“Amadeo”. O filme que nasce da coragem do seu olhar e das suas cartas de amor

Amadeo de Souza-Cardoso, o pintor que era tudo e não era nada, sendo tudo ao mesmo tempo, chega ao cinema em três tempos da sua curta e intensa vida. O artista incompreendido, que queria pintar o futuro, nasce em Manhufe (Amarante), vive em Paris, morre em Espinho. Inquietações e sonhos pela lente de Vicente Alves do Ó. A estreia acontece a 26 de janeiro. Com dedicatória a Eunice Muñoz e Rogério Samora.

Amadeo está de gravata, tem a mão esquerda no colete, casaco semiaberto, cabelo farto sem chapéu, olhar altivo a roçar a arrogância de quem sabe o que vale, ciente do seu talento. Vicente Alves do Ó, realizador, encara esse olhar intrigante que sai desse retrato num cartaz gigante. “Um olhar de desafio com uma altivez e uma soberba – não soberba de se achar melhor do que os outros, soberba de desafiar os seus limites -, um olhar corajoso. Parecia estar vivo”, recorda. E está, vivo e inteiro, no seu filme.

Era novembro de 2016, o realizador tinha acabado de filmar “Al Berto”, apetecia-lhe uns dias de passeio pelo Porto, fez-se à estrada. Um dia, a meio da semana, sai do hotel, começa a chover, não tem guarda-chuva, fixa o olhar na fachada do Museu Soares dos Reis, vê o anúncio da exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, 100 anos depois da mostra de 1916 no salão de festas do Jardim Passos Manoel, ali, no Porto – nesse ano, o pintor tinha 28 anos e decidira fazer uma retrospetiva da sua obra com 114 quadros. Vicente Alves do Ó adia o passeio na baixa, entra no museu, aquele retrato suga toda a sua atenção. Vê a exposição, retém as palavras escritas nas paredes. E a ideia do filme acontece. Por amor, por admiração. Pelo acaso ou pelo destino.

“Amadeo” estreia nas salas de cinema a 26 de janeiro, amanhã é dia de antestreia no Cinema São Jorge, em Lisboa. Eunice Muñoz é a avó de Amadeo, Rogério Samora o pai. Os seus nomes aparecem antes de o filme começar a branco no centro da tela preta. “Para a Eunice”, “Para o Rogério”. Dedicatórias que carregam um peso imenso, projetos falados que não vão acontecer.

Eunice Muñoz é a avó de Amadeo no filme baseado na biografia do pintor. Uma avó que canta para o neto, que sente a sua inquietação, que lhe lê a alma
(Foto: DR)

Amadeo de Souza-Cardoso nasce em 1887, em Manhufe, Amarante, no meio de oito irmãos, família burguesa com negócios ligados à vinha. Estuda na Escola de Belas-Artes de Lisboa, parte para Paris, regressa a Manhufe para fugir da guerra, casa-se com Lucie, seu grande amor, no Porto, quer voltar à capital das luzes, sonha expor em Nova Iorque. Morre aos 30 anos.

Vicente Alves do Ó divide “Amadeo” em três tempos e fecha assim a sua trilogia de biografias cinematográficas, depois de “Florbela”, Florbela Espanca, em 2012, e de “Al Berto” em 2017. Quatro dias da vida de Florbela, dois anos de Al Berto, três momentos de Amadeo. Começa em 1916, recua a 1911, termina em 1918. “É estar com Amadeo quando é importante estar”, revela. 1916, Amadeo organiza a primeira grande exposição modernista no país, no Porto num Portugal conservador, e é um escândalo. Em Manhufe, na casa senhorial da família, com Lucie, os dias são passados a pintar incessantemente. Lá fora, os sons da vida do campo, os sinos das ovelhas, as galinhas, o gado que passa. O artista inquieto, farto de esperar sem que nada aconteça, a sensação de que tudo acabou, o medo de ali ficar e enlouquecer, um inverno que nunca mais passa, a vontade de pintar a vida, as saudades de ser livre e partir.

