Cresce com o Tejo e lezírias no horizonte, entre árvores de fruto, a trepar figueiras (talvez seja por isso que os seus perfumes têm essência de figo). Aos 15 anos, está num grupo de teatro amador. Estuda Fisioterapia e o teatro aparece-lhe novamente. O primeiro lugar de entrada no conservatório é determinante. Vai para Lisboa, cria uma companhia, vem a televisão, o cinema, as produções internacionais, o êxito “Rabo de Peixe”. Vêm os prémios e trabalhos. É um homem grato, de afetos, de pessoas (são elas o início e o fim de tudo). Fala seis línguas, entre as quais, alemão e grego, anda com livros na mochila, tendencialmente foge para a poesia - “Sei que não tenho nenhuma conclusão, mas um património de imagens à minha espera”, confessa. Tem os pés no chão e não dá nada por garantido. 2024 será um ano cheio.
Chega ao Jardim do Torel depois de almoço, miradouro soberbo sobre Lisboa, Tejo à esquerda, céu azul sem sinais de outono. Costuma passear por esta paisagem verde, peixe na água na Natureza, tem muitas plantas em casa. Não se nota que o seu dia começou demasiado cedo. Sentámo-nos num banco de jardim que curiosamente tem gravada uma frase de Pessoa que cita como Álvaro de Campos no filme “Não sou nada – The nothingness club”. “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.” A conversa com o ator, de 44 anos, começa com um acordo prévio: tratarmo-nos por tu. Sem deferências.
Na construção de uma personagem, preparas-te de dentro para fora ou de fora para dentro?
Tenho noção de vários métodos e os trabalhos, em si, é que me dizem que aproximação fazer. Por norma, trabalho de dentro para fora, por camadas sempre, preocupo-me em absorver tudo aquilo que um trabalho me pede, como profissional que sou. E, depois, como artista, tento destruí-lo e dinamitá-lo com toda a força.
Processos dolorosos ou tranquilos?
Dolorosos, até mesmo pequenas violências (qualquer tipo de escolha implica uma violência). Nesta lógica, são processos de escolha que implicam cedências, aprendizagens, mudanças e, obviamente, mexem com o íntimo, com o lado mais emocional, com o corpo.
É fácil sair do corpo de uma personagem, da pele que se veste?
Para mim, é importante cortar. O trabalho é trabalho, família é família, amigos são amigos. Mas, obviamente, há processos mais intensos. Em “Restos do vento”, com o Tiago Guedes, não tirei a minha roupa de figurino, usei-a sempre durante a rodagem. Ia dormir com essa roupa, acordava com essa roupa. São processos que implicam uma entrega física, de tempo, de disponibilidade. São coisas mais intensas. E isso, de certa forma, contaminava um bocadinho o meu dia a dia. Contudo, como profissional que sou, compete-me não misturar as coisas.
Interessa-te as imperfeições, as falhas? É do erro que nascem as coisas mais belas?
Sim. Podes trabalhar, para atingires determinado patamar, mas, por experiência pessoal, tanto a nível íntimo como profissional, os erros são os nossos melhores aliados. Do erro nasce a falha, através do erro páras a narrativa da tua vida, seja ela íntima ou profissional. Gosto disso porque te surpreendes também, dás espaço para que a surpresa entre no teu processo de vida, de trabalho. Nos erros residem, de forma muito concreta, algo próximo da humanidade.
A queda é um ponto de partida para um salto maior?
É uma boa perspetiva. A queda implica sempre um movimento contrário de te levantares, de início, de esperança. Gosto de terminar projetos e começar outros porque renovo sempre a esperança. A queda faz parte do processo de aprendizagem e de mutação permanente.
A esperança que não se consegue tocar e tão subjetiva que não se consegue alcançar?
