A vizinhança e toda a diferença que ela faz

As relações de proximidade, os cumprimentos que sabem bem, a entreajuda na porta ao lado. Os direitos e os deveres, os problemas e as dificuldades, os espaços comuns, a convivência debaixo do mesmo teto. E os bons exemplos que perduram e mostram que há vizinhos para todas as ocasiões.

A avó Emília decalcava o provérbio que lhe ficou para sempre no ouvido: “Mais vale um vizinho à mão do que ao longe o nosso irmão”. O ditado tornou-se uma máxima para Margarida Botelho, professora de Inglês no Ensino Básico e Secundário, que deixou a aldeia para estudar na cidade e ficou a viver em Aveiro, família longe. Há um ano que mora num prédio de três andares, no centro, mais de 30 apartamentos e respetivos agregados. Criaram um grupo no WhatsApp para resolver situações do quotidiano, o portão da garagem avaria e é preciso ligar para o condomínio, discutir assuntos antes das reuniões para levar ideias alinhavadas e não perderem demasiado tempo. Agora querem comprar um compostor coletivo e trocam impressões para uma solução que seja útil a todos em nome do bem comum. É boa vizinhança. “O grupito de WhatsApp tem funcionado muito bem”, garante.

Há coisa de dois meses, era domingo, quase tudo fechado, Margarida Botelho queria acender a vela de um bolo de aniversário, não tinha fósforos, não tinha isqueiro, escreveu uma mensagem no grupo, problema resolvido em minutos. “Apoiamo-nos uns aos outros”, refere. “Ninguém é uma ilha.”

Margarida Botelho valoriza essa proximidade que, apesar de tudo, deve ser doseada. “Há dois princípios que não devemos descurar nas relações de vizinhança: mantermos a privacidade e não sermos chatos.” “Temos de tentar encontrar esse equilíbrio: estarmos disponíveis e solícitos para ajudar no que precisarem e não nos imiscuirmos nas suas vidas”, defende. Cada vizinho no seu mundo, sentindo a presença dos outros paredes-meias, na mesma rua, no mesmo bairro, dispostos a ajudar. Antes de se mudar, Margarida Botelho viveu numa casa numa rua com moradias, de um lado casais mais novos e de meia-idade, do outro, idosos reformados, alguns sozinhos. Tinham os números de telemóveis uns dos outros, um pneu em baixo para encher, qualquer desenrasque, cumprimentos, dois dedos de conversa. Durante a pandemia, uns ofereceram-se para ir à farmácia e às compras para outros que precisavam. “Com esse apoio, evitava-se que os mais idosos saíssem de casa”, recorda. Há vizinhos que entraram na sua vida, festas em conjunto, convites para aniversários dos filhos uns dos outros, até férias em conjunto com alguns. Há contactos que perduram. É como uma turma, compara Margarida Botelho, há vizinhos que ficam amigos para sempre.

Margarida Botelho faz parte de uma comunidade mais vasta, do grupo Vizinhos de Aveiro, com quase 40 mil seguidores no Facebook. Costuma partilhar anúncios de emprego, entre pesquisas que faz e fotografias que tira em vitrinas de estabelecimentos comerciais. “Basta estarmos atentos à necessidade de alguém e lançar um apelo.” O Vizinhos de Aveiro surgiu num contexto muito particular, numa sexta-feira 13, a 13 de março de 2020, em plena pandemia. Havia medo, havia ansiedade. Em 48 horas, mais de oito mil membros, numa semana mais de 100 mil comentários e interações, numa plataforma de vizinhos numa geografia tão extensa como Aveiro para ajudar no que for preciso, a encontrar um cão perdido, a partilhar contactos de médicos e especialistas em várias áreas, dicas de compras e vendas, arranjos, recomendações de tudo e mais alguma coisa.

Num primeiro momento, como um espaço digital de entreajuda numa pandemia, serviços ao domicílio, responder a necessidades dos centros de saúde e do hospital, atividades culturais e físicas à distância, a Linha do Vizinho, linha telefónica para grupos de risco e com dificuldades de acesso à Internet, no município aveirense.

