Joel Neto

Uma nova hierarquia


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

“Oh, homem! Pronto, dá cá isso que eu trituro – vai lá mas é buscar a gaita do leite!” E foi só a primeira vez que perdeu a paciência comigo.

E, claro, agora também temos uma Bimby, excentricidade que sempre achei que não entraria em minha casa. É para eu aprender: pode ser que se acabem as proclamações. De qualquer maneira, estou a engolir certezas absolutas desde que a Marta comprou aquele tubinho Clearblue e me chegou toda a tremer, estava eu a arrumar não sei o quê no alpendre: “Podes vir ali ver uma coisa comigo?”.

De maneira que recebemos a Bimby, ao fim de dois dias ganhámos coragem para abrir a caixa e, já que a coisa cabia em cima do armário, pusemo-nos os dois a cozinhar, o que até acho romântico. Não tínhamos os ingredientes todos para nenhuma receita, mas havia pelo menos uma em que nos ocorriam alternativas. Além de que o cabeçalho anunciava um tempo de preparação de cinco minutos, que o resto a máquina fazia.

O problema é que, quando ela finalmente fez alguma coisa que não dar ordens, já eu levava uma boa meia hora de trabalho. Tinha fervido água, tinha posto a cozer a massa e os brócolos, tinha dado um salto ao quintal para apanhar salsa e, como pelo meio decidira trazer espinafres – que me parecera bem pôr-me logo a lavar -, já estava mais do que atrasado para ir à garagem buscar uma caixa de leite para engrossar a farinha.

Mesmo assim, não fez mais do que triturar salsa, e aliás com aquele tom de: “Oh, homem! Pronto, dá cá isso que eu trituro – vai lá mas é buscar a gaita do leite!”. E foi só a primeira vez que perdeu a paciência comigo. Dali a bocado já estava a apitar para eu dar corda aos sapatinhos e rapar de uma vez a salsa do copo, caso contrário nem o pai morria nem ninguém almoçava.

Naturalmente, a Marta não podia fazer muito mais do que ir lendo as ordens no visor – até porque, numa situação assim, a principal responsabilidade de uma mulher grávida é, como se sabe, avaliar o desempenho do marido. Mas, sim, elas é que cozinharam. E foram tão competentes que ainda arranjaram tempo de me dar na cabeça por parar a tomar umas notas para esta crónica. “Nem sequer estás a tentar”, suspirava uma (já não me lembro qual). “Ao menos abre as anchovas.”

Portanto, agora são duas a mandar em mim cá em casa. Fazendo bem as contas, já vou em quarto da hierarquia, atrás da Marta, da Bimby e do Gauguin. Não se prevêem melhoras. Em princípio, quando o Artur chegasse, eu devia passar para quinto. Só que, como antes dele ainda vem a Colette, o Outono não terá acabado e já eu estarei em sexto. Atrás, só o Sporting.

Felizmente, ainda falta vir cá uma senhora fazer uma demonstração. Espero ao menos que me ensine a gerir o tempo, porque, para já, os cinco minutos de preparação são para a Bimby e os 45 de tempo total são para mim. Claro: já não espero poder levar a Fitbit à boca e encomendar a refeição, tipo Michael Knight. Mas ainda tenho uma última esperança de poder pegar no telefone, abrir a app e mandar fazer um assado, que o Artur passa a apanhá-lo daí a 25 minutos.

Seja como for, havemos de nos entender. Os matriarcados são assim: uma pessoa estrebucha, estrebucha, mas arranja sempre maneira de se apaziguar (que remédio). Não me digam é que, em cima disto tudo, ainda vou engordar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)