Voltar à mesa de Natal sem o fantasma da pandemia

Nos últimos dois anos a pandemia não permitiu a reunião da família Candal. É neste Natal que voltam a juntar-se

A família Candal, de Aveiro, vai retomar a noite da consoada com os mais de 40 elementos. A fábrica Forvia de S. João da Madeira regressa ao evento onde junta centenas de colaboradores numa quinta. O Jantar dos Reis Magos, de um grupo de amigos de Carcavelos, voltou a acontecer. Os restaurantes e hotéis estão carregados de reservas. Este é o primeiro Natal sem máscaras nem testes à mistura. Dois anos depois, eis a normalidade há muito ansiada.

A algazarra começa, é uma barafunda. Há uma correria para conseguir juntar os mais novos sossegados por instantes nas escadas de casa para a foto, para pôr a mesa – ou melhor, as mesas – e deitar mãos à obra nos panelões industriais onde a avó vai cozinhar o bacalhau cozido e o polvo. Contas feitas, são mais de 40 pessoas à mesa na consoada desta família. “Este é o nosso normal de Natal”, atira Maria Manuel Candal. E é preciso recuar a 2019 para a memória ser do “normal”. Ao ano anterior a uma pandemia madrasta lhes ter roubado dois Natais de normalidade – lá iremos.

“Somos uma família de sete irmãos, quatro raparigas e três rapazes. Ou seja, os meus pais têm sete filhos. Todos casados ou com companheiros. E depois os meus pais têm 20 netos, entre os quatro e os 28 anos.” Aos 36 elementos ainda se juntam os tios de Coimbra, os primos e respetivos filhos. A casa grande dos avós, os patriarcas da família Candal, no centro de Aveiro, dá palco à reunião familiar. E, claro, são precisas três mesas. A principal, gigantesca, para os adultos na sala de jantar, cujas portas se abrem para uma sala de estar onde se sentam os jovens e adolescentes. E na copa, junto à cozinha, para as crianças e bebés.

Todos contribuem com bilharacos, rabanadas, sonhos, ovos-moles, queijo da serra, vinhos na mesa, onde ficam até à chegada do Pai Natal, ali perto da meia-noite. “É sempre um de nós. Começámos por ser os irmãos. Agora, já são os netos, os mais velhos. Calha a um em cada ano.” Há sacos e sacos de flanela escondidos numa sala, com a letra inicial de cada nome bordada – um P de Pedro, um I de Inês, um J de Júlia – que o Pai Natal vai buscar sorrateiramente para distribuir. “É uma confusão, tudo a abrir presentes, a rasgar os papéis de embrulho, a comparar prendas, a trocar, a chamar pelos nomes de cada um. Um caos total e absoluto.”

São para cima de 40 pessoas na noite de consoada da família Candal, em Aveiro

É na noite de 24 que fazem sempre questão de se juntarem. O que não aconteceu em 2020, quando festejaram o Natal de forma tripartida, com máscaras à mistura. Uns foram almoçar com os avós no dia 24, outros foram jantar e outros almoçaram no dia 25. “Todos fizeram testes de covid antes.” Em 2021, já com a pandemia aliviada, quiseram retomar, só que alguns estavam infetados o que baralhou novamente os planos. É este o ano. “Vamos voltar ao Natal de 2019.” O jantar, já todos sabem, é às 20 horas.

O regresso à normalidade, o desejo de reencontro

Segundo Rute Agulhas, psicóloga, este ano – e sente-o na maior parte das pessoas, de todas as idades – “há um desejo maior de reencontro e proximidade, de face a face e de toque”. E a retoma dos jantares natalícios em pleno, sem máscaras nem testes à mistura, “é benéfica”, até porque “vivemos presos na correria das rotinas, do trabalho, dos cuidados com os filhos e da casa”. “Precisamos de sentir próximas as pessoas de quem gostamos. Na correria do dia a dia nem sempre temos tempo. Estes momentos de paragem e aproximação são fundamentais para reforçar os laços afetivos.” E até o marketing e a publicidade nos vão lembrando da necessidade de estarmos juntos nesta época.