1911, em Paris, o artista assume a pintura como a sua arte, expressão plena, depois de ter andado pela caricatura e pensado em arquitetura. Amadeo está no olho do furacão da arte europeia, onde tudo acontece, organiza uma exposição em sua casa à luz de velas com obras de vários artistas. “É a noite inaugural de Amadeo como artista total”, descreve o realizador. Uma noite com Picasso, Modigliani, Delaunay.

Por fim, 1918, ano trágico, uma pandemia assola o Mundo, Amadeo, Lucie e duas irmãs estão numa casa na praia de Espinho. Amadeo morre ali, aos 30 anos. “A morte apaga-o para o seu desaparecimento”, observa Vicente Alves do Ó. Há que resgatá-lo.

“Sou impressionista, sou futurista, cubista e abstracionista, sou tudo um pouco”, dizia Amadeo. Era tudo e não era nada, porque era tudo ao mesmo tempo. Os detalhes nos diálogos, os sons de dentro e de fora, a fotografia sublime num filme de época com gente de carne e osso, a confiança do pai (Rogério Samora), as aflições da mãe, as canções da avó (Eunice Muñoz) que o sente desassossegado.

Rogério Samora interpreta o pai do artista, homem da alta burguesia que não corta as asas ao filho. Um dos últimos papéis do ator no cinema
(Foto: DR)

“Amadeo” parte de uma pesquisa apurada, maturada, densa e profunda. No dia em que viu a exposição, Vicente Alves do Ó comprou, no museu, um livro de contos de Mário Cláudio que fala de Amadeo e a fotobiografia sobre o artista, depois mergulhou a fundo na sua vida e obra, nas suas cartas, publicadas em livro, que escreveu à família, à mulher, aos amigos. Houve ainda conversas com familiares em Amarante, uma viagem a Paris, mais conversas com historiadores, investigadores, curadores, Marta Soares, Helena de Freitas, Catarina Alfaro, Gulbenkian. Três anos depois da exposição do Museu Soares dos Reis, Vicente Alves do Ó estava a filmar.

Rafael Morais é Amadeo, o protagonista. “É um luxo tremendo dar vida ao Amadeo, um pintor que queria estar na vanguarda a nível artístico e que poderia moldar o caminho da arte internacional, um artista incompreendido”, afirma. A construção da personagem, do artista demasiado moderno para o seu tempo, teve vários momentos, várias camadas. O ator teve nas suas mãos tintas e pincéis de Amadeo, pegou-lhes, tocou-lhes, sentiu-os. Foi mágico, quase esotérico, sentir Amadeo naquele material guardado nos cofres da Gulbenkian.

Cem anos depois da exposição no salão do Jardim Passos Manoel, no Porto, o Museu Soares dos Reis replicou a mostra que inspirou o realizador Vicente Alves do Ó
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Respirou o ar da casa e do ateliê do pintor em Amarante, leu as suas cartas e ali estavam estampados seus medos, seus sonhos, suas desilusões. Teve aulas de pintura na Faculdade de Belas-Artes, bem como sessões de pintura e desenho com Constança Villaverde Rosado. “Foi essencial para desenvolver alguma técnica, mas também para explorar a fisicalidade e o lado meditativo de pintar”, explica.

Rafael encarnou Amadeo, leu-o nas entranhas, fixou o seu olhar sonhador e inconformado, e uma certa arrogância do talento que sabia ter. “Foi muito cativante e desafiante explorar, neste meu Amadeo, a segurança e autoconfiança que ele tinha em si mesmo e no seu trabalho enquanto artista”, confessa. “Os artistas (certamente grande parte dos atores) são normalmente seres muito inseguros, mas ao ler as suas cartas pessoais tornou-se óbvio que ele era, de facto, e de uma forma quase brutalmente honesta, muito seguro de si mesmo.” Rafael queria que tudo isso estivesse presente. “Queria que, apesar de muito sensível e emocional, ele fosse também muito confiante, assertivo e seguro de si mesmo, do seu potencial e genialidade.” “Amadeo era muito especial nesse sentido, em que reconhecia nele mesmo estes dois aspetos muito diferentes, sem negar um ou o outro. Este contraste, quase dualidade, é muito interessante”, acrescenta o ator.