A esperança como uma espécie de horizonte onde vais sempre caminhando quase em direção àquele objetivo ou paisagem e queres tocar. É interessante e útil. Mas a esperança que não te deposite num terreno pantanoso que te cause inércia. A esperança é interessante como foco ativo, musculado. Uma esperança ativa é o que me interessa, não uma esperança que me deposite algures a contemplar. A contemplação tem um tempo, é interessante porque é curta.
Um ator é um camaleão? A possibilidade de ser um e muitos ao mesmo tempo?
São várias coisas. É uma ausência permanente de ego e gosto disso porque o Mundo, para mim, são os outros e eu sou o reflexo daquilo que está à minha volta. E adoro a ideia de ser um agente da comunicação. A minha função, nesta profissão, tem a ver com isso, com trabalhar esses níveis de entendimento do público numa zona quase espiritual. A arte trabalha esses meandros, aquilo que não é material, quase invisível. Gosto dessa responsabilidade. Nessa ideia de ser agente da comunicação, às vezes, brinco com os meus amigos que não gosto de ser ator, gosto de ser reator, reagir àquilo que está à minha volta.
A arte replica a vida e a vida copia a arte?
Por mais que nos esforcemos, como artistas, nunca vamos imitar a vida. A vida é sempre horrivelmente surpreendente, horrivelmente bela. Tentamos transmutar essa realidade noutros códigos com várias linguagens ou alfabetos que podemos criar. A arte não imita, quando imita é pobre, é redundante. Tem de reinventar a vida.
O que te leva a escolher um trabalho? A história, o argumento, a personagem?
Primeiramente, as pessoas. Não me interessa se é Shakespeare ou se é nova dramaturgia portuguesa, interessam-me as pessoas que estão envolvidas porque é isso que vou levar comigo. Há uma expressão engraçada: “Não quero ser o mais rico do cemitério” porque não vale a pena. No património emocional, humano, quero ter muita coisa cá dentro. Depois, o texto, o que implica, onde é que estou, como posso acrescentar a um autor, a um texto, a um dramaturgo, a um realizador. O que posso aumentar ou acrescentar a uma visão, a uma escrita. Posso ser útil? Ótimo. Pessoas, texto, a pirâmide é esta.
Tens alguma espécie de faro ou radar para perceber se algo vai ter sucesso?
Não sei.
Não te preocupas com isso?
Não me preocupa muito. O meu foco é sempre diário quando estou a trabalhar seja em que for. A energia, o empenho, a dedicação, o amor, que implico todos os dias, levam-me a acreditar que isto pode ser uma coisa incrível, de uma forma quase naïf, adolescente. Esse é o meu foco. Não penso muito no que isto pode vir a ser, se um filme vai ao festival de Cannes, ou se esta série vai ter visualizações incríveis a nível internacional. O importante é agora e aqui.
Mas não tinhas ideia do impacto que “Rabo de Peixe” iria ter?
Não, mas trabalhámos sempre como se fosse a final da Liga dos Campeões (não sou de futebol, mas sei que existe uma final da Liga dos Campeões). Trabalhámos sempre com esse espírito. E ainda hoje vou tendo eco da série e de “Como é que o bicho mexe?”. No fundo, estamos a falar de como estes objetos tocam as pessoas de determinada forma. E esse reconhecimento e esse eco são tão generosos que alimentam um bocado o que fazes, tanto ou mais do que um prémio, porque são carne e osso, são pessoas.

Tens referências, mestres que inspiram?
Muitas e vão variando consoante os universos. Eu e a Cláudia Lucas Chéu encenámos e dirigimos um espetáculo a partir de um texto do Mishima, “O meu amigo H”, e as referências são variadíssimas. Fizemos um outro espetáculo, “Orlando” da Virginia Woolf, outro universo. Uma das coisas boas que esta profissão dá é que te pagam para te educares, então tenho de aproveitar isso. Tento contaminar-me ao máximo de tudo e mais alguma coisa.