Mas será que a pandemia não deixou estragos pelo caminho? Não terá gerado afastamento e quebrado tradições? Para Daniela Leal, também psicóloga, “é uma questão muito individual”. “Mas claramente mudou a forma como nos relacionamos. Vemos isso no trabalho, grande parte das reuniões já não são presenciais, as pessoas continuam em teletrabalho quando é possível. Mudou a forma de percebermos a importância de estarmos ou não presentes e selecionarmos os momentos que merecem a nossa presença física.”

É certo que a distância afasta as pessoas, “no sentido em que há menos partilha, mas depende da profundidade da relação que já tinham”. Mesmo assim, “as tradições existem precisamente para as pessoas se sentirem parte, integradas, e certamente que há este desejo de normalidade”. Daí que o regresso às jantaradas típicas de Natal seja importante. “Porque estes convívios reforçam uma identidade, seja familiar, empresarial, de amigos. E podermos ver outra vez inteiramente o rosto de alguém facilita as relações sociais, a empatia.”

Uma quinta, mais de 400 colaboradores

Uma quinta, qual casamento, um jantar volante, centenas de pessoas. O dia? 10 de dezembro. Na Forvia (ex-Faurecia), fábrica de componentes para automóvel em S. João da Madeira, a tradição já conta largos anos. “E este, depois de dois anos de paragem, é dos jantares com mais adesão, está a bater recordes”, atesta Susana Franco, vice-diretora de fábrica. É difícil pôr números exatos em cima da mesa, serão para cima de 400 colaboradores os que já se inscreveram numa lista que percorre todos os setores e que engorda a olhos vistos. Já chegaram, noutros tempos, a fazer o jantar de Natal dentro da fábrica, parava-se a laboração e era hora do convívio. Só que há qualquer coisa de especial em poder levar os trabalhadores fora de portas.

O jantar de Natal da fábrica Forvia, em S. João da Madeira, após dois anos de pausa, já está marcado

“É importante tirar as pessoas do ambiente de fábrica, para estarem mais descontraídas, umas horas valentes abstraídas do trabalho. Sinto que está tudo muito ansioso pelo regresso da tradição.” Por ver toda a gente sem os fardamentos brancos ou azuis característicos – “e às vezes até olhamos duas vezes porque estranhamos, convivemos com as pessoas todos os dias e parece que não as conhecemos fora daqui”.

Nisso, de se conhecerem melhor, o evento dá um bom contributo. “É sempre nestes momentos que descubro que há pessoas com histórias fantásticas, no dia a dia essa conversa nunca se proporcionaria.” A ementa é sabida: prevê bacalhau e um prato de carne para quem não gosta do rei da mesa de Natal, além dos doces típicos, da aletria às rabanadas. E, claro, há uma banda, um animador, photobooth, “uma série de atividades para juntar as pessoas”, num investimento que ronda os 40 euros por colaborador e que a empresa faz “questão de fazer”. Isto a somar aos presentes que oferece aos filhos dos funcionários (este ano há até um trenó para os miúdos percorrerem a fábrica) e ao cabaz de Natal que dá a cada um dos trabalhadores.

Susana Franco olha para o jantar como a primeira ceia de Natal em família. E não, diz, não é um chavão. “Não deixamos de ser uma família. Aliás, passamos muito mais tempo aqui do que com as nossas famílias. E sentimos todos muito a falta disto.”

A falta sentida reflete-se bem na procura que quintas, hotéis, restaurantes estão a ter no ano do regresso em pleno dos convívios. O InterContinental do Porto é disso exemplo. “Este ano, há uma imensa procura por empresas e para jantares grandes. No ano passado, ainda chegámos a sentir isso no início, muitas reservas, mas depois os casos de covid começaram a aumentar e tivemos muitos cancelamentos”, refere Ana Espregueira Mendes, diretora de marketing e vendas do hotel. Nada que se preveja que aconteça este ano, “em que as empresas voltaram em força” e com reservas bem antecipadas. Mesmo comparando com os Natais pré-pandemia, a procura é mais alta e os grupos maiores, “muitos à volta das 50, 60 pessoas”. O que também aumentou face a 2019 foram as reservas de famílias para a ceia de Natal no hotel, tendência que tem vindo a ganhar peso nos últimos anos.