Ela, o passarito. Ele, a árvore

Lúcia Moniz é Laura, irmã mais velha de Amadeo, que lhe diz, a certa altura, para ir embora dali, de Amarante, voar, perseguir sonhos. Há poucas referências a Laura, algumas frases nas cartas escritas a Lucie, pouco mais. “A Laura não percebia os quadros, mas entendia o irmão que se sentia preso, bloqueado, limitado”, refere Lúcia Moniz. Era uma irmã-mãe, maternal, que acompanhava o crescimento de Amadeo e o queria feliz e realizado, mais do que a mãe, distante, extremamente religiosa, aflita e cheia de dúvidas naquela arte, que via Amadeo ao balcão de uma loja de um parente na Rua de Santa Catarina, no Porto.

Lúcia Moniz interpreta o papel de Laura, irmã mais velha, maternal, que não percebe os quadros, mas entende Amadeo e a sua vontade de mundo, de Paris e Nova Iorque
(Foto: DR)

Ana Lopes é Lucie, o amor de Amadeo, mulher doce, delicada, frágil, doente, sempre doente. Frágil e forte ao mesmo tempo num amor intenso, puro. Uma história de amor. Um amor que perpassa a tela, que lhe tece os passos e se sente nas suas trocas de olhares. “Eram completamente apaixonados. Ele tratava-a por passarito, ela chamava-o de árvore”, partilha a atriz. As cartas dele para ela, não se conhecem as dela para ele, foram a sua base de trabalho. Interpretar uma mulher real, que existiu, é uma enorme responsabilidade, como pisar chão de lava. Não sabia como ela falava, andava, respirava, sorria. Construiu-a com amor.

Conhecem-se em Paris, casam-se no Porto, cerimónia simples, quase sem ninguém, refugiam-se em Manhufe para fugir à guerra. Lucie, sempre ali, sempre presente, sempre a seu lado, sempre esperançosa nos voos do marido. “Amadeo é um homem confiante e sabia o que valia”, descreve a atriz.

Antes das filmagens, para o trabalho de construção das personagens, o elenco principal passou uma semana em Amarante numa residência artística preparada pelo realizador. Não é habitual que isso aconteça, mas esse tempo foi crucial. “Lemos as cartas, percebemos como esta família se relacionava, houve lugar a emoções e gargalhadas, tomámos muitas notas”, lembra Lúcia Moniz, que confessa ter gostado muito desse processo. Levou para Laura coisas de si. “Adoro cozinhar e cuidar dos meus.” Como uma mãe, como uma irmã mais velha.

Ana Lopes também apreciou essa residência para absorver a narrativa, compor o seu papel, conhecer Rafael. “Criámos uma relação familiar uns com os outros, foi especialmente importante, não conhecia ninguém, nem o Rafael que é um ator excecional e um excelente colega, criámos uma relação muito forte em termos de confiança e de amizade.” Era o que se pretendia. Vicente dizia que Amadeo era o sol. “Era um homem com uma energia muito forte, muito competente, muito aberto a novas coisas, muito criativo, a procurar novas ideias em termos artísticos”, adianta Ana Lopes.

Casa de Amadeo de Souza-Cardoso em Manhufe, Amarante, onde nasce e onde se refugia durante a I Guerra, vindo de Paris, epicentro da arte europeia à época
(Foto: Octavio Passos/Global Imagens)

As conversas, aqui, nestas páginas, navegam entre o passado e o presente. Porque Amadeo foi, porque Amadeo é. Um homem de vanguarda, espírito livre, considerado um dos artistas mais relevantes e importantes do modernismo europeu. Viu o que, para muitos, ainda estava por ver, ousou sonhar. Um pintor no epicentro artístico do início do século XX, quase apagado na história do seu país. Inspirou-se em paisagens, beijos, animais, galgos, bailaricos. Uma vida de amor e de dor.

A sensibilidade estética, os planos, os enquadramentos, a fotografia, a história, a forma de filmar, os três tempos da vida de Amadeo. Lúcia Moniz vê no filme a celebração de um pintor maior, completo. “Uma homenagem a um artista que rompe com as regras, que vive suspenso no seu sonho.” Uma obra cinematográfica para recordar e respeitar o artista que se atreveu a sair de um caminho demasiado óbvio, a abrir espaço ao que era novo. “Na sensibilidade do Vicente, nos planos que escolhe, há, sem dúvida, um respeito enorme pela obra de Amadeo. A nível de imagem, há uma homenagem gigante ao Amadeo”, sublinha a atriz.

