o Artur: o sonho de uma sociedade fraterna – tão impossível de alcançar como urgente de pedir, tal qual os melhores ideais.

Pelo contrário: “Hasta Siempre” é mesmo uma das primeiras da playlist que criámos e pomos diariamente no shuffle. Isto é, ao lado de “Os Índios da Meia-Praia”, “Qual É a Tua Ó Meu”, “Grândola Vila Morena” ou “A Cantiga É Uma Arma”. Para “A Cantiga É Uma Arma”, até inventámos uma coreografia, eu e a Marta. Pomo-nos os dois de pé diante do fraldário e fingimos caminhar em frente, com passos decididos e rosto determinado, os braços rodando à volta do corpo: Tudo depende da raiva/ E da alegria/ A cantiga é uma arma/ De pontaria.

Sim, sei-o bem: eu também repeti essa máxima que Clemenceau palmou a Guizot, e segundo a qual (parafraseio) “se aos 20 não és de esquerda, não tens coração; e, se aos 30 não és de direita, não tens cabeça”. Mas a minha vida não acabou aos 30, e, se em breve o tempo começou a ensinar-me a compaixão, regressar aos Açores abriu-me os olhos para a pobreza. A sentença, como a repito agora, conclui-se com: “E, se aos 40 não és de esquerda de novo, então não tens esperança”.

Para ensinar o cinismo ao Artur, não faltarão candidatos. Desde logo, os professores de Economia do liceu, com os seus programas liberais; a maior parte dos autoproclamados conselheiros de vocação, e mais as suas obsessões com as saídas profissionais e o conhecimento útil; toda a fauna das faculdades, incluindo alguns veteranos, a generalidade dos putativos bons alunos e até muitos professores, com os seus “contactos” e as suas “estratégias de RP” para facilitar isto e aquilo; e, claro, os prosélitos do empreendedorismo, a comunicação social em geral e os jornais do PSI-20 em particular.

Não: ele tem muito tempo para chegar à conclusão de que – sei lá – os escuteiros são uns grandes pirosos e entrar para uma jota, sim, é que é fixe. Haverá sempre imensa gente para lhe ministrar o pragmatismo. Parece, aliás, que são ensinamentos mais do que desejados pelo aprendiz. Ainda há dias li sobre um estudo segundo o qual os jovens mais activos politicamente são – lá está – os de direita. Na altura até me pareceu um oxímoro, “jovem de direita”. Mas, se é possível, então devia pelo menos ser proibido – como é proibido o excesso de açúcar num refrigerante ou a venda de tabaco a menores de 16.

Mas tudo bem: ensinem-lhe vocês essa coisa da competitividade, da (como é que se diz?) optimização – da acumulação. Ele acabará por precisar. Já eu, para já, vou cantar-lhe “isso do Hasta Siempre”. Não é sobre a economia: é sobre a justiça, que está a montante. A estratificação social continua a maneira mais precisa de entender o Mundo, e primeiro ainda vem a idade de acreditar na revolução. Digo-o eu, social-democrata pardacento – mas que ainda as tenho em mim, a raiva e a alegria.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)