Entretanto, os Vizinhos de Aveiro fizeram um piquenique e criaram o Cidadania Lab, no âmbito do Orçamento Participativo, o primeiro laboratório cidadão municipal criado por iniciativa da comunidade com um espaço de participação ativa e aprendizagem coletiva para debater projetos comunitários.

Boa Vizinhança é um outro projeto que nasceu mais a sul, em Lisboa, há cerca de dez anos. Cristina Velozo e duas amigas vizinhas queriam fazer alguma em termos de proximidade e de atividade social, falaram com a então presidente da Junta de Freguesia de São Mamede, agora autarquia de Santo António, organizaram o dia do vizinho, uma feira de artesanato, conversaram com instituições ao pé da porta, que pouca gente conhecia. Queriam ajudar. Abriram a Dona Ajuda, no Mercado do Rato, uma loja social com tudo que se possa imaginar, artigos novos e em segunda mão, não perecíveis, roupas, sapatos, livros, brinquedos, aberta de segunda a sábado das 10 às 18 horas, até às 19 no verão. Uma loja aberta à comunidade que recebe gente referenciada pelas instituições que pode levar o que lhe falta em casa, numa quantia estipulada. “Vivemos de doações”, adianta Cristina Velozo.

A loja solidária Dona Ajuda, no Mercado do Rato, em Lisboa, é uma das pernas do projeto Boa Vizinhança, que conta com 50 voluntários, que permite ajudar quem precisa e trabalhar com instituições, que continua a promover boas relações entre quem vive e trabalha na freguesia de Santo António
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

O projeto cresceu, são 50 voluntários neste momento, tem uma perna social com a Dona Ajuda, uma perna cultural batizada de Praça com vários eventos, lançamento de livros, apresentação de artistas emergentes e ainda uma perna ambiental no projeto Reviravolta.

A lei e as regras do condomínio

Luísa Conceição faz parte do grupo Vizinhos de Aveiro desde o início, é uma das administradoras da página do Facebook. “Começámos na lógica do vizinho da porta ao lado, estávamos em pandemia, tínhamos de fazer algo, sabíamos que as relações na comunidade iam ser bastantes afetadas, que havia gente que não ia conseguir ultrapassar as dificuldades do dia a dia”, lembra. Surgiu o apelo para se colocar contactos de quem precisava e de quem estava disponível para ajudar nas portas dos prédios. Criou-se uma rede de vizinhança cada vez mais alargada. Um senhor em cadeira de rodas precisava de obras em casa por não se conseguir mover muito bem. Os Vizinhos de Aveiro lançaram o apelo. “Conseguiu-se a verba, fizeram-se as obras.” O grupo permitiu também “aproximar pessoas que já não se viam há muito tempo, a retomarem a ligação”, revela Luísa Conceição.

Entradas que são comuns, o mesmo teto para várias habitações, os bons-dias, os barulhos fora de tempo, os animais, os hábitos, as regras de boa convivência, abrir a porta para deixar passar, ficar com as encomendas ou cartas quando o vizinho não está, perguntar se precisa de alguma coisa, o mal-estar. Ser vizinho implica muita coisa. As regras básicas de boa vizinhança, civismo e boa educação, são fáceis de entender, desde respeitar a lei do ruído, a não lavar varandas com baldes de água e produtos tóxicos, a não estacionar o carro fora do lugar de garagem. Há uma lei geral, para todos, e há o que se define em cada prédio de habitação coletiva. “O regulamento de cada condómino pode limitar ou ampliar essas regras”, explica Daniela Trindade, jurista da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor. Se, por exemplo, todos os habitantes de um prédio, por unanimidade, decidirem que não querem animais de companhia, não há animais. O consenso tem de ser total, caso contrário, prevalece a lei geral. “É uma matéria muito árida”, admite a jurista. O bom senso é essencial.

Sacudir os tapetes no terraço ou grelhar peixe na varanda quando os vizinhos debaixo têm roupa a secar no estendal. Pingas misturadas com detergentes que caem nas plantas de exterior dos pisos inferiores. Festas das 23 horas às 7 da manhã com frequência dão cabo dos nervos. Lavar ou aspirar carros na garagem significa gastar água e luz de todos. Há limitações, normas, desafios e problemas. Direitos e deveres.

