Rui Cardoso Martins

Umas semijóias de moços


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Só veio um, os outros dois nem apareceram no julgamento. Do meio da sala, o oficial de diligências telefonou:

– Estou, é o senhor João Ped… Ah, é o pai! (Estou a ligar para a casa do pai…) Ele deu este número!

Discutiu uns segundos com a voz do outro lado e desligou.

– Diz que não sabe do filho, informou o funcionário.

– Se calhar está preso, imaginou a procuradora do Ministério, que estava bem disposta, conhecia uma juíza que ligava aos arguidos a ameaçar “aonde é que está?, eu estou aqui à sua espera!” e eles vinham.

O oficial de diligências suspirou:
– O João não está preso, o pai disse estar na sua casa.

– Eu, se fosse a si, ironizou a procuradora, tinha gasto as fichas todas. Dizia: “Estamos a ligar do tribunal porque o seu filho vai ser julgado e não apareceu! E olhe que tem até um crime bastante grave, veja lá!”

Bruno foi o único a aparecer. Bruno: olhos tristíssimos e as cuecas mais altas do que as calças no rabo. Bruno: 22 anos, prisão domiciliária, dois filhos que estão “com as mães”. Optando por não falar dos acontecimentos, pelo menos saiu de casa e apanhou ar. Ficar detido no quarto depois da pandemia é confinamento a mais. Ali estava Bruno a ser recordado de mais um dos seus falhados investimentos em furtos, atentados à propriedade e à inteligência.

A acusação é cristalina, de ridícula: no dia 6 de Março de 2019, os três jovens foram a um centro comercial de Telheiras e, “em comunhão de esforços” – furto qualificado -, chegaram-se a um expositor de jóias, uma loja-ilha, forçaram o vidro da montra e levaram quatro alianças de aço banhado a ouro de 17 quilates, 8 berloques, uma pulseira para os berloques. Valor aproximado de 600 euros. Não era ouro puro, mas valia dinheiro, e a vendedora estava de costas, ocupada, quando eles puxaram o vidro.

– Eram semijóias. Eu não me apercebi, mas vieram-me logo avisar: olha que acabas de ser assaltada!

Porque a loja-ilha ficava no centro do centro comercial, era vigiada por câmaras e por lojistas de toda a praça. Alguns dos comerciantes até já conheciam João porque a namorada trabalhava num fast-food no local. Que esperavam os três estarolas? Que sonhavam três pequenos deliquentes cuja folha do cadastro começara a engordar?

Provavelmente, que o mundo fosse simples como eles o imaginaram. Há coisas que valem dinheiro, essas coisas existem para alguém as roubar, temos 20 e poucos anos de idade e já 20 folhas no registo criminal, cada um. Há um futuro pela frente que é nossa intenção estragar. Temos a vida toda para não a viver.

O interrogatório da namorada do João deu pena. Tem um filho dele. Disse que ele não apareceu porque arranjou um emprego recente e não queria faltar. Quanto aos factos: no dia do assalto saíra fardada do restaurante e o João estava sozinho. Abraçou-a e foram para casa no autocarro. Já não se lembrava bem se tinha ido para casa dele ou para casa dela. Afinal, recordou-se que o João não chegara a entrar no autocarro e que ela foi sozinha para casa… neste caso, para casa dela, pois se fosse para casa dele, ele também estaria no autocarro, se calhar, até porque nessa altura ainda não viviam juntos… Então admitiu que afinal o João tinha o Bruno ao lado quando a fora buscar, mas que os dois namorados tinham saído sozinhos do centro comercial. Finalmente lembrou-se que eram três homens – o João tinha dois amigos ao lado – mas não foram buscá-la à saída do restaurante, deviam estar por ali, e não foram no autocarro. Até que lhe parou de repente o pensamento.

– Eu acho que eu fui no autocarro, quase de certeza…

– A senhora é obrigada a falar a verdade! Acha que faz algum sentido, o seu namorado estar à sua espera com mais dois, três pessoas à sua espera!?”

Nessa noite já toda a gente sabia que o namorado dela assaltara uma loja do centro comercial. O gerente do restaurante chamou-a: “O teu namorado fez um assalto”. Tudo filmado. O João é uma semijóia de moço. Aço banhado. Como não apareceu no tribunal, por uma vez ninguém o viu ou apanhou. Pode até estar a trabalhar. Ela está desempregada.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)