Recuemos ao passado. Nasceste em Lisboa e cresceste em Alhandra, uma vila piscatória, num meio pobre, precário. É importante não esquecer de onde vens?
É fundamental.
Torna-te mais rijo, mais combativo?
É saber o lugar que ocupas nas coisas e na vida. Como a escassez, às vezes, dá-te uma ânsia brutal, uma força, mas também uma grande objetividade. E, à medida que vais envelhecendo, o facto de não esqueceres de onde vens é um porto seguro, ou seja, dito de uma forma muito básica e com vernáculo pelo meio, deixas-te de merdas porque põe-te os pés no chão. Gosto muito de voar, partir para outros mundos, mas sei onde voltar. E nunca me esqueço do que a minha mãe me disse de uma forma muito básica. Se queres alguma coisa, luta por isso. Tens de respeitar sempre os outros, senão não te vais respeitar a ti. Tens de saber o lugar que ocupas. São quase mantras que uso para me manter fiel, justo, seja lá o que isso for, respeitador. Gosto de respeitar o espaço dos outros porque automaticamente estou a delimitar o meu. E obviamente abraçar as imperfeições. Quando comecei nesta profissão, ouvi coisas como “eh pá, és muito alto”, “és muito bonitinho para fazer cinema”. De repente, isso era problema. De repente, é habitar essas dificuldades e torná-las mais-valias. São conquistas. E, uma vez mais, voltar ao cais 14, em Alhandra, uma zona piscatória, umas escadas que dão para o Tejo, onde muitas vezes tomei banho com cagaréus, filhos dos peixeiros. São memórias inacreditáveis que transporto comigo porque me dão uma perspetiva sem grandes efabulações. É o que é.
Faz-te bem voltar a Alhandra?
Tenho lá amigos. É importante voltar, tenho muitas memórias ali, o grupo de teatro amador Esteiros da Sociedade Euterpe Alhandrense, onde comecei com 15 anos, é mesmo colado ao rio. Muitas vezes, fui decorar texto para o rio, falei muitas vezes para o Tejo com um horizonte com lezírias. De certa forma, há uma cumplicidade com as lezírias, com o campo, com a Natureza, com o rio, com esses elementos que são maiores do que eu e que tento fazer parte deles.
Na escola, eras um miúdo calmo ou irrequieto?
Tive fases. Nasci com seis quilos e qualquer coisa. Fui uma criança fisicamente grande para a minha idade. Na turma, era sempre o mais alto e, isso, de certa forma, deslocou-me um bocadinho da norma. Ia sempre à baliza quando jogava à bola. Passei por várias fases, onde era o deslocado, depois comecei a fazer desporto de alta competição em basquetebol, desenvolvi o corpo. Ganhas confiança, revês-te, reencontras-te na escola de outra forma no teu corpo, nos teus amigos, na tua voz. Tudo ganha outra forma. Fui um bocadinho de tudo, mas gostava muito de tirar boas notas.
Tiravas?
Sim, esforçava-me pelo menos.
Gostavas de ciências, chegaste a estudar Fisioterapia.
Foi uma misturada. Desde os 15 anos que faço teatro, mas sempre quis Biologia, Fisioterapia. Entrei em Fisioterapia, não acabei o curso, concorri ao conservatório [de teatro], não disse nada lá em casa e entrei em primeiro lugar. Esta questão de ser em primeiro é preponderante, se fosse lá pelo meio, não seria tão decisivo. Se calhar, isto faz sentido, se calhar tenho aqui alguma coisa a experimentar. E assim foi. E nunca mais parei até hoje. Toda a minha educação é teatral. Estreei-me profissionalmente no teatro, nunca deixei de fazer teatro na vida. A companhia Teatro Nacional 21 foi criada há praticamente 15 anos, mas já tínhamos uma estrutura. Estou a trabalhar com a Cláudia seguramente há 17 anos. Temos um desenvolvimento artístico que visa várias coisas, mas sobretudo a descentralização cultural, sempre com ações paralelas ao espetáculo de cena propriamente dito, workshops, masterclasses. Preocupamo-nos muito com o legado, não só o espetáculo como objeto em si, mas com aquilo que pode contaminar à volta.
