Zoonoses. Quando os animais são o paciente zero

"[as zoonoses] Historicamente, sempre existiram. A questão é que hoje estamos mais alerta e diagnosticamos mais", reconhece o virologista Paulo Paixão

Desflorestação, alterações climáticas, crescente mobilidade internacional e progressivo envelhecimento da população mundial estão entre os fatores potenciadores das doenças que saltam do reino animal para as pessoas. Solução é complexa, mas nem tudo são más notícias.

A notícia soa a estranho déjà-vu. Há um novo vírus a atacar em vários países. Outra vez de consequências imprevisíveis (sobretudo no que à escala da disseminação diz respeito). Outra vez de origem animal. Em Portugal, a meio da semana, havia já dezenas de casos confirmados. Serão seguramente mais na altura em que este artigo for lido. Do monkeypox – também conhecido por varíola-dos-macacos – sabe-se que foi identificado pela primeira vez num ser humano na década de 1970. Que já tinha havido pequenos surtos em vários países de África, nomeadamente na África Central e Ocidental. Que pode causar febre, dor de cabeça, dor musculares, inflamações nos nódulos linfáticos, exaustão. E muito comummente lesões cutâneas que provocam acentuada comichão. Que a primeira vez que ocorreu um surto fora do continente africano foi em 2003, nos Estados Unidos. E que na altura os grandes transmissores terão sido animais domésticos que tinham estado em contacto com roedores infetados, importados de África. Que apesar de também se transmitir entre humanos, nomeadamente através de gotículas respiratórias e lesões cutâneas, o “paciente zero” será sempre animal.

E voltamos ao déjà-vu. E ao SARS-CoV-2. E ao ébola. E à gripe suína. E à gripe das aves. E a tantas outras doenças recentes que tiveram o reino animal como ponto de partida. As chamadas zoonoses. A cadência lança uma série de questões. Que enfermidades são estas? Porque é que ouvimos falar cada vez mais delas? O que é que o futuro nos reserva? E haverá forma de melhorar o combate a estas doenças? Por partes. A começar pela aparentemente óbvia, mas ainda assim importante, definição de zoonose. E que, de forma breve e simples, é uma doença dos animais que pode passar para os humanos. Depois, o desfazer de um possível equívoco. Não é de todo uma novidade dos tempos. “Historicamente, sempre existiram”, esclarece Paulo Paixão. O virologista lembra as bruceloses. A própria peste, que teve origem nos ratos. “A questão é que hoje estamos mais alerta e diagnosticamos mais.”

Mas há efetivamente fatores a favorecer a propagação deste tipo de doenças. O especialista aponta um dos principais. “A população aumentou e, através da desflorestação, cada vez entramos mais em contacto com reservatórios animais, onde se encontram certas doenças. Muitas vezes, são vírus inofensivos nos animais, mas que provocam doença nos animais.” João Mesquita, professor do mestrado integrado em Medicina Veterinária no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, ajuda a encontrar uma explicação para esta disparidade de efeitos. “Estes vírus muito provavelmente coevoluíram com os animais . A questão é que quando saltam a barreira da espécie para o homem, que não tem em princípio imunidade para os novos vírus, a potencial permissividade para a transmissão coletiva é grande.” Daí que a infeção desemboque, com frequência, em doença. Importa, a propósito, relevar que se tratam de conceitos distintos, porque é possível ser infetado com um vírus sem que se verifique o aparecimento de doença.

Voltando aos fatores que potenciam a disseminação de zoonoses. A crescente mobilidade internacional é outra peça fundamental deste puzzle. Mas também o chamado “bushmeat” (consumo de animais selvagens), que, como lembra João Mesquita, ocorre com frequência nos países africanos e asiáticos. “Não é uma tendência propriamente recente, mas auxiliado pela tal globalização acaba por ter outras repercussões. Antes os efeitos acabavam por estar mais contidos porque não havia mobilidade.” Depois, o próprio aquecimento global. Tanto que há determinadas regiões que até aqui eram inóspitas para os vetores de várias doenças (como mosquitos, por exemplo) e que “hoje ou no futuro, já não serão”. E há ainda uma outra circunstância que o docente universitário considera particularmente relevante. “O facto de a população humana estar também em mudança. Estamos mais idosos e portanto mais vulneráveis, um fator que em si mesmo já proporciona um maior risco para ocorrer o salto da barreira da espécie.”

E o futuro?

E, face a tudo isto, o que podemos esperar? Paulo Paixão responde: “É difícil prever o que aí vem, mas todos os analistas têm sido unânimes a dizer que a probabilidade de piorar é clara. Porque cada vez há mais territórios invadidos, o que aumenta a probabilidade de lidarmos com microrganismos novos com os quais nunca tínhamos lidado e contra os quais não temos imunidade nenhuma”. Até porque, como realça Arriscado Nunes, especialista em Sociologia da Saúde, as possíveis soluções serão sempre difíceis. “O que fazemos é atuar sobre as consequências, com tentativas de controlar o contágio. Mas não há capacidade de atuar sobre aquilo que são as condições de criação dos animais. Porque também é preciso alimentar as necessidades de consumo atuais das populações e isso tende a perpetuar esse tipo de situação. São problemas de resolução complexa, que exigiriam mudanças muito drásticas e profundas ao nível da produção e dos próprios regimes alimentares. São transformações de economia política, difíceis de realizar, que implicam sempre uma certa resistência.”

Há razões para o otimismo, ainda assim. Luís Tavares, coordenador do serviço de Infecciologia do Hospital Lusíadas Lisboa, recorda isso mesmo. Ao longo das últimas décadas, houve seguramente uma “melhoria das condições higienossanitárias das explorações agropecuárias”, com os animais a serem muito mais escrutinados, o que de alguma forma funciona como espécie de barreira à propagação deste tipo de situações. De resto, destaca, as próprias agências internacionais da área da Saúde têm hoje “grande proatividade na deteção de surtos”. “E quanto mais ativa for a nossa ação, maior é a probabilidade de contenção. Em matéria de doenças infecciosas emergentes há hoje um grau de preparação muito mais alto, o que nos dá alguma confiança e respaldo de sossego. Alguma, claro.” E volta ao monkeypox como exemplo máximo dessa celeridade de ação, que parece começar a pautar a atividade das agências internacionais de saúde.

Factos e números

60%
Os cientistas estimam que seis em cada dez doenças infecciosas nos humanos podem ser espalhadas por animais. Se reduzirmos o leque às doenças infecciosas emergentes, a estatística passa para três em cada quatro.

Formas possíveis de contágio
As zoonoses podem ser transmitidas de diversas formas: por contacto direto (com a saliva, o sangue, a urina, o muco ou as fezes de um animal infetado); por contacto indireto (com o local onde o animal circula ou habita); por vetores (mosquitos ou carraças, por exemplo); por ingestão de comida animal ou água contaminada.

20
O número estimado de zoonoses conhecidas atualmente, segundo dados da Organização Mundial de Saúde.