A roupa contrafeita está na moda

Há uma multiplicidade de fatores, individuais e de contexto, que nos levam a querer comprar

A contrafação representa cerca de 7% das transações comerciais no Mundo. O preço é fator para se comprar imitações, mas não só. Há a imagem que se deseja passar e a vontade de pertencer a um grupo exclusivo. O Dia Mundial Anticontrafação celebra-se a 5 de junho. Mas este comportamento tem aumentado entre os jovens.

É terça-feira e em Braga arranca mais uma manhã típica deste dia da semana. Depois de ter saltitado, por aqui e por acolá, ao longo dos anos, atualmente a feira semanal da Cidade dos Arcebispos realiza-se numa das principais artérias de saída da cidade, que, neste dia, fica interrompida por algumas horas, enquanto se dá a azáfama de bancas, toldos, compradores e vendedores.

Não é preciso andar muito para encontrarmos a primeira marca estampada numa camisola pendurada numa rede, estrategicamente posicionada para chamar a atenção. É uma das primeiras bancas à entrada do recinto e destacam-se, entre outras, marcas como “Tommy Hilfiger”, “Lacoste” ou “Nike”. Aqui não há letras trocadas ou logótipos aproximados, a roupa é tal e qual (pelo menos em aspeto) a que se pode encontrar numa qualquer loja oficial. A panóplia de marcas e produtos repete-se ao longo do quilómetro de bancas e banquinhas. Bolsas, roupa interior, calçado, fatos de treino. São os produtos que, nesta feira, mais se veem expostos levianamente, apresentando-se como sendo “de marca”.

Paramos numa mesa com carteiras da “Tous”, da “Guess”, da “Prada”, e tantas outras. “Leve, menina, está barato, são só 20 euros.” O preço é realmente cativante, com diferenças de cem euros ou mais para as peças originais. Questionada pela “Notícias Magazine” sobre quem é que é o público-alvo que mais lhe compra, a vendedora, que prefere não ser identificada, não hesita em responder: raparigas jovens. Do outro lado, um outro vendedor, focado na venda de fatos de treino, corrobora. Há os compradores de sempre, os mais velhos, mas a venda para os mais jovens tem aumentado.

Ainda que a venda de produtos falsificados seja um clássico das feiras ambulantes em diversas cidades do país (serão muitos que têm memórias de infância de passear entre pijamas, meias e botas, pela mão das mães ou avós), o fenómeno da contrafação tem-se adaptado aos tempos. Na ordem do dia têm estado notícias de apreensões de produtos falsificados vendidos digitalmente, quer seja em anúncios ou em “diretos” (vídeos transmitidos em direto) nas redes sociais.

Vestuário no topo

Ainda que não seja possível apurar ao certo a dimensão do negócio da contrafação, os números das apreensões podem dar-nos um laivo da realidade. No relatório de 2022 do Grupo Anticontrafação do Governo de Portugal, é possível perceber que as apreensões de vestuário são as mais comuns, representando 36% do total (foram apreendidos 371 847 objetos deste tipo no ano passado).

Em segundo lugar aparecem “outros”, “que compreendem peças e partes que integram e complementam produtos de vestuário, calçado, bem como as próprias embalagens, rótulos e etiquetas”, e que constituem 31% do total das apreensões efetuadas. “Seguem-se as apreensões de perfumes e cosméticos, com 11%, logo acompanhadas das apreensões de acessórios, que totalizam 7%.” Os dados portugueses mostram-nos uma realidade que é possível observar percorrendo uma qualquer feira do país: a roupa é o produto mais contrafeito. E não é de agora.

Apesar de ter havido uma diminuição em cerca de 65% do número total de apreensões face a 2021, indica o relatório, “verificaram-se algumas alterações no tipo de produtos apreendidos”. Os perfumes e cosméticos sofreram um aumento de 77 542% e os acessórios de 93%.

Rui Gomes, professor na Escola de Psicologia da Universidade do Minho, confirma que o fenómeno da contrafação está em mudança. Ainda assim, há coisas que não mudam com os anos. Este é, ainda, um fenómeno que abrange vários grupos e que representa cerca de 7% do comércio Mundial. Em 10 anos, diz o especialista, assistimos a uma subida em cerca de 1700% da circulação de produtos de contrafação. Mas há outros dados a reter: “Os homens têm uma atitude mais favorável à compra de contração, uma vez que as mulheres parecem ter padrões mais éticos e morais”.

