Valter Hugo Mãe

Abrir a cidade


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O Porto está a abrir as suas portas e sabemos bem que não foi exactamente o brio ou a arte que motivaram tal coisa. Foi o dinheiro que os turistas trazem. Subitamente, quem tiver algum canto de interesse, pode colocar um cartaz na entrada e pedir quaisquer cinco euros por visitante que, inequivocamente, busca a foto para as redes, talvez um TikTok, algo que ilumine a viagem e faça parecer que é Disney em toda a parte.

Gosto muito que as portas se abram, porque a vida inteira por aqui andei e não teria outro modo de saber o que escondem os granitos da cidade. Contava-se que aqui e ali estavam quadros e catacumbas, bibliotecas particulares e vistas deslumbrantes em janelas perfeitas, mas poderia ser apenas mito, uma boca grande do povo que tem a mania de inventar. Hoje, as moedas dos turistas estão a revelar tudo. E os moradores, ainda atordoados com o novo Porto, vão a rasto desconfiados e até incrédulos.

Entrei na Igreja do Carmo, onde se costumava entrar de graça e sem peneiras. Agora, pagam-se quatro euros e meio e dão-nos acesso às partes privadas do edifício. Lembrava-me de a igreja ser lúgubre, triste, de figuras pesadas e algo macabras, mas não podia imaginar que agora se abrem os fundos, com ossadas à vista e um caixão e mais não sei quantas relíquias, e eu quis ver muito mal para não me deparar com mais ossos e dentes e cabelos.

Toda a minha candura vai ao charco com estas fúnebres colecções. Para mim, despedaçar os mortos e guardá-los em nicos como amuletos é aberrante, primitivo, ofensivo, grotesco. Os mortos deviam ser deixados ao pó, sem qualquer espectáculo nem valor de comércio. A morte não pode ser senão sincera.

A Igreja do Carmo é procurada por todos os turistas por ter uma magnífica fachada de azulejo português. A toda a hora ali estão pessoas a fotografar, e a fotografarem-se diante daquela arte. Imagino que entrar por aquelas portas seja na esperança de ver uma beleza semelhante, uma decoração alva e limpa, uma adoração toda ela celebração. Contudo, lá dentro, à pouca luz e em espaços exíguos, o que há é a tradução do sofrimento e da morte. Tudo quanto parece humilhar a vida, culpar a vida de sua tão esforçada construção. Que raio me haveria de dar se, numas férias rápidas, a procurar sentir-me bem e merecedor de uma viagem low-cost ao Porto, me deparasse com a miséria fúnebre da Igreja do Carmo? Haja paciência para o culto da tristeza e da depressão.

Sei bem que as igrejas são o cúmulo de séculos mas parece-me que de tanta morte ostentarem só parecem querer morrer também. Não há futuro nisto. Um templo tem de ser uma experiência de amor e acolhimento. Não pode mais ser um lugar de horror. Ponderar sobre a transcendência tem de ser ao encontro do espírito e, por isso, do imaterial. Mostrar cadáveres é o contrário. É dar o corpo como manifesto de transcendência quando ele, por definição, é o que fica. O que não presta. Aquilo que tem de voltar ao pó.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)