Alterar a Constituição. Um erro ou uma necessidade?

O Chega desencadeou o processo e os oito partidos com assento parlamentar, uns mais contrariados do que outros, apresentaram os seus projetos. São centenas de alterações, ideias antigas, propostas novas com foco no reforço do catálogo dos direitos fundamentais. Os detalhes vão além da semântica, estão na essência. O que vai acontecer? O debate começa agora.

A oitava revisão constitucional está em marcha, a comissão toma posse dentro de dias e a discussão arranca. Nenhum partido com representação parlamentar fica de fora, estão todos em campo. A Esquerda não vê urgência neste processo, garante que não é uma prioridade, mas não fica à parte. A Direita vê uma oportunidade e avança. Tudo pode acontecer entre críticas, consensos, pontos que convergem, questões que divergem. Teremos mais ou menos Estado? Mais ou menos liberdade? Mais ou menos direitos?

A Constituição, que estabelece os princípios basilares da democracia, que define os direitos fundamentais, volta a ser analisada à lupa 17 anos depois da última mudança. Não é um texto qualquer, não é um processo leve.

Alterações mais suaves, como trocar a expressão “direitos do Homem” por “direitos humanos”, mudanças mais substanciais que podem reforçar os poderes do presidente da República, definir condições de confinamento e acesso a dados pessoais, castração química em determinadas circunstâncias. Os projetos de revisão mexem em eixos estruturantes da vida de todos os dias. Habitação sem preços especulativos, cuidados paliativos na saúde universal, educação gratuita desde o pré-escolar, acabar com a precariedade dos vínculos laborais, acesso à justiça para todos, direito à água, o combate às alterações climáticas como tarefa fundamental do Estado, condições para confinar. Há muitas matérias para debater.

O momento desta revisão tem sido discutido. É ou não oportuno rever a Constituição agora? Para Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista, advogado, professor, ex-deputado do PSD, a Constituição não é uma peça de museu intocável, não é um programa partidário, é sim um texto vivo que pode ser alterado. “A última revisão constitucional foi em 2005, já se passaram quase 18 anos, e 18 anos numa democracia, ainda por cima jovem, é muito tempo”, aponta. E tece algumas considerações sobre o processo. “Sempre achei negativo o bloqueio que se gerou, bloqueio tático, para se agarrarem a uma visão estática e antiquada da Constituição.” E acrescenta: “É curioso o facto de partidos que não queriam nada terem acabado por apresentar alterações substanciais. Os partidos que não queriam nada, agora até querem muita coisa”.

“Sempre achei negativo o bloqueio que se gerou, bloqueio tático, para se agarrarem a uma visão estática e antiquada da Constituição” Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista e ex-deputado do PSD
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Pedro Bacelar de Vasconcelos, constitucionalista, professor, ex-deputado do PS, não entende esta pressa neste tempo, no atual contexto, saída de uma pandemia, agora uma guerra e uma crise económica e social. “A revisão é sustentada por razões políticas discutíveis”, comenta. Não lhe parece, de todo, inocente ter partido de quem partiu. “Não há nenhuma urgência em fazê-la, a fazê-la deve ser o mais cirúrgica possível.” As questões nucleares estão, em seu entender, identificadas. “Quanto mais cirúrgica melhor, por razões de mera prudência”, reforça. O passado demonstra o que acontece. “Resolvem-se problemas e criam-se novos problemas.” Problemas que só mais tarde se percebem. Sempre foi assim, sempre assim será.

O constitucionalista Jorge Miranda considera que o país tem mais com que se ocupar, problemas para enfrentar: a inflação, a pobreza, a situação nos hospitais, a lentidão da justiça. Não havia necessidade de PS e PSD avançaram com os seus projetos, o Chega poderia ter ficado a “falar sozinho”, como disse publicamente. “E, volto a dizer, o que os outros partidos democráticos deviam fazer era ficar de braços cruzados, deixar o Chega apresentar projetos”, referiu numa entrevista conjunta ao JN e à TSF.

Pandemia e confinamentos, metadados e terrorismo

A revisão constitucional só passa por maioria de dois terços dos deputados, o que significa que está tudo nas mãos do PS e do PSD. Há duas matérias que aproximam os dois partidos, não tanto pela semântica, sobretudo pelos propósitos. Por um lado, a Constituição não estava preparada para as restrições que um contexto pandémico impõe e toda uma panóplia de questões jurídicas adjacentes – não descreve cercas sanitárias, confinamentos, quarentenas. Por outro, o chumbo do Tribunal Constitucional quanto ao acesso a metadados, comunicações privadas, no âmbito de investigações criminais, abriu o debate. O artigo 34.º da Constituição é claro ao determinar que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação”. PS e PSD defendem exceções.