A relação com a comunidade?
É fundamental, sobretudo com as camadas jovens. Nessa lógica, temos de os cultivar, olhar para eles como o futuro e tratá-los com o devido cuidado, respeito e violência no bom sentido. Há um professor de escrita em Oxford que diz uma coisa muito engraçada numa entrevista. Perguntaram-lhe como é que olha para os seus alunos e ele disse uma coisa fantástica: “Tenho de olhar para eles de forma preciosa, eu não sei se está aqui o próximo Shakespeare, não sei se está aqui o próximo Harold Pinter”. É um bocadinho esse o sentimento quando levamos um espetáculo para fora de Lisboa ou das grandes cidades, é exatamente com essa responsabilidade e com esse olhar crítico e cuidador, sem ser paternalista.
O teatro é o teu palco preferido?
Acho que sim. Digo acho porque o cinema também tem uma preponderância tremenda. Tenho trabalhado com pessoas que me inspiram muito e isso aumenta-me o amor. Mas o teatro é onde aprendo mais, onde os processos de maturação, de estudo de uma peça, são mais alargados, há mais tempo para aprender, para absorver. É uma plataforma de comunicação por excelência. Nos tempos que correm, onde tens tudo ao alcance através de um telefone, interessa-me cada vez mais esta experiência teatral, este fenómeno: as pessoas saem de suas casas para ir para uma sala, nós vamos para essa mesma sala, temos um pacto surdo de que vamos acreditar numa história, numa dramaturgia, naquilo que vai ser criado ali, que é uma outra coisa. Este movimento de pessoas apaixona-me tremendamente. Costumo dizer, a brincar, que, no futuro, o teatro será uma experiência gourmet, pagaremos 100 euros por bilhete para assistir a pessoas a falar porque isto está cada vez mais robotizado, mecanizado.
O que é um bom espetáculo?
Costumo dizer na nossa companhia, na Teatro Nacional 21, que um bom espetáculo existe quando alguém do público sai porque é sinal que aquilo está a incomodar de alguma forma – não de forma mais agradável, senão a pessoa não sairia -, mas não interessa, alguma coisa está a chegar lá. Adoro esses mecanismos. Um bom espetáculo tem de tocar de alguma forma.
Alguma vez pensaste parar?
Já. Tem tudo que ver com os processos de aprendizagem.
Dizes uma coisa curiosa: é como um cão que precisa de mudar o pelo.
Sim. Outra analogia: as árvores também perdem as folhas e ficam feias. Precisamos, falo por mim, perder tudo o que é necessário, ficar feio, se quiseres, para renascer. É nesses recomeços que te reinventas e aproveitas tudo que está à volta.
Tens uma carreira internacional, séries na Netflix, mais recentemente protagonista de uma produção internacional “El Presidente”. Estas conquistas têm um sabor especial?
Claro que têm. Têm que ver com uma coisa muito básica que é expandir a vontade e o amor por aquilo que faço por outras pessoas, por outros mercados, por outros realizadores, por outras formas de trabalhar. É uma conquista, é trabalho puro e duro com que tive a sorte de ser recompensado.

As plataformas de streaming são boas montras da produção nacional?
