A doença de Bruce Willis e a esperança em Portugal

Na demência frontotemporal uma percentagem significativa de casos tem a ver com mutações de um de três genes principais (mas o envelhecimento ou um AVC também podem ser causas) (Ilustração: Notícias Magazine)

Das mudanças no comportamento ou na linguagem ao declínio cognitivo, esta é uma demência em que a genética explica uma parte significativa dos casos. Não há cura nem tratamento para travar a progressão. Ainda. Mas há medicamentos a serem testados no nosso país e a expectativa é grande.

É preciso recuar um ano, até março de 2022, ao anúncio de que Bruce Willis deixava a carreira da representação depois de se saber que tinha afasia. Um sintoma, não uma doença. O ator, de 67 anos, receberia um diagnóstico mais claro já em 2023: demência frontotemporal. Uma das formas de demência mais frequentes a seguir ao Alzheimer e que surge tipicamente em idades mais jovens do que as outras demências (abaixo dos 65 anos). Ainda antes de estar nas bocas do Mundo, à boleia do mediatismo da estrela de Hollywood, já Susana Soares tinha mergulhado na Internet para saber tudo e mais alguma coisa sobre a doença.

O pai, 68 anos, recebeu diagnóstico idêntico no final do ano passado. Um murro no estômago. “É difícil, sobretudo porque este não é o meu pai, o pai que conheço e que sempre tive como um exemplo.” Os sintomas foram começando a surgir quando o pai se reformou, a pré-reforma depois de a empresa onde trabalhava ter declarado insolvência. “Começámos a notar mudanças no comportamento. Começou a ficar muito rígido a nível de rotinas, a implicar com a minha mãe sempre que passava uns minutos da hora de jantar. E a maior diferença foi quando se tornou inconveniente socialmente.” Para alguém que sempre foi muito reservado e calmo, começar a falar, por exemplo, de questões financeiras da família com qualquer pessoa foi um alerta. “Isso e os tiques nervosos. Passa o dia a andar de trás para a frente. A assobiar. A dar palmadas no próprio corpo. Um nervosismo que não é normal nele.”

A somar a tudo, as dificuldades em seguir um raciocínio. “Faltam-lhe palavras, parece que há um bloqueio.” As alterações nos gostos alimentares – se antes só gostava de comida tradicional, agora prefere comer “uma fatia de piza”. E a agressividade que apareceu do nada, sobretudo quando é contrariado. Susana decidiu levar o pai ao médico de família, que “só com um questionário percebeu que estaria perante um quadro de demência”. A seguir, veio a consulta de neurologia no hospital, mais um conjunto de questões e o diagnóstico confirmado. “O pior é não ter uma perspetiva de tempo, de quão rápido vai evoluir. Sabemos que, à medida que vai perdendo massa cerebral, pode deixar de andar, de conseguir comer.” Num período entre cinco a oito anos é de esperar uma progressão significativa do quadro. A mãe de Susana só trabalha durante a manhã e está já a preparar-se para poder vir a ficar a tempo inteiro com o marido. Os sintomas estão no início, mas estão a galopar. “Ultimamente, ele decide que quer jantar às quatro da tarde e ir para a cama. Que não quer tomar banho”, descreve a filha.

O relato de Susana é revelador. A doença manifesta-se, inicialmente, por alterações de comportamento ou de linguagem. No caso da linguagem, explica Rui Araújo, neurologista no Hospital de São João, no Porto, “evidencia-se por dificuldades progressivas em conseguir falar, em fazer-se entender, em entender o que lhe é dito” – a afasia de Bruce Willis. No caso das mudanças de comportamento, o espetro é grande. “A pessoa pode perder o decoro social. Por exemplo, alguém que até era muito reservado começar a falar socialmente de temas que habitualmente as pessoas guardam para si, como a sexualidade ou o dinheiro. Pode também desenvolver alterações do padrão alimentar. Pode ficar muito obsessiva, perder horas a fio a tentar resolver uma determinada questão.” Depois, vem o declínio cognitivo. E a doença progride até “a pessoa ficar tendencialmente dependente, como em todas as demências”.

