Joel Neto

A ilha grande


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Se me ponho a pensar nos lugares onde gostava de levar o Artur, vêm-me logo à cabeça os fiordes noruegueses, o pampa gaúcho, as savanas oeste-africanas, as montanhas da América. Sem viagem não há pensamento abstracto, e a viagem física, aquela que fazemos não apenas para fora de nós, mas para fora da nossa geografia – a viagem com que coleccionamos imagens, cheiros e sabores, em que procuramos o rosto do outro, e as soluções que encontra, e os seus enigmas – traz consigo o apelo suplementar da mundividência. Sem mundividência não há sentido das proporções. Coisas minúsculas parecem do tamanho de coisas grandes, coisas sofríveis confundem-se com coisas excelentes, e não tarda a nossa vida está resumida a uma casa de palha, mitos e mentiras que ao mínimo sopro nos tomba em cima, de nós e da nossa estratégia de felicidade.

De maneira que, tão depressa quanto possível, o Artur vai viajar a sério. De início, comedidamente. Havemos de passar aquela temporada nas Midlands, numa cottage para onde possamos levar o Gauguin e a Colette. Havemos de instalar-nos durante as já antes abortadas duas semanas na Toscânia, durante as vindimas, a passear entre ciprestes e a engordar. Havemos de juntar-nos ao grupo da Raquel, de bicicleta e atrelado, pedalando ao longo das paisagens fluviais da cerveja fresca e do relógio de cuco. Só então terá chegado a hora de o levarmos nas grandes viagens transcontinentais que um dia fizemos. Mas a seguir ainda hão-de vir todos os lugares que poderemos conhecer juntos, nós os três e talvez até mais alguém: o deserto australiano, as montanhas da Patagónia, os jardins de Quioto, os campos de golfe da África do Sul.

Não sei: talvez não haja tempo, dinheiro ou sequer saúde para tanta coisa. Mas alguns desses sítios havemos de visitar. A Marta sempre quis ir ao Tibete e às cidadelas incas – talvez sejam eles a levar-nos lá. Ou ele. Havemos de mostrar-lhe as possibilidades da viagem e depois sair do seu caminho, de modo que possa decidir livremente como se relacionará com o espaço e a existência – e, se preferir viajar a sós, ou não viajar de todo, ou transformar-se num desses coleccionadores de carimbos cujo pauzinho da selfie reduz a paisagem das fotografias a ele mesmo (oxalá não), pois continuaremos a amá-lo.

Mas, para já, vai a São Miguel, como sempre faz um açoriano. Temos a mala em curso há uma semana – os bodies e os capuzes, as fraldas e a bisnagas, o ovo e o pano para o transportarmos ao peito. E é pena, de facto, que não possa comer o molho de peixe do chef Jorge, ou recordar-se de como a Casa dos Barcos e a ermida de Nossa Senhora das Vitórias também podem ser uma história só, ou sentar-se em silêncio na borda da Lagoa do Congro, com os pés na água e os olhos na cortina verde. Mas há sempre algo que fica connosco dessa primeira vez que subimos a bordo de um avião: o cabedal puído dos bancos articulados ou a voz roufenha do piloto no intercomunicador, a maneira como o mar aparece e desaparece na escotilha ou o medo nos olhos de uma velhinha. Mal podemos esperar por rememorar com ele a sua primeira viagem. E, além disso, vem connosco o João, que vai ser o avô perfeito. Mas essa é toda uma outra crónica.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)