Na emergência sanitária e nos metadados, PS e PSD tocam-se. O PSD quer que emergência de saúde pública conste como razão para decretar estado de sítio ou de emergência e que seja possível confinar ou internar, por razões de saúde pública, uma “pessoa com grave doença infetocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou conformado por autoridade judicial”. O PS pretende a “separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves”, com determinação da autoridade de saúde, mas com “garantia de recurso urgente à autoridade judicial”.

Neste ponto, Pedro Delgado Alves, deputado do PS, fala num “quadro constitucional mais sensível ao problema das pandemias”, colocando-se na Constituição o que se aprendeu com a gestão da covid-19. “Não vamos necessariamente pelo mesmo caminho do PSD”, observa. É uma “solução mais equilibrada”, afirma.

Metadados. Por que razões, em que condições, e porquê dar acesso a essas informações privadas, como data e hora de uma chamada, localização e tipo de equipamento utilizado, por exemplo. O PS avança com exceções a essa proibição, ou seja, quando está em causa “a defesa nacional, a segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada”. O PSD é mais resumido. “A lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais.”

Estes dois temas não seriam, por si só, suficientes para a revisão constitucional. “Não víamos necessidade de alterar a Constituição por essas duas vias”, repara Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE. Há outros mecanismos para essas situações. O que preocupa, sustenta, “é a subtração de direitos que depois levam a políticas autoritárias que colocam em causa a democracia tal como a conhecemos”.

A Iniciativa Liberal também torce o nariz nestes dois pontos, vê uma porta aberta à restrição de liberdades individuais que, para João Cotrim Figueiredo, presidente do partido, “não podem ser atirados para debaixo do comboio”. Desde logo, confinamentos e quarentenas ao abrigo de um instrumento de emergência. Essas liberdades, defende, “só podem ser suspensas em casos absolutamente excecionais”, e com intervenção da Assembleia da República, “e os tempos de emergência têm se ser obrigatoriamente curtos”. Nos metadados, constata, “ainda é mais chocante” por se permitir a partilha de determinadas comunicações de pessoas que nada tem a ver com casos em investigação criminal sem o seu conhecimento.

O PS já avisou, pela voz do primeiro-ministro na pele de secretário-geral do partido, que o projeto do Chega não passará, que rejeita qualquer revisão sobre matérias institucionais, que os propósitos socialistas pretendem consolidar direitos fundamentais e reforçar o papel do Estado em matérias como emergência sanitária, segurança, combate ao terrorismo. António Costa garante que o PS não está numa “posição de trincheira” e que o que importa é como este processo acaba e não como começa.

O PSD admite que a revisão constitucional depende de um entendimento entre o PS e o PSD. Luís Montenegro, presidente do PSD, disse-o publicamente. “Somos realistas, não vale a pena andar aqui a dourar a pílula.” Espera um consenso no maior número de alterações que, em sua opinião, “possam conduzir a um melhoramento do texto constitucional”.

O PSD é o partido que apresenta mais alterações à Constituição como um projeto que adjetiva de “realista, reformista e diferenciador para Portugal”. Quer criar um Conselho da Coesão Territorial e Geracional, juntar a “coesão e a equidade entre gerações” às tarefas fundamentais do Estado, um mandato único de sete anos para o presidente da República, reforçar os seus poderes, permitindo-lhe a nomeação do procurador-geral da República, do presidente do Tribunal de Contas, do governador do Banco de Portugal, a marcação da data das eleições autárquicas.

Jorge Miranda já avisou que aumentar o mandato e os poderes do presidente da República é das ideias “mais perigosas” nesta revisão. “É mais democrático admitir a reeleição ao fim de um tempo razoável do que prescrever sete anos sem a possibilidade de os cidadãos emitirem qualquer opinião e visão”, realçou o constitucionalista na referida entrevista.

“O que os outros partidos democráticos deviam fazer era ficar de braços cruzados, deixar o Chega apresentar projetos” Jorge Miranda, constitucionalista
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

O PSD propõe menos deputados, mínimo de 181 e máximo de 215. Quer moderar o esforço fiscal dos contribuintes, valorizar a autonomia regional, reforçar as tarefas fundamentais do Estado, a transparência orçamental, a promoção da natalidade, acesso gratuito às creches e ao pré-escolar, o reconhecimento do estatuto de cuidadores informais.

