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A incomportável Comporta

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Portugal é uma ilha que por acaso faz fronteira com outro país, costumo dizer por graça. Somos uma península longínqua que os romanos se viram gregos para conquistar. Com um reino ameaçador de um lado e o Atlântico do outro, não tivemos outro caminho que o do mar. E lá fomos nós descobrir o Mundo. Descobrimos quase tudo. Meio milénio depois, o Mundo descobriu-nos. Por causa da seca cada vez mais intensa e prolongada, a probabilidade de o Alentejo se assemelhar ao Saara é enorme. Enquanto isso, nascem empreendimentos gigantescos junto a reservas naturais. Na zona da Comporta não faltam projetos imobiliários megalómanos. A região é vendida aos milionários europeus e americanos como uma nova Ibiza com um toque de Hamptons. Nunca fui aos Hamptons, mas já vi fotografias. O areal da nossa costa azul dá dez a zero e as casas são muito mais pequenas. Ou eram, porque no presente já é diferente e o futuro irá mostrar mansões de dimensões fora do comum para a realidade portuguesa. A zona da Comporta é aliás muito diferente da realidade portuguesa: mercearias, cafés e restaurantes praticam preços semelhantes aos de Capri e de Saint-Tropez. O mesmo acontece com as lojas de roupa e os hotéis. Uma sombrinha na praia custa mais do que em Ibiza, rivalizando em valores com as de La Fontelina, uma das zonas mais exclusivas da ilha de Capri, à qual só se chega de barco ou descendo 450 degraus. A Comporta é linda, mas tem um problema, está a tornar-se incomportável.

Por causa da febre imobiliária, a vida selvagem está a levar por tabela. Já são comuns acidentes com javalis que atravessam a estrada ou que aparecem em zonas urbanas, muitas vezes feridos por um carro ou por um caçador. É proibido matar cegonhas, o que criou uma sobrepopulação destas aves, que devoram todos os predadores dos mosquitos. Estes bebem avidamente a água adubada dos arrozais, que os transforma em drones gordos e imensos, passíveis de serem mortos em câmara lenta com os olhos fechados. É proibido matar cegonhas e destruir os seus ninhos, mesmo que estejam a entupir a chaminé de casa. Para tal, é necessário requerer uma licença ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, e só depois desta ser emitida se pode deslocar o ninho para outro lugar, mas apenas entre setembro e o final do ano, época em que as aves não estão a nidificar. Contudo, já existem licenças para prolongar esplanadas de praia quase até à beira-mar.

A Comporta é mais um sonho de consumo que está na moda, sem olhar aos desequilíbrios provocados nos ecossistemas, à escassez da água e aos acessos deficitários e perigosos. Todos os anos há acidentes mortais na estrada que liga Alcácer do Sal ao final da península de Tróia. Há seis anos que o presidente da Câmara de Alcácer tenta, por todos os meios, uma requalificação para a construção de bermas. Não chega, mas já ajudava, numa extensão de mais de 20 quilómetros com raízes que levantam o asfalto e inúmeros cruzamentos não assinalados, sem mencionar os supracitados Sus scofa, nome cientifico, cujas fêmeas são conhecidas por javalinas ou girondas, animais dotados de inigualável beleza e elegância com peso médio de 100 quilos. Eu que o diga, pois já me cruzei com agregados familiares da espécie mais do que uma vez. É Portugal, ninguém leva a mal, sobretudo as cegonhas que já nem sequer migram para África no inverno. Não precisam, até para elas somos um destino top.