
Em 165 anos, a Santos & Irmãos criou, restaurou e dourou a folha de ouro centenas de peças. Uma casa-museu familiar que já vai na sexta geração.
Os respiros da cidade encaixaram-na num triângulo. A Santos & Irmãos partilha vistas com a Rua do Estevão, a Rua do Bonjardim e com a Travessa das Liceiras. Mas é nesta última que tem morada. É aliás a número 1. E não só de porta. Foi a primeira oficina de molduras do Porto. É uma das mais antigas da Europa. Mas a família alarga horizontes e garante que é do Mundo.
Em 1858 José dos Santos, estudante da então Academia Real de Belas Artes do Porto, deparou-se com um problema sério. Necessitado de encomendar molduras para os seus trabalhos não tinha na Invicta nenhuma porta onde bater. Resolveu a questão fazendo-as ele próprio. Os colegas gostaram do estilo, da perfeição, e José, o artista – quanta ironia ter também nome de carpinteiro -, começou a receber tantas encomendas que precisou de abrir uma oficina. O irmão António ajudava. Não houve, portanto, ciência na escolha do nome da casa. Naturais de Oliveira do Douro, fez-lhes sentido que a loja abrisse numa zona central do Porto. O comércio sempre funcionou no rés do chão. Na cave, armazém e oficina. Nos pisos superiores, o alojamento dos trabalhadores, que ir e vir da terra, naquela época, demorava, um dia ou mais.
A casa ficou para sempre ligada aos artistas da cidade e do país. São inúmeros os moldes criados por figuras de renome: João Marques de Oliveira, António Carneiro, Henrique Medina, Fernando Lanhas ou Noronha da Costa.
Hoje, e à primeira vista, Guilherme Monteiro, com 34 anos, parece deslocado. Acerca-se do balcão e contrasta com tudo aquilo. Jovial, veste t-shirt e calções, usa sapatilhas, um arqueologista industrial de formação, dono de uma cadela velhinha e muito meiga que descansa no fundo daquela loja forrada a moldes e molduras antigas, peças douradas e por dourar, serigrafias, dois cristos, um deles sem braços, suspenso, não pregado, numa tábua de um restauro antigo a uma capela da Régua. A maior parte de tudo aquilo está para venda. Algumas peças pertencem a clientes que ali as colocam à consignação. Depois há as que não têm preço. Dois autorretratos do fundador, o hexavô de Guilherme, um a óleo, outro a grafite. José dos Santos, muito sério, vestido com o primor da época em que viveu, há 165 anos. O primeiro dono do negócio e o mais recente não podiam ser mais diferentes no estilo e mais iguais na paixão pelo número 1 da Travessa das Liceiras e por tudo o que nela se faz, que vai além das molduras.
Neste momento são quatro trabalhadores. Guilherme, a mãe, Dolores dos Santos Soares, o pai, José Monteiro, e um trabalhador de longa data, o Teixeira. Cada um a seu tempo doutorou-se na Universidade da Santos & Irmãos. Sabem dourar e restaurar molduras e obras de arte, atender clientes, gerir orçamentos. Também montam exposições, dão consultoria a clientes que pedem conselhos sobre artistas e obras de artes. O irmão de Guilherme, Daniel, com 23 anos, também ali já anda, a “estagiar”.
A casa assistiu ao fim da Monarquia, à Implantação da República, sobreviveu ao Estado Novo, passou o 25 de Abril, e tantos outros marcos. Mas a memória recente leva Guilherme a destacar a crise de 2007 e a pandemia como as piores crises. Curiosamente sobreviveram a ambas graças ao restauro de molduras e não tanto ao fabrico de novas. “As pessoas começaram a valorizar o que já têm”, reconhece Guilherme. Há quem o faça com atraso.
“Uma vez veio aqui um cliente e nós não estávamos a encontrar nenhum talão com aquele nome. Perguntámos: ‘Há quanto tempo deixou cá a peça?’ Foi há 20 anos, respondeu-nos. Fomos ao armazém, a peça estava lá.”
A Santos & Irmãos nunca esteve à venda, mas houve algumas ofertas. De todo o tipo. “Uns espanhóis quiseram comprar todo o espólio da casa. Em 165 anos, acumulámos um conjunto de registos de clientes, que incluem, por exemplo, Ramalho Ortigão e Abel Salazar, temos também centenas de moldes, o que é muito valorizado. Mas mantivemo-nos aqui. Firmes e teimosos.” Os montantes nunca se sobrepuseram ao mais importante. “Temos responsabilidade para com a nossa história, mas também para com as pessoas e a cidade. Mantemos este espaço aberto, acessível e nos mesmos moldes que a cidade sempre o conheceu.” Uma casa de comércio e um museu. Onde se encontra uma máquina registadora com mais de 110 anos, uma fotografia de 1912, em que se vê o mesmo balcão de hoje, amostras originais de molduras que continuam na loja, um banco de madeira que ainda ali anda, como novo, um quadro com faturas do século XIX. ” É por isso que não enriquecemos, fazemos as coisas para durar”. E contra factos não há argumentos.
Santos & Irmãos
Atividade: Fabrico de molduras e restauro de obras de arte
Data de fundação: 1958
Localização: Travessa das Liceiras, 1, Porto
Número de funcionários: 4
Cronologia
1859 É fundada a Santos & Irmãos, a primeira casa de molduras do Porto
1900 A oficina participou da Exposition Universelle de Paris e levou a medalha de bronze pelas peças apresentadas
1910 É inaugurado o Palácio da Bolsa onde se podem admirar os dourados feitos pela Santos & Irmãos
1931 A escultura de Henrique de Moreira, na Avenida dos Aliados (Porto) também foi dourada pela casa
1958 A Santos & Irmãos completa 100 anos e organiza uma exposição de arte de grandes mestres da pintura portuguesa

2018 A casa e oficina é distinguida como estabelecimento Porto de Tradição