O desejo de ter

Mas vamos por partes. Antes de percebermos o que nos leva a comprar produtos falsificados, é importante perceber porque é que desejamos consumir determinadas marcas. “Consumir é um ato intrínseco ao ser humano, trata-se de uma ação com o propósito de atingir um objetivo, suprir uma dada carência”, começa por realçar Ana Margarida Barreto. A professora e investigadora na área da comunicação explica que “a compreensão do processo de compra ultrapassa a esfera individual, na medida em que aos fatores intrínsecos (como as perceções, imagens, atitudes e preferências) juntam-se fatores extrínsecos (como a influência dos grupos de pertença e de referência, os líderes de opinião, os estilos de vida, a cultura e o sistema de valores em que o sujeito se inscreve)”.

Ou seja, há uma multiplicidade de fatores, individuais e de contexto, que nos levam a querer comprar. E no que toca a comprar marcas de luxo? “O indivíduo encontra na marca de luxo um veículo de comunicação dos seus valores, personalidade e estilo de vida.” Ana Margarida Barreto assinala que “estes atos de consumo são uma expressão e reforço de identidade, mas também uma manifestação de autorrealização”. “Esta necessidade pode ser consciente ou inconsciente e variar em grau de intensidade de pessoa para pessoa.”

Rui Gomes, da área da psicologia comportamental, atesta a complexidade dos fatores que levam a uma compra, referindo a alteração que tem acontecido ao longo dos anos na perceção de necessidade de compra. “Há quatro ou cinco gerações, os nossos avós tinham um comportamento de compra associado ao lado instrumental do mesmo. Comprava-se para resolver um problema.”

Massificação do ato de comprar

O professor da Universidade do Minho expõe que a compra como hoje a fazemos “aparece” com a massificação do poder de compra e a revolução industrial. “O ato de consumir já deixou de ter uma razão útil e passou a ser idóneo. A compra torna-se subjetiva.” Ana Margarida Barreto já referiu diversos fatores intrínsecos e extrínsecos à vontade de comprar, mas vale a pena destacar que, no que toca a marcas de luxo, o seu poder simbólico faz com que “a crença de que, se compramos um produto de luxo, pertencemos a um determinado grupo” seja um dos mais fortes, refere Rui Gomes.

“O próprio conceito de luxo é uma construção social e consequentemente evolutiva, na medida em que o que é luxo para uns, para outros pode ser básico. O que era considerado luxo no passado, hoje pode não o ser.” Quem nos dá esta visão de variabilidade das marcas de luxo é a professora da FCSH-UNL, Ana Margarida Barreto.

Já percebemos porque é que desejamos produtos de marca, especialmente marcas consideradas de luxo, mas se idolatramos, de certa forma, esses objetos de desejo, porque é que aceitamos obtê-los através de falsificações? “Eu diria que, tal como os motivos para os produtos de luxo, para comprarmos produtos de contrafação, também há razões multifatoriais”, diz Rui Gomes.

“O preço aparece indicado em todos os estudos da área. Há também a procura por prestígio; a perceção de que se se usar aquele produto, temos todas as sensações do seu uso tal como com o original; não haver perceção da ilegalidade do ato da compra; e, quase que em resumo, o sentimento de ‘compra inteligente ou justa'”. “Eu acho que a peça merece este valor e não o que é apresentado na versão original.” Por todos estes motivos referidos, o professor acredita que acaba por haver uma “tendência para ignorar valores morais”.

Marca falsificada, marca de sucesso

Na ótica das marcas, Ana Margarida Barreto sublinha que “o mercado da contrafação confirma a existência de uma estratégia bem-sucedida de gestão de marca”. Ou seja, em certa medida, a contrafação é quase que uma confirmação do sucesso de uma marca. “A marca torna-se num objeto de desejo pois é um veículo de acesso a esse universo simbólico.” Por outro lado (porque não é apenas um sinal positivo de que a marca em questão tem sucesso), “pode pôr em causa o valor inerente a esse objeto de consumo, já que a noção de luxo está associada ao conceito de escassez”. Se algo se torna banal, mesmo que seja através de falsificações, “o valor de exclusividade e de seletividade perde-se”.