Limites aos lucros e à despesa, reforço da justiça económica

O PCP teme a descaracterização da Constituição e vinca que se baterá pelos direitos fundamentais. “A prioridade é o seu cumprimento, o respeito pelo texto da Constituição e os direitos que comporta, quando há tanta coisa por cumprir”, adianta João Oliveira, deputado do PCP, que vê a liquidação dos serviços públicos, a sua transformação em áreas de negócios rentáveis para os privados, um ataque a liberdades conquistadas que não podem deixar qualquer democrata sossegado. A abordagem comunista bate de frente com a da Direita. “É o oposto do Chega, da IL e do PSD, queremos o aprofundamento dos direitos sociais.” Porque são esses direitos que, salienta, “estão mais em perigo, mais na mira, na saúde, na habitação, na segurança social”.

Nesta revisão, o PCP defende o recurso constitucional de amparo para que o Tribunal Constitucional deixe de ser acessível a uma pequena minoria de cidadãos e seja “um verdadeiro recurso de direitos fundamentais”. No mundo laboral, o PCP insiste na valorização do salário mínimo nacional, no reforço do direito à contratação coletiva, na redução progressiva do horário de trabalho sem perda de direitos, na estabilidade dos vínculos laborais, na garantia do carácter público, universal e solidário da Segurança Social. Um SNS universal, geral e gratuito, educação gratuita de todos os níveis de ensino desde o pré-escolar, a proteção da casa de morada de família contra despejos.

Se vai acontecer, o BE entrou no processo. “Apresentámos a nossa iniciativa que vai beber a várias propostas que apresentámos no passado, com algumas novidades e formulações novas sobre ideias que já tínhamos”, diz Pedro Filipe Soares. O BE pretende, acima de tudo, reforçar o sentido de justiça económica, social e climática, olhando para o processo como uma oportunidade de incluir e atualizar exigências de proteção social e igualdade. No seu texto refere uma “policrise” da pandemia, da guerra, da instabilidade financeira instalada, da catástrofe climática. O partido defende o direito ao voto dos imigrantes. No combate às discriminações, aprimora o texto com a proibição de discriminação em função “do género, pertença étnico-racial, deficiência ou estado de saúde” e inclui o direito ao bem-estar animal. Quer ainda o reforço na contratação coletiva, a imposição de leques salariais, limitação de lucros, e novas exigências nas políticas públicas de habitação e urbanismo.

A Iniciativa Liberal (IL) detalha objetivos e percentagens no seu projeto. A Constituição deve prever o limite de défice zero e de despesa pública de 35% do PIB, com exceção de motivos de força maior, como maneira de conseguir o crescimento económico e reduzir impostos. O partido pretende que os cidadãos possam recorrer ao Tribunal Constitucional em determinadas circunstâncias, que os serviços públicos de saúde e educação possam ser prestados pelos setores privado, cooperativo e social, na linha da liberdade de escolha e da concorrência, defende ainda o fim dos representantes da República das Regiões Autónomas. João Cotrim Figueiredo adiciona um outro ponto, o número excessivo de aspetos da Constituição que não podem ser revistos, daí o propósito de aumentar as matérias que podem ser mexidas. “Os antigos constituintes achavam que sabiam mais do que toda a geração futura.”

O PAN fez contas e vai a jogo. “Neste momento, a corrupção custa 34 mil euros por minuto ao país”, avisa Inês Sousa Real, deputada única do partido. O PAN quer que a Constituição consagre o enriquecimento ilícito de titulares de cargos políticos como infração penal. Para evitar fenómenos de corrupção e de benefícios ilícitos que saem dos bolsos dos contribuintes. Não é só. A proteção e o bem-estar animal é ponto de honra, sobretudo havendo o risco de os maus-tratos a animais de companhia deixarem de ser crime.

Inês Sousa Real acredita numa Constituição progressista que proteja o ambiente, que tenha políticas para travar a crise climática, que reforce os direitos humanos, que garanta o acesso a cuidados de saúde mental, reprodutivos e paliativos. “A Constituição deve ser a tábua mãe dos princípios fundamentais e deve impor limites”, sublinha.

