Rui Cardoso Martins

Uma visita ao filho

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Não percebi bem quando entrei. Um homem podia ir para a prisão por não ter cumprido o plano de reintegração social e entretanto o que fizera?… Há pessoas formidáveis: proibido de se aproximar da ex-mulher, consegue de outro tribunal o direito de visitar o filho, de maneira que aproveita a visita ao filho para bater outra vez na mulher. O homem ali estava de pé, pescoço de lobo magro em gravata, ouvindo a sua advogada:

– …. os meritíssimos juízes desembargadores concederam parcial provimento ao recurso apresentado pelo arguido e, em relação à pena acessória – a proibição de contactos com a vítima -, não abrangeu os contactos que se mostravam necessários à convivência do arguido com o filho de ambos.

A juíza e a procuradora abanavam as cabeças.

– Sim, mas o facto de o senhor poder ter o seu filho a contactá-lo não significava…

– Que pratique crimes, interrompeu calmamente a juíza.

– Exactamente, não é?!, continuou a procuradora, virando-se para o homem. Estes crimes terão então sido cometidos durante uma visita que terá sido feita ao seu filho, ou na tentativa de visitar o seu filho?

– Sim, disse o homem.

– O senhor está com um plano de regime de prova aqui nestes autos, não está?

– Sim.

– O senhor está a cumprir o plano? Como é que as coisas estão?

O homem respondeu que mudou de médica de família e que estava à espera de consulta para “este mês”.

– A sentença transitou a 2 de Julho de 2019, foi há mais de dois anos. Só este mês é que está à espera das consultas?

– Foi este mês que me foi atribuído um novo médico de família. Anteriormente, mesmo através da CPCJ [Comissão de Protecção de Crianças e Jovens], tinham-me feito uma marcação ali na unidade junto do Júlio de Matos, depois desmarcaram-me e não voltei a ser contactado.

E falou em credenciais, mudanças de residência, nova vida “com outra companheira”, só agora lhe atribuíram nova médica.

– Até desde muito antes da covid eu tenho estado a aguardar.

– Mas como é que tem estado a aguardar?! Tinha havido aqui comunicações da Direcção Regional de Reinserção Social de que o senhor foi contactado para 6 de Fevereiro de 2020 e que não compareceu para elaborar o plano.

Páginas restolham, folhas estalam, canetas rabiscam, gargantas tossem, novas páginas restolham…

– O senhor tem comparecido devidamente nas datas que lhe são indicadas? Tem cumprido e respeitado tudo o que foi decidido no plano de reinserção?

O homem dizia que sim e falava em cartas, em idas à esquadra.

– Não sabia que tinha de me dirigir ao tribunal para informar dessa alteração da minha morada, porque a minha carta foi lá ter à esquadra. Eu não sabia que tinha de proceder junto do tribunal, eu entendi que…

A juíza interrompeu, a voz estragada pela rinite:

– Mas o senhor quando prestou termo de identidade e residência… Veja lá, na primeira alínea está lá: se mudar de residência tem de informar logo o tribunal.

– Mas como eu fui à esquadra e eles lá fizeram a alteração, pensei que houvesse um…

– Mas a esquadra é o tribunal, senhor arguido?! A esquadra é a esquadra, estão lá agentes… O tribunal – aqui – é um tribunal.

O homem irá prestar novo termo de identidade e residência.

– Amanhã ou depois pode mudar para uma casa maior, com piscina e não sei quê… e tem de comunicar. Está a compreender, se temos de contactá-lo e não sabemos como o fazer!

E na casa com piscina, se a houver, haverá ainda criança?

A juíza que primeiro o proibira de se aproximar da mulher, dois anos antes, era a mesma que ia decidir se ele ia para a prisão por ter cometido um crime em regime de prova. Ela fora desautorizada por desembargadores que, em nome do direito do filho a ver o pai, e vice-versa, deixaram reentrar o lobo no curral dos cordeiros.

Creio que já se percebe melhor, se for para perceber.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)