Uma criança salva
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Emojis muito emotivos, coroas de rei, símbolos de terror edipiano no telemóvel, caretas e medo. De súbito, em 2020, a salvação. O especialista clínico falou da época em que um rapazinho – num golpe individual inesperado da pandemia, esse camartelo de nevroses que a todos caiu em cima – foi resgatado pelo isolamento forçado do Mundo.
– Podemos dizer que foi salvo pelo confinamento.
O especialista calcava as palavras, como um gato fixa as unhas no tapete para não ser levado onde não quer. Repetiu que o rapazinho ficou em casa sem estar com o pai, foi separado do pai e isso fez-lhe muito bem. Porquê?, perguntou a juíza.
– Porque nesse período ficou contido e isso ajudou muito a uma segurança. E do ponto de vista do desenvolvimento não foi só ao nível emocional, também foi ao nível cognitivo.
Houve, de alguma forma, uma capacidade acrescida, que foi desenvolvendo.
Silêncio. A juíza virou-se para o advogado de defesa.
– O senhor doutor deseja alguma coisa?
– Com a devida vénia, sotora…
O advogado de defesa do pai, simpaticamente vestido de corvo, procurava desmascarar a acusação, como se fosse uma farsa inventada pela mãe e pelo menor. Isto é, nunca houve violência doméstica do pai contra o filho.
– Sotor, já aqui falámos de uma videochamada a que nunca assistiu.
– Não, nunca assisti.
– Promoveu alguma videochamada entre o menor e o pai?
– Não. Também nunca quis, porque isso iria prejudicar a relação que tenho com o menor. Eu nunca falo do pai ao menor. Eu omito. A figura paterna não a imponho.
– Então falam das coisas do dia a dia do menor?
– E fazemos outro tipo de trabalho. Não passa só por interrogatório, passa por outro tipo de actividades que se fazem… e nessas actividades a reacção acaba por ser projectiva, percebe?
– Então diga-me aqui uma coisa. Dentro destas videochamadas que existiram entre o miúdo e o pai, e continuam a existir, é normal o uso daquelas brincadeiras que agora se usam, daqueles bonecos, imagens?
– Sim, sim, daquelas coisas… Os ícones.
– Os ícones a fantasiar, digamos assim, a pessoa. É normal haver essa interacção entre o pai e o filho?
– O pai e o filho a mandarem ícones de…?
– Sim, brincadeiras… colocar uma coroa?…
– Não sei de nada, nunca o ouvi falar sobre isso.
Dantes, o rapazinho tinha muito medo dos tribunais, agora não fala nisso. O psicólogo soube que ele viera ali e que isso fora muito muito bem encaixado.
– E olhem que eu estava preocupado por o miúdo vir cá, não houve qualquer tipo de consequência.
– Esse medo dos tribunais terá sido no auge do outro julgamento?
– Sim. Foi noutro tempo. Não teve nada a ver com este.
Houve portanto mais julgamentos no infernozinho familiar.
O especialista clínico levantou-se, respirou fundo e saiu na sua camisa branca. Vieram testemunhas do pai. Uma colega de trabalho viu-o no dia de anos dela, a telefonar ao filho. É possível que trocassem símbolos no telemóvel, por exemplo uma coroa de rei. Não sabe “se foi antes ou depois da agressão, porque nunca soube de qualquer agressão”, o pai da criança “é exactamente o oposto!”. Claro que ficava triste, mas nunca ouviu o pai gritar ameaçar o miúdo, proibindo-o de desligar o telefone. Era o pai que sofria, não era o filho. O pai queria falar, só que o filho desligava segundos depois.
– Uma vez, depois do telefonema, vi que ele tinha uma lágrima.
No meio dos ricos e dos pobres, das misérias e loucuras do confinamento, uma saída: parece que uma criança foi salva.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)