A dor (e a necessidade) de devolver um animal

Andreia Souza tem um gato que está a ponderar devolver por causa da alergia que lhe causa. O felino também comeu outros animais da casa. Nas imagens as três filhas: Carolina, Alice e Elisa

Se uma adoção foi consciente e responsável, não é de ânimo leve que se decide deixar de ter esse animal. Assim foi com Carla, que precisou de encontrar outro lar para Luna. Com Andreia, que não teve outra saída senão entregar Furby ao canil onde o adotou. O mesmo fim que poderá ter Ticabombos...

Ana Carolina, de oito anos, Alice, de seis, e Elisa, de cinco, brincavam com o recém-chegado porquinho-da-índia quando Ticabombos entrou em casa e mordeu o roedor no pescoço. “As minhas filhas ficaram devastadas e assustadas. Era sangue por todo o lado”, conta Andreia Souza, de 38 anos. Esta família vive entre Lisboa e Castelo Branco, devido à atividade profissional de Andreia, na área dos transportes e logística, e o episódio aconteceu na moradia da Beira Baixa. Não foi o único. Certo dia, o gato “abriu a gaiola do casal de periquitos, Diamante e Mandarim, e comeu o macho”, recorda Andreia, considerando o felino “especial”, porém, manifestando uma forte vontade de o “devolver à associação” onde o encontrou ou de o “oferecer a alguém da região”.

Ticabombos foi adotado em maio de 2022 com o intuito de “ajudar no controlo de pragas”, diz Andreia. Hoje, a “alergia aos pelos” é apontado como outro motivo para o devolver, a juntar ao “forte instinto de caça”. “Tomo antialérgicos e por conterem corticoides aumentei de peso. É praticamente impossível ver-me livre dos pelos”, relata.

Joana de Almeida, médica-veterinária da Barkyn, está habituada a lidar com famílias com “problemas específicos relacionados com o comportamento dos animais”. Por isso, a maioria das situações em que os donos ponderam a devolução ou entrega à instituição prende-se com causas comportamentais. “Há vários casos em que a consulta de comportamento é o último recurso. Muitos, felizmente, conseguimos modificar, mas noutros o vínculo entre o animal e o tutor já não permite uma harmonização da relação”, afirma, aconselhando a “não deixar arrastar a situação na esperança que se resolva sozinha”.

Quando, no verão de 2020, Andreia Rodrigues adotou Furby, um rafeiro de cinco anos, já tinha Tobias, um persa que recolheu na rua, na altura com oito anos. “O gato atacava o cão. Feria-o. Tinha uma atitude completamente territorial e possessiva. O cão ficava encolhido, com medo”, assinala a proprietária de uma engomadoria na Maia, hoje com 38 anos, que pediu ajuda ao canil onde adotou Furby, com o intuito de conseguir uma melhor integração entre os dois animais de companhia. “Ao início não os juntámos. Deixávamos que se vissem através de um vidro, comprámos um spray que nos foi recomendado, trocámos as mantas para que se habituassem ao cheiro um do outro e, aos poucos, tentámos colocá-los na mesma divisão”, menciona, lamentando não “ter obtido resultados” e ter assistido a “várias agressões” e à “injustiça do cão confinado a uma parte da casa”. Optou, assim, pela devolução do canídeo. “Quando o levei de volta para o canil, chorei todo o caminho. Senti muita tristeza por não lhe ter oferecido um ambiente familiar e por não saber se voltaria a ter alguém que se interessasse por ele”, desabafa Andreia.

Decisões carregadas de emoções

Os dados dos últimos anos da Associação São Francisco de Assis (SFA) – Cascais indicam “uma taxa de sucesso das adoções na ordem dos 92%, o que significa que o número de animais devolvidos é pouco expressivo”, sublinha o vice-presidente, João Salgado. Quando estes casos surgem nesta instituição é feito “um enquadramento da situação da pessoa”, procurando “sempre averiguar se é o último recurso”, detalha o responsável. Só depois de “esgotadas todas as opções e de analisarmos as diversas alternativas é que consideramos uma devolução”, explica. E exemplifica: “Se o tutor apresenta comprovada carência económica, o município de Cascais, através da nossa intervenção, disponibiliza os meios e medidas de apoio a estas famílias, para que possam manter o animal no lar sem terem de recorrer a uma devolução ou entrega no abrigo de animais”.

Além da questão financeira, na SFA, a doença e a mudança de residência são outros dos motivos apresentados pelas pessoas que lá se dirigem com tal intenção. “Muitos senhorios colocam como condição para o aluguer a proibição de animais”, destaca João Salgado.

Com base na experiência como voluntária em várias associações, Joana de Almeida observou que “a maior parte dos animais eram devolvidos por falta de adaptação do animal ou da família”. A médica-veterinária acredita que “o problema estará nas expectativas criadas com a adoção, que podem não ir ao encontro da realidade” e indica outras situações capazes de conduzir à devolução, como os “comportamentos problemáticos” do amigo de quatro patas, tais como “agressividade, eliminação inapropriada, vocalização excessiva ou comportamentos destrutivos”, bem como a “doença e a incompatibilidade com outros animais da família”.

A oeirense Carla Lopes ainda se emociona bastante quando fala do que vivenciou nos quatro anos em que Kira e Luna viveram juntas em sua casa. É com desgosto que a tradutora de 43 anos recorda que, a dada altura, “se começaram a atacar sempre que aparecia ao pé delas”, resultado de “ciúmes ou disputa de território”. “Chegaram a ter de ser suturadas devido a feridas profundas”, diz, e frisa que se atacariam “até à morte” se não interviesse, afastando-as.

Carla refere ter recorrido a “ajuda profissional de médicos-veterinários e treinadores” e inclusive deixar que as cadelas “passassem uns meses no Alentejo numa tentativa de conciliação e convivência” sem estar presente. Não resultou. “Foi muito doloroso ‘optar’ por uma e, apesar de ter uma grande ligação com ambas, decidi ficar com a Kira, porque a adotei com quatro meses, à falta de outro critério mais racional. A Luna tinha um ano quando a acolhi.” Acrescenta que passou “meses duros com uma sensação de impotência, solidão, frustração, desorientação, profunda tristeza, ansiedade e nervosismo por não ter conseguido evitar a escalada da situação que culminou na decisão de dar uma delas para recuperar o bem-estar e segurança de todos”.

Carla procurou um “adotante que tivesse espaço exterior” e conseguiu. Até falecer, em 2020, a husky viveu numa quinta e passava vários meses do ano nos Açores. “Conforta-me saber que a Luna teve uma vida maravilhosa, com muito afeto e cuidados.”

O canil para onde Furby regressou tem como regra “não facultar informações do animal devolvido”, contudo, Andreia Rodrigues teve a “coincidência feliz” de o cão ter sido adotado por uma pessoa com quem tem amigos em comum, pelo que tem acompanhado o seu “percurso nas redes sociais”.

Quanto a Andreia Souza admite que vive “uma situação peculiar, muito confusa e frustrante” por todos os dias pensar em devolver o gato. “É uma tortura diária ter esta alergia. Não há mais o que possa fazer senão devolvê-lo”.