Há duas perspetivas. Claro que são uma montra de excelência onde se consegue aceder a mais mercados, outros realizadores, outros castings. De certa forma, vais angariando património e currículo para chegar a outros mercados. Temos uma massa crítica brutal, atores, realizadores, técnicos, produtores. É uma plataforma para nos expandirmos. Por outro lado, à imagem do que se está a passar nos Estados Unidos, uma das razões centrais da greve [em Hollywood] tem a ver com esta polarização e descaracterização daquilo que fazemos, ao ponto de pensarmos que é possível substituir um argumentista através da inteligência artificial, ou mesmo um ator, passas um dia com ele, scaneias a cara toda e podes usá-lo as vezes que quiseres. Querem substituir o talento por máquinas, mas o talento não se substitui. O streaming tem estes dois lados, para mim. É ótimo, potencia o que se faz cá, abre portas a atores novos. E também tem esse lado de banalizar de tal forma que, se calhar, és dispensável. Fazer por menos dinheiro e faturar mais. Tão simples quanto isto.
Vários prémios, dois globos, onde os guardas?
Lá em casa, dou-os às minhas filhas. Há aqui um lado importante, primeiramente, falar das pessoas que não são visíveis na câmara, nomeadamente as equipas técnicas, os realizadores, e agradecer obviamente aos meus colegas atores, porque sem todos eles o resultado daquele trabalho não seria o mesmo. Portanto, se estou ali também é graças a eles. Ponto final.
És um homem agradecido?
Tenho de ser, é inevitável com tudo o que está a acontecer no Mundo, tantos conflitos. Estimula-me as pequenas coisas, agradecer quando acordo, consigo mexer a mão, levanto-me, tomo banho sozinho, obrigado. Agradecer usando o meu corpo, a minha experiência e a minha vontade de trabalhar ao limite. É a forma que tenho de retribuir. Eu sou um pouco um eco das pessoas que estiveram antes de mim e sou responsável por aquelas que vêm depois. Tenho, no mínimo, que manter aquilo que me foi passado e, se possível, acrescentar alguma coisa para aqueles que hão de vir. Se, de alguma forma, conseguir pontuar a narrativa, estarei cá para isto.
Emocionalmente onde guardas os prémios?
Guardo-os numa lógica muito simples. Nunca tomo nada por garantido. Os prémios dão-me esta impressão imediatamente. Nessa lógica, alimentam um bocado a besta que está dentro de mim.
Como foi a experiência do filme sobre os heterónimos de Fernando Pessoa?
Um universo absolutamente infinito, o Pessoa. Há um detalhe determinante. Este filme foi rodado há três anos, em plena pandemia, testávamos todos os dias, o elenco e a figuração. Estamos a falar de quase 100 pessoas num hotel. Não havia abraços, não havia beijinhos. E, de repente, chegámos ao hotel, começo a olhar, “espera aí pessoal, estamos todos testados, está tudo bem, ninguém tem nada, então podemos dar um abraço”. E esse gesto foi uma libertação, quase uma revolução, termos possibilidade de nos abraçarmos, dar beijinhos, uma energia brutal que contaminou o filme todo. O Fernando Pessoa libertou-se em mais de 100 heterónimos. Que cabeça é esta? Que homem é este? Que necessidade de se reinventar é esta? Tínhamos de ir com uma vibração semelhante de isto é único e foi único para nós. Foi libertador fazer este filme, ainda por cima Álvaro de Campos, um dos meus heterónimos favoritos. Ele tem várias fases, pegámos na industrial: destruir para criar. E esta ideia de destruir para criar fascina-me, atrai-me, porque é um bocado aquilo que fazemos, destruímos processos e construímos logo outro mundo a seguir, destruímos um mundo e construímos outro. E foi um carrossel neste caleidoscópio que nos levou quase a uma espiral de loucura. Foi um prazer este mergulho, este salto de fé, no universo do Pessoa com esta bandeira da liberdade e da revolução que veio de um simples abraço.

Como é que a cultura está a ser tratada pelo poder político?
