Joel Neto

Agora é para valer


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

E o dia em que ele pela primeira vez olha para nós no meio de uma multidão, à procura de segurança? Ah, esse é outro dia mágico, para cujo desvendamento eu não me tinha preparado.

Estávamos na Serretinha, na festa dos 18 anos do Afonso. O Gerardo e a Honória tinham convidado imensa gente, e o Artur andava de colo em colo – do avô João para a tia Romana e desta para já não sei quem, até quase o perdermos de vista. Era a primeira vez que ia a uma festa grande, e nós celebrávamos com entusiasmo a confirmação do seu impulso gregário: o modo como fixava um rosto, e se virava em busca do seguinte, e mudava para os braços de novo conviva, e a cada um deles sorria com um misto particular de simpatia e curiosidade.

Até que, consciente do turbilhão em que fora apanhado, voltava a encarar um de nós como a uma coordenada. Primeiro foi a Marta, conversava eu com o Morais. Depois fui eu. Pus-me a um canto da sala, a beber uma cerveja com o Jorge, e talvez ele tenha ouvido a minha voz. Quando sentiu que era necessário, rodou a cabeça por entre as pessoas, a tentar identificar-me, e deixou-se a olhar para mim, como se dissesse a si mesmo que estava tudo bem, que não havia perigo, que era até agradável continuar ali.

Só se descontraiu quando os meus olhos encontraram de volta os dele. E eu podia dizer que o senti como uma prova de cumplicidade. Como a demonstração de que têm valido a pena aqueles biberões nocturnos, aquelas caminhadas matinais a dois, aqueles passeios a cinco ao fim da tarde – e ele sempre no pano, ao meu peito, suando os dois um contra o outro. Mas a verdade é que o senti como uma declaração de amor.

Não amei o meu filho no momento em que o vi. Desejei-o muito, assisti ao seu nascimento como a um milagre, tive a certeza de que podia amá-lo infinitamente. Mas os homens não carregam os filhos na barriga. Passam aqueles nove meses numa antecipação que às vezes é esperança e outras ansiedade, e alguns até têm motivos para desconfiar. Eu tinha: já havíamos sido vítimas de um aborto. No momento em que finalmente o ouvi chorar, do outro lado do biombo da cesariana, senti sobretudo alívio – e desatei a chorar também.

Mas, de repente, ele fixa os meus olhos no meio de uma sala cheia. Apazigua-se no meu colo durante um choro convulsivo. Pede-me que o segure sentado, de modo a poder observar o Mundo de frente. Procura a minha solidariedade, aflito, quando tem entorpecimentos digestivos. Esforça-se por levar à boca e morder a girafa Sofia, como algo lhe diz que eu espero que ele faça. Vai para o colo da Taia, de modo a deixar-nos comer, e fica ali a ouvi-la, à espera: “Lá longe na floresta/ um cuco a cantar…”.

É oficialmente uma pessoa, não apenas um bebé. Uma pessoa que se ama porque é nossa, mas que se começa a amar também porque é ela própria. Porque tem já não apenas impulsos, mas desejos, medos, irritações, generosidades, humor.

Uma pessoa. E esta, em particular, parece poder ser compassiva, que é o melhor de tudo. Mas isso será mais perigoso celebrar já, porque precisamente agora começa a altura em que, ao mínimo deslize, podemos atravessar-nos no caminho dela. De um momento para o outro, não vejo maior precipício do que esse.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)