A luz que pinta o bordado de Castelo Branco

É seda bordada sobre linho e há cerca de 50 pontos. Conta séculos de história e ainda hoje vale horas sem-fim de trabalho às bordadeiras. Os preços podem chegar às dezenas de milhares de euros. Neste mês, a Câmara de Castelo Branco vai candidatar-se à Rede de Cidades Criativas da Unesco, na categoria de Artesanato e Artes Populares.

Um longo bastidor de bordar estica o pano onde está desenhado a lápis aquilo que os pontos a linha de seda vão preencher minuciosamente. Gracinda Marques, Lurdes Baptista e Rosa Gonçalves estão no Centro de Interpretação do Bordado, sentadas de roda do bastidor, de agulha e dedal, a dar vida a um fato do designer Luís Carvalho – e as parcerias com designers de moda já são comuns, de Katty Xiomara a Diogo Miranda muitos já criaram peças com o bordado de Castelo Branco. Rosa tem 64 anos, 52 deles a ser bordadeira, a sina a que não conseguiria fugir por mais que quisesse. Afinal, nasceu na aldeia de Escalos de Cima, freguesia a 13 quilómetros da cidade capital do concelho, onde nos anos 1970 se concentrava a grande produção do bordado de Castelo Branco. “Comecei a aprender com uma senhora mais velha, que já tinha outras pessoas a trabalhar em casa com ela, a bordar as colchas que eram feitas por encomenda. Nessa década, era natural seguir essa vida.” Mal se acabava a quarta classe, o bordado era caminho óbvio para todas as jovens da terra. “Tínhamos que deitar a mão ao pouco que havia. E era uma ajuda para a casa, eu era casada e tinha o meu filho.”

As cinco bordadeiras que trabalham atualmente no Centro de Interpretação do Bordado de Castelo Branco

Divorciou-se entretanto, nunca mais fez outra coisa. Mesmo depois de o bordado de Castelo Branco ter sofrido uma quebra nas encomendas aí nos anos 90, a tradição resistiu graças às bordadeiras que dele fizeram vida, “e a Câmara também começou a puxar por isto”. Desde 2011 que Rosa está no Centro de Interpretação do Bordado, no coração da cidade, oito horas por dia. São cinco bordadeiras a trabalhar ali – chegaram a ser seis, há coisa de ano e meio uma delas reformou-se. Mas há muitas outras a trabalhar em casa, o último levantamento aponta para uma centena no distrito. O mais difícil, confessa Rosa, é aguentar a posição o dia todo, são as dores nas costas a dar de si. Porque os perto de 50 pontos do bordado de Castelo Branco já os sabe de cor e salteado. Gracinda está de frente para Rosa, a andar com a agulha para cima e para baixo, num ritmo imaculado de que nem dá conta, e não consegue evitar meter-se na conversa. “É um orgulho olhar para uma peça e saber que saiu das nossas mãos.” Borda desde os 11 anos, chegou a emigrar para França onde esteve dois anos, correu mal, regressou e foi trabalhar para uma fábrica uns meses. “Não gostei, voltei ao bordado.” Montou oficina em casa, ainda teve dez pessoas a trabalhar consigo, só que entretanto veio a quebra na procura e viu-se “aflitinha da vida, não sabia fazer mais nada”. Até que ouviu uns zunzuns de que iria abrir um Centro de Interpretação do Bordado e teve a sorte de ser convidada para trabalhar ali. A mesma que teve Lurdes, a mais nova das cinco, 55 anos, outra geração, que aprendeu a bordar na adolescência. No verão ia fazer cursos, encantada que era por uma tia bordadeira que trabalhava no Museu Tavares Proença Júnior, onde funcionou uma escola-oficina do bordado durante quatro décadas, até 2017 – e onde ainda hoje estão expostas colchas enormes de outros séculos, o maior espólio do bordado de Castelo Branco.

As colchas e o futuro

Além de se poder ver as bordadeiras a trabalhar, no Centro de Interpretação do Bordado, espaço da Câmara, pode-se conhecer a história do bordado, comprar peças, encomendar à medida. A colcha mais cara que já se vendeu ali custou 30 mil euros – 2600 horas de trabalho, nove meses, seis pessoas agarradas àquela peça feita em cinco tons de azul. Na verdade, foi precisamente nas colchas que tudo começou. O bordado de Castelo Branco surgiu entre finais do século XVI, inícios do século XVII, muito associado aos enxovais das noivas, sobretudo das famílias mais ricas. Acabaria por surgir também a vertente do bordado popular, peças menos elaboradas, com menos motivos e pontos, para dar resposta aos enxovais das famílias mais modestas. Foi em meados do século XX que a tradição viveu o auge. E, claro, tem características únicas: é feito com fios de seda bordados sobre linho (que em tempos era artesanal, mas hoje já se usa industrial). Segue uma gramática decorativa rigorosa, que se diz ser de inspiração oriental, com motivos como a árvore da vida, pássaros, cravos, rosas, lírios, romãs ou corações, repetidos milhares de vezes. Quanto mais preenchida, mais cara a peça. E até há uma palete de cores, dourados, verdes, cor de tijolo, azuis. A luz, a famosa luz dos bordados de Castelo Branco, deve-se à seda, aos finíssimos fios de seda e à forma de os bordar, ora numa direção, ora noutra, que os enche de reflexos.