O jantar de Natal da fábrica Forvia, em S. João da Madeira, vai ter lugar numa quinta e está a bater recordes de inscrições. Mais de 400 colaboradores vão juntar-se no dia 10 deste mês

Já nos restaurantes, são os convívios de amigos que reinam. Na Taverna dos Pereiras, em Carcavelos, a corrida aos jantares é evidente. “É uma diferença enorme em relação ao ano passado, que foi muito fraco. Temos tido muita procura de grupos de amigos”, sublinha Sérgio Pereira. Grupos grandes, ressalva, entre as 20 e as 30 pessoas. É hora de passar uma borracha nos anos pandémicos que tanto afetaram a restauração. “Alguns grupos já são habituais de outros anos e não largaram a tradição, apesar da paragem. Continuam fiéis e até se juntam mais pessoas. Estão a voltar aos tempos antigos.”

O Jantar dos Reis Magos

A história conta décadas, duas nas contas trapalhonas de um grupo que perdeu o rasto ao ano inaugural de uma tradição que se mantém de pedra e cal. O Jantar dos Reis Magos (sim, tem nome e tudo), onde só entram homens, começou entre amigos que jogavam futebol em Carcavelos. A maioria nascida ali entre meados dos anos 1970 e 1980. Um deles é até nome sonante: Carlos Chaínho (tratado por Pelé pelos amigos), ex-F. C. Porto, entre outros clubes. “Éramos uns seis ou sete na altura. E inventámos isto como desculpa para fazermos um jantar de amigos”, conta Tiago Fernandes, o mais novo e o que organiza ano após ano o evento. O grupo foi crescendo e crescendo. Hoje, a conversa que têm no WhatsApp – chegaram a marcar o jantar por email noutra era – conta 24 elementos. E o evento é levado a sério, há regras. “É obrigatório levar uma prenda. A ideia sempre foi juntarmo-nos perto da altura do Natal, daí chamar-se Jantar dos Reis Magos. E a prenda é ponto assente, uma coisa simbólica, de brincadeira.”

No Jantar dos Reis Magos, só entram homens e há uma regra: levar prenda

Nos primeiros anos, quando o jantar tinha sempre lugar no mesmo restaurante, os mais despassarados aproveitavam uma lojinha que vendia lembranças para crianças, “iam mais cedo para comprar bisnagas e essas coisas que não servem para nada”. Nisso, pouco mudou. Continuam a oferecer coisas inúteis. E a fazer o sorteio sempre da mesma maneira, apesar de, invariavelmente, dar raia. “Escrevemos os nomes de todos no papel que serve de toalha de mesa no restaurante, pomos num copo e depois cada um tira um papel para saber a quem vai dar a prenda. Há sempre alguém a quem sai o próprio nome. Nunca resolvemos isso.”

Conta cerca de 20 anos a tradição do Jantar dos Reis Magos, que junta amigos de Carcavelos

Dos 24, não conseguiram juntar todos no encontro que aconteceu sexta-feira, em São Domingos de Rana. Foram 14. “Há sempre alguém que não pode. Já chegámos a fazer dois jantares no mesmo ano por isso.” Nos últimos dois anos – embora em 2021 ainda tenham pensado nisso, o receio levou a melhor – o jantar não aconteceu. Para tristeza da grupeta. Este ano, era finais de outubro, inícios de novembro e já falavam do assunto, para garantirem que era desta. E foi. “Já estava tudo com saudades deste jantar. Já tem muita tradição. E há sempre malta nova. Estamos viciados nisto.”