Até quando o monopólio da revisão constitucional estará apenas nas mãos dos políticos? Rui Tavares, deputado único do Livre, levanta a questão quando refere o momento em que será feita, a forma como foi apresentada, quando haveria tempo de pensar alterações e atualizações na proximidade dos 50 anos do regime democrático. Mas não, não é isso que acontece. “Poderíamos aproveitar esse momento para que a revisão constitucional surgisse de um debate público, com escolas, autarquias, sociedade civil. Poder-se-ia fazer um diagnóstico ao estado do Estado do Direito”, destaca. Essas seriam as bases da revisão a partir de um debate público, aberto e participado.

A realidade é outra e, para Rui Tavares, PSD e PS foram “atrás de um isco de um partido de extrema-direita”. A sua perspetiva é clara. Se há um manual de como não fazer uma revisão constitucional, é este. “A maneira como esta revisão foi apresentada e como os dois grandes partidos foram atrás de uma mera jogada mediática de um partido de extrema-direita”, concretiza. A pressa, o contexto, o assunto. Nada ajudou.

Seja como for, o partido decidiu que não ia ficar de fora. O Livre pretende atualizar e ampliar direitos, defende Internet de acesso geral, proteção de dados, e na igualdade, no artigo 13.º, quer incluir “identidade de género, expressão de género, características sexuais, idade, condição de saúde, deficiência ou incapacidade”, para que nenhum cidadão possa ser beneficiado ou prejudicado ou privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever. Quer que a língua portuguesa seja defendida e o mirandês preservado como riqueza cultural, quer mais debate à volta da regionalização, daí a proposta de revisão de alguns artigos do tema, lembrando a possibilidade já defendida de se criar uma região-piloto nesse percurso. O partido propõe ainda que o combate às alterações climáticas deve ser uma das tarefas fundamentais do Estado, quer eliminar a idade mínima de 35 anos e origem portuguesa para se ser presidente da República.

Limpeza ideológica, branqueamento do fascismo

No alargamento do sistema político, a redução da idade legal para votar dos 18 para os 16 anos é referida pelo PSD, BE, PAN e Livre. Bastante consensual, portanto. Inês Sousa Real afirma que esta emancipação se justifica, que há estudos internacionais que demonstram benefícios, que é uma forma de contrariar a abstenção. “Temos elevados níveis de abstenção, é importante que se comece muito cedo a incentivar a participação na vida pública e na vida política”, frisa.

Bacelar Gouveia, que concorda com as mudanças de acesso aos metadados e de emergência sanitária, discorda com a idade de voto aos 16 anos. “Podem votar para o presidente da República aos 16 anos, mas não podem comprar uma casa ou tirar a carta de condução? Não estou a ver a coerência desta medida”, observa.

O constitucionalista não percebe por que razão há projetos que pouco ou nada dizem sobre segurança e justiça, não entende a proposta de retirar o referendo para a regionalização. Aqui, diz, “não pode haver mudanças das regras a meio do jogo, seria uma fraude constitucional inadmissível”. O constitucionalista admite que seria mais ambicioso nesta revisão, aprofundaria a autonomia regional, mexeria na constituição económica em artigos que “estão ultrapassados, alguns caducados.” “Mais vale fazer 10% do que 0% em relação a 100% do que deve ser feito.” Em seu entender, a política tem vários andamentos, este é um deles, o da revisão. “O país está, neste momento, num marasmo reformista”, considera.

O líder do Chega, André Ventura, discursa durante a primeira reunião plenária sobre o processo de revisão constitucional realizada na Sala do Senado, na Assembleia da República, Lisboa, a 29 de novembro de 2022
(Foto: João Relvas/Lusa)

A oitava revisão constitucional foi desencadeada pelo Chega. Seguiram-se todos os outros partidos com assento parlamentar. O Chega abriu o debate e diz ao que vem, o que quer e o que não quer e, entre parênteses, escreve que “a Constituição de um país não tem de ser de Direita ou Esquerda, fascista ou comunista, tem de ser uma garantia de liberdade de todas as opções políticas legítimas”. Assume que não quer combater opções políticas, atacar o espírito socialista ou comunista, tão-pouco reabilitar o antigo regime, quer sim neutralidade ideológica, um sistema firme, uma reforma na justiça e no poder político. Defende uma “limpeza ideológica”, não lhe parece adequado manter referências ao período fascista ou que conste a expressão “caminho para o socialismo”, quer menos deputados na Assembleia da República, menos interferência do Governo em instituições públicas e órgãos de supervisão, tribunais independentes sem interferência política, maior articulação entre público e privado em diversas dimensões da vida quotidiana, na economia, na educação e na saúde – nas suas palavras, não quer que o setor público amordace e limite o setor privado – e volta a falar em prisão perpétua e em castração química em circunstâncias excecionais, para prevenir crimes de natureza sexual, ou seja, restringe-se o direito à liberdade pelo direito à segurança. Quer até 12 ministérios e que os titulares de cargos públicos justifiquem património que não corresponda aos rendimentos declarados e um período de nojo de oito anos para políticos e altos cargos públicos em trabalho, remunerado ou não, em quaisquer instituições tuteladas pelo Governo.