As causas, o diagnóstico

Mas como é que estes sintomas se explicam? Ainda há muitas dúvidas, ainda assim o que acontece é que “nalgumas zonas do cérebro, por algum motivo, acumulam-se proteínas anormais e essas levam a que os neurónios funcionem mal, e funcionando mal, o neurónio acaba por morrer”. Com a evolução do processo, mais neurónios têm o mesmo desfecho e começam a surgir as manifestações da doença. Rui Araújo simplifica: “Se os neurónios responsáveis pela linguagem deixam de funcionar normalmente, surgem as dificuldades em falar e em compreender”.

O diagnóstico ainda é muito clínico, feito a partir do relato do doente e familiares. “E há uma avaliação neurológica, uma série de baterias de avaliação cognitiva, com perguntas para responder, coisas para descrever”, especifica o neurologista. Susana dá um exemplo simples: “O médico deu ao meu pai um ditado popular e pediu-lhe para explicar o que queria dizer. Grão a grão enche a galinha o papo. Ele não conseguiu”.

O ator Bruce Willis sofre de demência frontotemporal
(Foto: DR)

Só depois disto se fazem exames como TAC ou ressonância magnética, que permitem ver “a diminuição do volume cerebral em algumas áreas, o que é sugestivo do processo de demência frontotemporal”. Podem ainda ser feitos estudos genéticos – porque é uma demência com uma componente genética mais significativa do que outras, já lá vamos. Ou exames mais invasivos, como uma punção lombar, para “retirar um líquido que circula no sistema nervoso e verificar os níveis de proteína”.

Genética e um ensaio que é esperança

Susana passou por uma fase de negação. Ainda lhe custa ir a casa dos pais. “Os tiques nervosos o dia todo são muito saturantes e é angustiante. A minha mãe está a tomar medicação para ficar mais calma e conseguir lidar com as questões diárias dele.” O pai também está a tomar medicação para os sintomas, nomeadamente para a impulsividade e irritabilidade. Não há cura nem tratamento que trave a progressão da doença. Ainda.

Ao contrário de outras demências, que raramente são geneticamente determinadas, na demência frontotemporal uma percentagem significativa de casos tem a ver com mutações de um de três genes principais (mas o envelhecimento ou um AVC também podem ser causas). Muitas vezes, os médicos entendem pedir um estudo genético. E, a confirmar-se uma mutação, o estudo pode estender-se a familiares assintomáticos, que escolham querer saber se também são portadores do gene mutado.

A informação pode ser importante, porque, apesar de ainda não haver tratamento, há esperança. Em Portugal, está a decorrer um ensaio clínico em demência frontotemporal genética causada por mutações no gene da progranulina, que parece promissor. Estão a testar-se medicamentos experimentais que permitam travar a progressão da doença em pessoas já com sintomas. E que também permitam prevenir que a doença venha a surgir em pessoas portadoras do gene e ainda assintomáticas. É patrocinado pelo laboratório Alector, e está a decorrer no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e no Hospital CUF Descobertas, em Lisboa. A expectativa é grande, até porque no nosso país há várias famílias identificadas com mutações da progranulina.

Perante a evolução da ciência, a relevância do diagnóstico precoce emerge. Não só porque, a ser genética, há ensaios, não só em Portugal, a abrir boas perspetivas. Mas também por ser uma doença com sintomas particulares a nível de comportamento ou linguagem e cuja terapêutica é diferente da de outras demências, nomeadamente o Alzheimer. Pode passar, por exemplo, por reabilitação para distúrbios da fala.

Susana ainda não sabe se a demência do pai é genética. Há de saber em breve. Não sofre por antecipação. “Estamos focados em tentar gerir os sintomas. E em apoiar a minha mãe, que agora se vê como cuidadora. É uma tristeza e um desgaste enorme.”