Joel Neto

Vida de adulto


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Diz a Marta que, se acordar de manhã e tiver vinte pontos na agenda, incluindo comprar cebolas e extrair um tumor maligno, vou executar cada uma dessas obrigações – absurdamente – com a mesma exacta noção de importância.

Tive uma dessas infâncias que nos deixam cheios de sentimentos de culpa. Ainda hoje me custa libertar-me das expectativas que restem sobre mim, mesmo quando eu próprio consiga já não ter nenhuma, e, por muito que me ocorra reclamar o contrário, preciso demasiado de me sentir amado para ser tão livre como às vezes quase acredito que sou.

O que sou mesmo, como sói nestes casos, é um escravo da ideia de dever. Por isso foi tão significativo ver-me há dias, ao fim de uma série de semanas de trabalho em excesso, levantar os olhos para um fim-de-semana que me obrigaria a fazer quatro mil quilómetros de avião e mais duzentos de carro, metade no domingo de manhã e a outra metade no domingo à noite, cuidando de não deixar atrás nem o Tylenol nem a powerbank, a ver se ao menos o meu bebé não se lembrava de nascer nesse intervalo – e dar por mim a dizer: “Não consigo”. Mais: “Não vou”.

Nada nesta história é inspirador, claro. Falamos de um homem adulto que se comprometeu com um convite (embora não daqueles que zelem por deixar margem para rejeição) e que, entretanto, não só pediu escusa mas vem agora escrever sobre isso numa crónica de revista, esforçando-se por celebrar uma senhoria de si que, como neste ponto já se tornou óbvio, não possui. A única esperança é que se tenha tratado de um primeiro passo para, em próxima oportunidade, conseguir dizer não por uma razão mais plausível do que sentir-se à beira do colapso, consciente de que é assim que os ataques cardíacos acontecem e de súbito receoso de não chegar a conhecer o seu filho, quanto mais a ser efectivamente pai dele.

Li algures que a pobreza leva cinco gerações a erradicar numa família. Pergunto-me quantas levará este tipo de fragilidade. O meu desejo é conseguir educar o meu filho de um modo que ele se sinta seguro o suficiente para dizer: “Não vou porque não posso”. Melhor: “Não vou porque estou cansado” (suprema ofensa). Melhor ainda: “Não vou porque não quero”. Para dizê-lo, para se sentir seguro ao fazê-lo e para não voltar a pensar nisso: nem porque lhe custe defraudar expectativas, nem – muito menos – porque tema que o desaprovem. Até pode sentir-se na obrigação de ser gentil, o que aliás seria perfeito. Mas para proteger os outros, não a si. Quero muito ajudá-lo a construir essa força. Quero muito salvá-lo daquela infância.

Quanto a mim, claro: hei-de continuar um boneco nas mãos de quem me queira chantagear. Até eu próprio. Diz a Marta que, se acordar de manhã e tiver vinte pontos na agenda, incluindo comprar cebolas e extrair um tumor maligno, vou executar cada uma dessas obrigações – absurdamente – com a mesma exacta noção de importância. E está a ser amável. A verdade é que, se extrair o tumor vier mais abaixo na lista, sou capaz de o deixar para o dia seguinte – as cebolas, aparecendo antes, compro de certeza. É a lástima que sou.

Um dia destes, porém, eu disse-o: “Não vou porque não consigo”. Não me perdoaram, mas custou-me menos do que teria imaginado. E, de repente, olho para os próximos meses e nada me parece realmente obrigatório, a não ser cuidar do meu filho. Chamam-lhe uma prisão. Neste momento, parece-me a suprema liberdade.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)