Mais do que o processo aberto pelo Chega, João Oliveira aponta o dedo à postura do PS de não ter travado essa pretensão. Em vez de fechar a porta, o PS abriu-a. “O PS deu cobertura, admitindo a possibilidade de uma revisão constitucional.” O PCP não esconde as suas preocupações com este processo que considera desnecessário perante a atual conjuntura, de crise económica e social, e “condenável” pelos objetivos que considera de “subversão do regime democrático constitucional”. O deputado João Oliveira não poupa nas críticas à direita por várias razões, pelo “carácter antidemocrático” de propostas, pela “transformação de direitos sociais em áreas de negócio”, pelo “branqueamento do fascismo”, pelas políticas neoliberais que defendem limites ao défice e à despesa pública sem olhar a necessidades e direitos, assentes numa lógica de contenção de custos. “É uma conceção de retrocesso que já foi derrotada pela realidade”, argumenta, lembrando os tempos da pandemia que, com essas restrições orçamentais, teriam sido uma “catástrofe, um desastre, com perda de vidas humanas”.

Para o BE, não há necessidade desta revisão, não é uma prioridade, não é uma exigência da sociedade. “É um erro, é incompreensível. A oitava revisão ficará na História por ter sido desencadeada por um partido que é contra a Constituição, que é o Chega”, refere Pedro Filipe Soares. Com o tapete estendido pelo PS e pelo PSD. “A tentativa do Chega não é nova, mas desta vez, PS e PSD anunciaram que iriam entrar.”

(Foto: Arquivo Global Imagens)

Para Pedro Delgado Alves, deputado do PS, a revisão não teria de ser feita agora, poderia ser feita com mais tempo e sentido de oportunidade. Mas houve um dado que classifica como uma “mudança significativa”, ou seja, quando o PSD anunciou que iria apresentar o seu projeto de revisão. “O PSD anunciou que ia a jogo.” Não houve travão, o processo seguiu, todos avançaram.

João Cotrim Figueiredo confessa que espera pouco desta revisão, espera até “coisas más” olhando para as matérias de consenso do PS e do PSD. “Esta revisão não vem na altura certa e só interessa a quem a propôs, que é o Chega, e a quem rapidamente se pôs em cima do assunto, o PS e o PSD.” “Não sendo oportuna, nós vamos obrigatoriamente a jogo por coerência programática”, explica.

Inês Sousa Real também não concorda com o timing. “Lamentamos que este processo venha por arrasto a uma iniciativa do Chega, que surgiu no meio da discussão do Orçamento do Estado – e não era um o Orçamento do Estado qualquer, era mais do que relevante para o país.” O processo avançou, o PAN entrou.

A Constituição tem 46 anos e já passou por sete revisões desde a sua aprovação e entrada em vigor em abril de 1976. A primeira, em 1982, dissolveu o Conselho da Revolução, criou o Tribunal Constitucional, deu mais importância à Assembleia da República e o presidente da República passou a exercer um poder moderador. O sistema económico ficou mais flexível, impediu-se a privatização de empresas públicas e nacionalizadas depois de 1974. Sete anos depois, a segunda, e a irreversibilidade das nacionalizações, após o 25 de Abril, caiu. Seguiram-se mais alterações em 1992 e 1997, adaptou-se o texto aos tratados da União Europeia, Maastricht e Amesterdão, reforçaram-se os poderes legislativos do Parlamento, abriu-se a possibilidade de criação de círculos uninominais, de candidaturas independentes às eleições autárquicas, o direito de cidadãos apresentarem projetos de lei. Em 2001, quinta revisão, para permitir a ratificação do Tribunal Penal Internacional, alterando-se as regras de extradição. Em 2004, mais alterações, com o aprofundamento da autonomia das regiões autónomas da Madeira e dos Açores a nível político e administrativo. Em 2005, a sétima revisão e o aditamento de um novo artigo para permitir referendos aos tratados de construção da União Europeia. E agora, em 2023, mais uma, pouco consensual, bastante controversa, que arranca a ferro e fogo.