Luísa Conceição mora num prédio no centro de Aveiro, nove apartamentos, três habitados. As relações de vizinhança fazem muita diferença, assegura. “Há sempre uma maneira de ajudar, de uma forma ou de outra, um bom dia, uma boa tarde, só saber que nos cumprimentam e que nos respondem é reconfortante, que há sempre alguém que está presente”, comenta.

Luísa Conceição faz parte do grupo Vizinhos de Aveiro, com quase 40 mil seguidores no Facebook, que nasceu em plena pandemia e hoje está disponível para dar apoio aos habitantes da cidade e do município
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

A promoção de boas relações entre quem vive e trabalha na freguesia de Santo António, em Lisboa, continua a guiar os passos do projeto Boa Vizinhança. O trabalho e a dedicação dão frutos. “Há uma grande proximidade com as instituições à volta, o projeto cresceu, passou para um conceito de vizinhança global. Vivemos num mundo global, somos todos vizinhos”, observa Cristina Velozo. O projeto vê sempre mais além. “Conhecem-se mais pessoas, as que moram e as que trabalham aqui. Vizinho é quem trabalha e quem vive.” Cristina Velozo não tem dúvidas. “Se cada um mudar o seu metro quadrado, muda um bocadinho o Mundo.”

O planeamento urbanístico, o funcionamento dos territórios, a proximidade dos seus habitantes, as interações que se estabelecem, as relações que se criam. Está tudo interligado. Luís Cunha, antropólogo, professor do departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da mesma faculdade, analisa esses aspetos num olhar mais geral e mais local, ora global, ora particular. “Onde há humanos há empatia, mas também um potencial de tensão”, repara. Por vezes, a balança desequilibra-se. A mobilidade já não é o que era, vive-se menos tempo nas mesmas casas. Há uma maior diversidade cultural, mais gente de diversas geografias na mesma cidade, hábitos culturais diferentes. “Esse potencial de tensão tende a aumentar, as diferenças podem gerar animosidades.”

As cidades, para Luís Cunha, precisam de ser pensadas de uma forma mais fragmentada, a ideia de associações de moradores não devia ser colocada na gaveta. Uma forma de partilhar e discutir problemas, necessidades e vontades de gente que vive próxima. “A pandemia mostrou que há um potencial a esse nível”, diz o antropólogo. Uma maneira de criar boas relações de vizinhança. “Uma forma mais participada que não tem sido muito explorada”, concretiza. Pouco estimulada sobretudo do ponto de vista político. Ou cada um no seu canto ou todos juntos no propósito de melhorar o espaço onde se vive, ter ou não ter mais árvores nos passeios, ter ou não ter mais estacionamento junto aos prédios.

Daniela Trindade toca em vários aspetos. A emissão de fumos, os vapores e cheiros, as trepidações, são de evitar. Música alta em horas impróprias também. Obras sem aviso idem aspas. “Não se pode modificar a linha arquitetónica e estética do edifício”, avisa. Tudo o que traga prejuízos à vida dos outros, ao uso e usufruto do imóvel, não pode ser. Tudo o que incomoda, no fundo. “Cada condómino é proprietário exclusivo do seu apartamento e coproprietário de espaços comuns”, sublinha Daniela Trindade. Há uma propriedade que é de todos e, por isso, cuidados a ter. Fechar a porta de entrada, não colocar objetos em zonas comuns que dificultem a circulação, cumprir as regras do regulamento.

O que fazer com os maus vizinhos? Primeiro, tentar o diálogo. “A via diplomática, encaminhá-lo para as normas que estão implícitas no regulamento de condomínio”, aconselha a jurista da DECO. Se não funcionar, é possível avançar para a justiça, acionar o vizinho judicialmente, seja através dos Julgados de Paz ou de um tribunal judicial. “Não temos todos os mesmos hábitos, os mesmos horários. Há um enorme conjunto de situações que podem acontecer nas relações de vizinhança que são suscetíveis de gerar um desentendimento”, alerta Daniela Trindade. Há bons e maus vizinhos, portanto.