Margarida Rebelo Pinto

Vermelho e azul


Rubrica "A vida como ela é" de Margarida Rebelo Pinto.

Se cada vez que os homens praticassem o ato sexual arriscassem a vida, a vergonha social, a interrupção dos estudos ou da carreira profissional e fossem obrigados a acarretar com a responsabilidade de criar e de educar um ser humano para a vida, iriam querer ter poder de decisão sobre a matéria.

“Basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Terás de manter-te vigilante durante toda a tua vida.” Palavras de Simone de Beauvoir. O mundo sempre foi um lugar perigoso para as mulheres. Nunca me canso de o repetir, porque a luta é eterna. A questão do direito ao aborto nos Estados Unidos é mais um momento histórico na luta dos direitos das mulheres e representa uma derrota massiva com consequências incalculáveis. Revogar um direito conquistado há 50 anos, entregando a cada estado a decisão quanto à sua legitimidade, é chocante, é absurdo, mas é sobretudo muito triste. E é também a prova de que Trump não é a doença, mas o sintoma visível de uma sociedade que protege mais os violadores do que as mulheres.

O meu amigo Preston, produtor de teatro na Broadway e de televisão em Hollywood que escolheu Portugal para viver, quando se apercebeu da escalada imparável da onda trumpista, desabafou há dias, os olhos tristes postos no bife: “A partir de agora vou deixar de me referir ao meu país como os Estados Unidos, prefiro chamar-lhe América”. Preston refere-se à inevitável escalada de polarização na sua pátria. Se existe uma característica transversal no povo americano é o patriotismo. Mesmo vivendo fora, um americano é sempre um americano. O problema é que a América é um país governado por brancos, velhos e ricos, cujo objetivo é perpetuar a pobreza entre os pobres como uma das formas de preservar a riqueza entre os ricos. Não nos iludamos: por detrás dos movimentos moralistas existem sempre interesses económicos. Num país sem um sistema de saúde que cumpra os mínimos, retirar o direito ao aborto às mulheres não é apenas intervir de forma abusiva e desumana na liberdade do indivíduo, é contribuir para uma sociedade desordenada e caótica. E quanto mais caótica for a sociedade, mais poder ganha quem já o tem.

Assim, a América é um país ainda mais dividido entre vermelho e azul (as cores que representam, respetivamente, republicanos e democratas) onde as atrocidades ocorrem diariamente. No Texas, crianças com menos de 12 anos vítimas de abusos sexuais são sujeitas a lavagens cerebrais para cumprirem o seu “dever de mães”. O estado do Lousianna tentou em maio passar uma proposta de lei para o internamento compulsivo, em alas psiquiátricas, de mulheres que fizessem abortos. Foi recusada, mas é um sinal inequívoco de um futuro ainda mais negro.

Independentemente das convicções morais e religiosas de cada um, é importante olhar para a realidade tal como ela é: abortos praticados clandestinamente provocam perfurações no útero, falência de órgãos, infeções, infertilidade e morte. O que provoca a gravidez é o ato sexual, mas num mundo machista está fora de questão responsabilizar os homens pelos seus atos. Nenhuma lei sobre o corpo da mulher devia ser feita por homens. Se cada vez que os homens praticassem o ato sexual arriscassem a vida, a vergonha social, a interrupção dos estudos ou da carreira profissional e fossem obrigados a acarretar com a responsabilidade de criar e de educar um ser humano para a vida, iriam querer ter poder de decisão sobre a matéria. Enquanto as mulheres forem vistas como incubadoras, o mundo só pode piorar. Não estou a ser radical. Estou a ser mulher. A luta é eterna, não podemos baixar os braços.