No panorama europeu, os dados não diferem dos apresentados anteriormente para Portugal. Mas, na edição de 2022 do Painel de Avaliação da Propriedade Intelectual e Juventude, divulgada pelo Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), é possível observar uma tendência entre os mais novos. “Mais de metade (52%) dos jovens inquiridos tinha adquirido pelo menos um produto falso em linha durante o ano que passou, intencionalmente ou de forma acidental.”

No caso das compras intencionais de falsificações, o valor encontra-se nos 37 %, “o que constitui um aumento significativo em relação aos resultados anteriores (14% em 2019)”. Os jovens procuram cada vez mais produtos contrafeitos. As áreas de compras “são roupas e acessórios (17%), seguidos de calçado (14%), dispositivos eletrónicos (13%), e higiene, cosméticos, cuidados pessoais e perfumes (12%)”, indica o relatório.

Nos dados recolhidos pela instituição europeia, é possível perceber que o preço e a disponibilidade “continuam a ser as principais razões para comprar produtos falsificados”, mas também “as influências sociais, tais como o comportamento da família, amigos ou pessoas que conhecem”. “Outros fatores incluem não se importar se o produto é uma falsificação (ou se a fonte do conteúdo é ilegal), não notar qualquer diferença entre produtos originais e falsificados e a facilidade de encontrar ou encomendar produtos falsificados online.”

Mudar atitudes

O professor Rui Gomes não vê uma contradição entre este comportamento e a crescente consciência ambiental dos jovens. “Os jovens têm uma preocupação ambiental maior do que as gerações anteriores, mas a atitude e o consumo continuam a funcionar com base nos mesmos padrões.” O especialista em psicologia comportamental refere a importância da influência dos pares na formulação da identidade durante a adolescência para justificar uma grande procura por contrafação nesta faixa etária.

Estando perto do Dia Mundial da Anticontrafação, que se celebra a 5 de junho, vale a pena questionar: o que podemos fazer para alterar estes padrões de consumo de produtos ilegais? Programas de fidelização são uma das respostas, levando o cliente a perceber que o produto oficial tem um valor físico único justificativo do seu valor monetário.

Mas, para Rui Gomes, passa também por uma questão de responsabilidade social das marcas, que, segundo o especialista, começa agora a dar sinais de vida. “Por exemplo, os produtos em fim de linha têm agora sido vendidos pelas marcas de luxo a preços reduzidos, quer seja online ou em lojas específicas para esta área, de forma a democratizar o consumo e a permitir que o cliente com menores posses financeiras possa ter ao seu alcance o item que tanto deseja, não havendo necessidade de comprar falsificado.”

Ana Margarida Barreto fala também deste método de resposta à contrafação, apelidando-o de “novo luxo ou neo luxo”. “Deixa de haver um luxo, mas passa a haver vários luxos. Veja-se por exemplo a diferença entre comprar um quadro ou uma serigrafia.”

Educar para solucionar

Mas, para o especialista da Universidade do Minho, a solução está, em primeiro lugar, na educação. É necessário consciencializar as pessoas para as consequências na economia, no ambiente e até na saúde da compra de falsificações. “Muitas vezes esquecemo-nos que os produtos contrafeitos podem vir a ter impacto negativo no nosso corpo e bem-estar físico, por não estarem regulados segundo as normas impostas ao comércio”, adverte Rui Gomes.

Há 20 anos a contrafação era passivamente aceite como comportamento social. Hoje, diz o professor, começa a ser refletida. “Estamos num ponto de consciência que não estávamos há uns anos.” Começando pela ideia do que é a felicidade humana: se há uns anos o bem-estar e a realização pessoal estavam intrinsecamente ligados ao poder monetário e às posses, hoje começamos a ver uma mudança. “O cognitivo e o social são agora amplamente considerados como a principal fonte de felicidade, e esta é uma fonte inesgotável, sem necessidade de ser falsificada ou comprada contrafeita.”