Há uma falta de pensamento estrutural e, infelizmente, não é só na cultura, é na saúde, é na educação, é na organização do património. Anos e décadas e governos atrás de governos, de esquerda ou de direita, e uma desresponsabilização, a cultura não interessa, não há uma política. Há um foco numa cultura de massas, que é importante, o entretenimento se quisermos, mas as pequenas manifestações artísticas, tão ou mais vitais e fundamentais para dinamizar uma sociedade plural e aberta, estão a ser altamente castradas. Não há um pensamento e isso é altamente preocupante, colegas deixam de ser atores, pessoas passam fome, famílias ficam desestruturadas. Há uma falta de apoio tremenda que é de lamentar. Não vou pôr um sapateiro, com o devido respeito pelo sapateiro, a fazer uma neurocirurgia. Não vou pôr uma pessoa que é gestor, puro e duro, à frente do Ministério da Cultura, por mais gosto simpático pela música que possa ter, porque usa umas pulseirinhas que dão ideia de que é muito culto, muito festivaleiro, seja o que for. Tem de ser muito mais do que isso. Podemos fazer alguma coisa diferente? Pôr alguém do meio à frente do Ministério da Cultura seria interessante. Podemos cruzar o Ministério da Cultura com o Ministério da Educação, é surreal como é que não se pensa nisso. Há tanta coisa para fazer, algo musculado. Fazer um levantamento das várias associações criativas das pequenas comunidades, que são fundamentais para dinamizar uma aldeia como Arronches, no Alentejo, que tem uma associação cultural que dinamiza a povoação.
As escolhas políticas estão a desperdiçar massa criativa e talento?
Sem dúvida. É uma tristeza pegada. Este país é uma sucessão de milagres, mas estes existem mesmo, não em cima de uma oliveira, no sentido em que fazemos milagres com orçamentos completamente surreais. Há um hábito instalado: “Eles trabalham bem com menos, eles fazem tudo acontecer com menos”. E é verdade porque a massa criativa é tão boa que, de facto, consegue reinventar mundos com pouca coisa. Estamos habituados por defeito, agora experimentem fazer isto com dinheiro, vamos potenciar, vamos experimentar, seria tão bom para toda a gente. A cultura tem uma perspetiva económica rentável. A cultura é um investimento, a cultura tem essa perspetiva economicista, pode ser uma linguagem que eles percebam – eles, o poder, o Governo. Porque é que não se investe? E é muito rentável em mentes brilhantes, em mentes diferentes que pensam com sentido crítico. É gravíssimo o que se está a passar. Há pessoas que ainda não receberam dinheiros de apoios da pandemia. Estamos a falar deste nível de desrespeito. E, por parte da tutela, zero respostas. É mais um erro, não se pode criar um muro com o tecido artístico deste país.
Tens muitos projetos para 2024?
Muita coisa. Uma novela na SIC, uma digressão de três espetáculos pela Europa, no âmbito da bienal BoCA. Entro no espetáculo “A casa dos pais”, de uma companhia do Porto, encenado por dois grandes amigos, o António Parra e o Luís Araújo. O espetáculo “O meu amigo H” vai estar em digressão também. Vou dirigir outro espetáculo a partir do universo de Bergman, “Os demónios não gostam de ar fresco”, um texto de Maria Quintans, estrearemos no São Luiz. Vou fazer a segunda temporada de “Rabo de Peixe”, apesar de a minha personagem ter morrido, vai existir num formato especial, e tenho uma proposta de uma outra série internacional que quero muito fazer. Isto até junho. Depois, em setembro, tenho outra empreitada, mais teatral, à partida vou fazer um texto de Strindberg, “O pelicano”, no São João. Muitos projetos com o Teatro Nacional 21 e muita coisa a acontecer.
Tens medo de te tornares um fóssil de ti mesmo?
Não quero correr esse risco. Ter filhos é uma boa coisa, eles não te permitem fossilizar, estão sempre a fazer upgrades permanentes, diários de tudo e mais alguma coisa. Trabalhar com gente nova é uma forma de não solidificar nas minhas certezas que não valem nada, que são dinamitadas a partir do momento que me cruzo e falo com um ator recém-formado. Sim, é muito importante não cristalizar porque não seria justo comigo e com o público.