Eternizar o artista, vingá-lo da morte

O filme transpira Amadeo, enquanto artista, enquanto homem, enquanto amante, enquanto filho, enquanto irmão. E todas as suas lutas internas num Mundo em mudança, tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto. “É um filme digno que respeita o Amadeo enquanto artista”, comenta Rafael Morais. O pintor que queria pintar o futuro. “Esse pintar o futuro é estar na vanguarda, à frente de todas as modas.” Mais um projeto, mais um filme, mais um desafio como o ator gosta e o entusiasma, com trabalho e liberdade, nessa transformação constante (agora está de barba e cabelo rapado dos lados em mais um projeto para cinema).

O pintor inspira-se em momentos do seu quotidiano, paisagens, cães, beijos, bailaricos. É modernista, impressionista, cubista, não se deixa engavetar num único estilo
(Foto: DR)

“Amadeo” é a primeira longa de Ana Lopes, filme de época, uma das suas aspirações concretizadas como atriz. “Esta foi a história de amor mais bonita que conheço e, sendo real, tem um significado muito especial”. Fala em privilégio por ter dado voz e corpo a Lucie. À distância, três anos depois, Ana Lopes olha para “Amadeo”. “É importante o filme exatamente para chamar a atenção que temos um geniozinho português e que morre cedo. Espero que as pessoas tenham mais curiosidade em conhecer este homem extraordinário.” Lucie fica viúva aos 28 anos, não terá mais nenhum amor, viverá sozinha num apartamento em Paris rodeada de obras do seu Amadeo, como filhos que nunca tiveram, até debaixo da cama tinha quadros. Morre aos 98 anos e doa a obra do seu amor à Gulbenkian.

Esta é uma estreia que uma pandemia atrasou com coincidências arrepiantes. O último dos três tempos do filme é vivido em Espinho. Pouco antes, Amadeo tem uma doença de pele que lhe afeta as mãos, faz termas nas Taipas, melhora. A gripe espanhola, a pandemia do século XX, assola o Mundo. O pintor, Lucie e duas das suas irmãs vão para uma casa na praia de Espinho. Amadeo morrerá de pneumónica nessa casa, deitado numa cama, a arder de febre. Lucie escapa, uma das irmãs não resiste. Há uma cena na praia em que se queimam colchões e roupas. As filmagens terminaram a 18 de dezembro de 2019, já se ouviam notícias perturbadoras sobre um novo vírus. “Foi muito difícil para todos nós filmar essa parte, as cenas são muito pesadas, acabámos de filmar e entrámos numa pandemia, uma doença a espalhar-se, a perdermos o controlo uns dos outros”, recorda Ana Lopes. Rafael tinha 30 anos quando interpretou Amadeo.

Lucie, o amor de Amadeo, mulher doce e frágil. Um casal apaixonado e intenso. Conhecem-se em Paris, casam-se no Porto, sempre juntos até à morte do artista, em Espinho
(Foto: DR)

Vicente Alves do Ó partilha os seus propósitos do filme totalmente inspirado em Amadeo. “Quis vingá-lo em relação à morte, o destino foi muito ingrato no caso de Amadeo. Quis dar-lhe um espaço que o cinema possibilita que é eternizá-lo de alguma forma”, salienta. O realizador tem uma certeza à volta da vida e obra de Amadeo. “Ainda há tanto trabalho por fazer”, avisa.

E Amadeo mostra-se, com transparência e metáforas, num parágrafo de uma das suas cartas. “É preciso ser gigante para ser gota de orvalho. Depois de abraçar a terra, mergulhar no mar, transformado em nuvem comandar uma batalha de raios, cair muito alto, das alturas, no coração de uma flor, a nossa alma, gota celeste, desaparece num fino raio de sol”, escreveu a Lucie. Amadeo, o homem, o artista, o visionário, o sonhador inquieto, chega agora ao cinema. Para ser eterno. Como um fino raio de sol que brilhará para sempre.