As colchas que contam centenas de anos expostas no Museu Tavares Proença Júnior

A tradição diversificou-se e modernizou-se, o bordado já não vive só de colchas, mas de painéis encaixados em molduras para pendurar nas paredes de casa, de panos, lenços, bolsas. E a Câmara está apostada em divulgar este saber-fazer. “É uma arte nobre e queremos mantê-la como produto de excelência, não queremos massificar, mas estas singularidades devem ser preservadas”, diz o vice-presidente Hélder Henriques. A Autarquia está prestes a submeter uma candidatura à Rede de Cidades Criativas da Unesco, na categoria de Artesanato e Artes Populares, muito ancorada no bordado. E também vai candidatar o Bordado de Castelo Branco ao Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

Há muito que o Município tem vindo a investir, nomeadamente com a criação de um processo de certificação de bordadeiras – já há cerca de 15 certificadas. Também desde o início de 2022 que tem vindo a lançar uma série de eventos. Está-se a trabalhar numa Rota da Seda e até numa pós-graduação. “A ideia já está a ser aplicada, de certa forma, através de algumas unidades curriculares no âmbito dos cursos de Artes e Design, em parceria com o Instituto Politécnico de Castelo Branco e com a Universidade da Beira Interior.” No meio de tudo, Hélder tem uma certeza: “O bordado vai sair valorizado. Até porque em Castelo Branco temos, de alguma maneira, a cadeia completa, desde a produção da seda ao bordado”.

A seda produzida ali mesmo

Sim, também há produção de seda no concelho, atualmente única no país, e que tem até uma vertente social. É feita pela Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) de Castelo Branco, que quis começar a produzir seda como atividade de ocupação para os utentes (são 620 distribuídos pelas várias valências, entre lares, centro ocupacional ou escola de formação profissional, tudo na área da deficiência) há cerca de 30 anos. Hoje, vende a seda a bordadeiras da região – e não só, recebe encomendas de toda a parte.

Um dos motivos do bordado desenhado sobre o linho e os casulos dos bichos-da-seda de onde se extrai o fio

No meio de uma quinta com 22 hectares, em que dois hectares e meio são ocupados por uma plantação de amoreiras, criam-se bichos-da-seda (é a folha larga das amoreiras que lhes serve de alimento). “Há duas criações, em maio e em setembro”, conta Carla Martins, engenheira agrónoma, que anda de volta de tabuleiros carregados de bichos-da-seda. A produção começou nos primeiros dias de maio, 60 mil bichos. Uma incubadora serve para guardar os ovos, de onde nascem as larvas, primeiro pretas minúsculas, do tamanho de uma cabeça de alfinete, depois brancas à medida que vão crescendo e mudando a pele. “Ao fim de trinta dias, começam a fazer o casulo, um fio contínuo, é o fio da seda pura. O que acontece é que aproveitamos a maioria dos casulos para produzir a seda, desidratamos a crisálida antes da metamorfose para borboleta. Outros, cerca de 500, deixamos que sigam o ciclo normal até que a borboleta fure o casulo, para que depois haja acasalamento e acautelarmos ovos para o ano seguinte”, explica a engenheira.

Castelo Branco, 18/5/2023 – Candidatura de Castelo Branco à Rede de Cidades Criativas da Unesco – categoria Bordado
Museu da seda
Casulos
(Artur Machado/Global Imagens)

É nesta fase que entram os utentes, num pavilhão que mais parece unidade fabril a sério, sentados a uma mesa a limpar os casulos, sincronizados. “Estamos a tirar a anafaia”, justifica-se Rita Sofia Almeida, despachada. Uma fita azul no cabelo, óculos cor-de-rosa, 38 anos. “Gosto disto, não me cansa as mãos.” Estão sempre ajudados por Maria da Luz Carvalho, vestida de bata azul. Ou Luzita, como é tratada, funcionária da associação que aprendeu a produzir seda. “Trabalho aqui há 21 anos. Vim trabalhar nas atividades ocupacionais com os miúdos e lá aprendi a fazer isto.” Entre máquinas e mais máquinas, quase todas cedidas por antigas fábricas de confeção locais, põe os casulos a cozer para conseguir desenrolar, extrair o fio. “Cada casulo dá entre 800 a 1500 metros de fio contínuo”, sublinha. A marca até está registada, chama-se Ecoseda. Vendem cones e meadas.

