Joel Neto

Amor de mãe


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Conheço três tipos de mães: mães que ambicionam o sucesso dos filhos; mães que ambicionam o fracasso dos filhos; e mães que queimam os filhos com pontas de cigarro. Deixo de lado o terceiro. Quanto aos outros dois, o diagnóstico diferencial pode estar no imperativo da autonomia. Mães que ambicionam o sucesso dos filhos são sempre mães que educam os filhos para a emancipação. Já mães que ambicionam o fracasso dos filhos tendem a educá-los para algum género de dependência, próxima ou remota. Poucas vezes têm real interesse neles, e tudo o que exista, ocorra ou possa ser sonhado – e o quotidiano deles acima de tudo – importa-lhes em exclusivo enquanto instrumento para a aquietação do seu tédio.

Portanto, eis o que penso sobre a correspondência entre maternidade e santidade: não acredito nela. Mesmo quando o Bem e o Mal convivem numa mulher (que é sempre, nas mulheres como nas pessoas) e, inclusive, quando uma mesma mulher é uma mãe diferente para cada filho (e que no fundo é sempre também), a ideia de amor incondicional, esse amor que a todos suplanta – que tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta -, é uma generalização. Não invento nada: a literatura descreve-o há muito, a de ficção e até a séria. A maternidade que salva uma vida é a mesma que a pode destruir, e muitas vezes é isso que faz. O soldado da tatuagem morreu à espera de ver a compadecida trocar ao menos um pouco do cocktail de egoísmo, chantagem e hedonismo por uma porção de sabedoria. Antes disso, casou com uma versão grosseira dela, assegurando a perpetuação do desamor.

Com os pais e a paternidade, é parecido. Mas esta crónica é sobre a Marta.

Quando a conheci, trabalhava na obra de um obscuro poeta republicano do Algarve. Falou-me da tradução de São Gregório, cujos manuscritos davam uma ideia da transição entre o português antigo e o moderno, e eu percebi que era ela quem resistia à insistência da academia para que se doutorasse. Ficar na primeira fila tornou-se o privilégio da minha vida. A Marta é atenciosa, sociável, frugal. Sabe amar e ser amada. Escreve maravilhosamente, e a todos os meus textos acrescenta uma ideia redentora, quando não a melhor. Canta todo o dia, mesmo desafinando. Tira sempre o pior pedaço de carne para si.

No dia em que esta gravidez perfez doze semanas, criou na garagem uma despensa igual a uma mercearia. Quando a garagem transbordou, inventou uma feira de jardim para as velharias. Antes do parto, recolheu as roupas de bebé que sobraram às amigas. Depois dele, avaliou aquilo de que não ia precisar e redistribuiu. Se vamos ao ginásio, há sempre alguém que pára a vê-la treinar. E, esta manhã, acabou de fazer as lentilhas que eu adoro e, ao retomar o último Lídia Jorge, suspirou: “Já tenho saudades das miúdas” – das miúdas da ginástica rítmica, de que foi uma boa atleta e dá treinos.

Eis quanto poderá ensinar ao Artur: a empatia, a curiosidade, a parcimónia, a alegria, a beleza, o altruísmo. E a autonomia, condição do sucesso. Vê-la transformar-se na matriarca egocêntrica que esmurra o peito em proclamação da sua bondade seria fascinante se não fosse, antes, uma impossibilidade.

Esta crónica é sobre a Marta e o milagre que ela é. E sobre mais coisas, mas principalmente isso.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)