E nas instalações gigantescas da APPACDM de Castelo Branco ainda mora um Museu da Seda, que conta toda a história e esconde um ateliê para os mais novos. Manuel Barreto, professor de História reformado, albicastrense entusiasta, dedica-se a fazer visitas a escolas, a lares de idosos, a todos quantos queiram passar por ali. “Convidaram-me quando isto abriu, em 2016, estou cá desde o início.” Lá dentro, é até possível ver uma colcha bordada com mais de 300 anos, feita em teares artesanais. Curiosamente, pela cidade, esbarra-se em motivos do bordado de Castelo Branco por todo o lado, na calçada debaixo dos pés ou na fachada de prédios e de escolas à vista dos olhos.

Augusta Gonçalves, dona da Loja da Praça, junto ao Mercado Municipal, sentada frente a um bastidor a bordar

Na Loja da Praça, junto ao Mercado Municipal, a meia dúzia de passos da Câmara, Augusta Gonçalves está a bordar. Sentada de frente a um bastidor que estica o linho, é rápida, meticulosa. Põe os óculos, dedal no dedo médio, molha na língua a ponta da linha de seda rosa para engatar na agulha e desata a trabalhar. “Sou a empregada e a patroa. Abri loja há uns doze, treze anos. E tenho certificação, para o cliente saber que está a comprar uma peça feita à mão e não à máquina.” A mãe não queria que fosse bordadeira, mas em catraia Augusta estudava numa escola na Praça de Camões e habituou-se a ver ali bordadeiras. Vendo bem as coisas, começou a bordar de pequenita, a imitar o que via, fascinada que era pela arte. Foi autodidata. “Não houve ninguém a ensinar-me propriamente. Aprendi a ver na minha mocidade. E o que faz uma bordadeira é a prática.” A vida meteu-se pelo caminho, casou aos 18, teve dois filhos, montou oficina em casa, “era doméstica e bordava”. Fazia feiras, vendia por encomenda. Até ter a própria loja, o sonho de uma vida. “E nunca me faltou trabalho até hoje.” Clientes? São mais turistas, “espanhóis, brasileiros, franceses, belgas, há dias um casal italiano”, se bem que também tem clientela fiel da terra. Chegam-lhe à loja com imagens que servem de inspiração e daí Augusta faz um rascunho em papel vegetal – a partir de desenhos que já existem. “Quando vou bordar, o ponto que uso depende da minha inspiração na hora.” Chega a levar quatro meses para bordar um painel.

A formação para manter o saber-fazer

O tempo de trabalho até podia assustar quem só agora pensa aventurar-se na arte, mas não parece dar-se o caso. Diana Mendonça, 36 anos, decidiu mudar de vida, era assistente social, nos últimos anos trabalhava como diretora técnica num centro de dia, despediu-se em 2020. E está, agora, a fazer uma formação de bordados. Foi exatamente a pensar no futuro do bordado de Castelo Branco, em trazer jovens para a arte, que a Câmara promoveu, em parceria com o IEFP, cursos de formação de bordados, particularmente dedicados ao bordado de Castelo Branco. Diana está na Fábrica da Criatividade agarrada a um pequeno bastidor. Uma sala cheia de mulheres, a formação começou em março, acaba em setembro, sete horas por dia, cinco dias por semana. Chegaram a ser 23 formandas, algumas desistiram, são 18. “Não vim por estar desempregada, encaminhada pelo centro de emprego como outras colegas, vim mesmo por vontade própria, de aprender.” É preciso dizer que Diana tem uma paixão pelo bordado desde miúda, aprendeu ponto de cruz aos seis anos. E ultimamente pôs-se a ver vídeos no YouTube de bordado livre. Já bordou fraldas, babetes, para amigos e família. “O mais difícil do bordado de Castelo Branco é bordar com seda. Nos outros, bordamos com linhas de algodão, e a seda é mais difícil. Mas torna o bordado mais brilhante, mais bonito.” O jeito para trabalhos manuais é de sempre e talvez venha a abrir, no futuro, um ateliê de bordados. “Quem sabe? É preciso trabalhar muitas horas, mas porque não? Aqui na zona ainda é um grande prestígio ter uma boa peça com bordado de Castelo Branco. E são saberes que se estão a perder, qualquer dia ninguém sabe fazer. As senhoras mais velhas, antigamente, acabavam a quarta classe e iam aprender, mas nós, as mais jovens, não vivemos essa realidade.”

Alice Gordino bem sabe. É a formadora, 64 anos, que está a ensinar Diana e todas as outras alunas. Bordou toda a vida. Ainda trabalha por conta própria, na oficina que criou no rés do chão de casa, uma divisão só para isso. Noutros tempos, chegou a ter seis funcionárias e muitas mulheres iam lá para casa só para aprender. Criou dois filhos só com o rendimento que tirava dos bordados. Continua a bordar por encomenda, divulga o trabalho no Facebook. “Hoje, é difícil os jovens trocarem um computador por um bastidor. E este bordado é muito complexo, tem muitos pontos e tem que se trabalhar muitas horas para ganhar dinheiro. Mas o bordado de Castelo Branco é a minha vida.”