Rui Cardoso Martins

Um projecto de burla

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Nem todos os burlões têm vigarista escrito na testa, mas por acaso conheci um simpático que – como adivinhei em vão, já que o não consegui evitar – acabou a roubar o sócio e amigo, ficou-lhe com o carro, dezenas de milhares das contas, etc.. Este ser falante tinha no jardim uma piscina com tecto de abrir que, evidentemente, nunca pagou (se calhar foram lá buscá-la a esta mesma hora, com água ou sem água, pois está em curso uma intimação judicial de arresto de bens) e esse, meus caros, trazia pendurada na pele da testa a gigantesca inscrição “cuidado, sou vigarista”. Tinha um lustroso projecto de vida – ser rico sem pagar – que fez dele perito em saltar de vítima em vítima, envenenando todos de simpatia, e o caso é tão triste, tão crescente e escandaloso, que a própria mãe começara a avisar os amigos dele para não se meterem em negócios com ele. Dizia “se calhar não é boa ideia, porque o meu filho…”, suspirava a senhora em voz alta, o coração sangrando, talvez fosse uma forma suprema de amor, pois consta que até a mãe ele incluíra no projecto de vigarice.

É sempre deste exemplar que me lembro quando ouço “quem não tem vergonha, todo o Mundo é seu”, e foi dele que me lembrei quando há dias assisti no tribunal ao balanço dos destroços que os burlões espalham pelo Mundo. Estava um procurador a interrogar uma mulher sobre um investimento que o marido fizera num projecto que, supostamente, envolvia Medicina e Banco Mundial.

– Achou que o negócio era legítimo?

– Sim. Esse senhor foi-nos apresentado por um advogado nosso conhecido. O meu marido arriscou esse valor, que nos fazia muita falta.

– A partir de que altura a senhora e o seu marido se começaram a aperceber de que o negócio não era o que tinham pretendido e que podiam nem sequer reaver o dinheiro?

– É quando ele começa a desaparecer, quando o meu marido começa a perder o contacto com essa pessoa.

– Então, a partir de certa altura o arguido deixa de contactar o seu marido?

– Sim, aliás, a determinada altura até deixou mesmo de atender o telefone. Ainda houve algumas mensagens recebidas mas depois deixou mesmo de atender ou responder.

O burlão era hábil em papelada empresarial e bancária, recebendo “suprimentos” e assinando uma confissão de dívida que nunca cumpriu, esperando que o caso fosse descaindo com o tempo.

– Quando chegam à conclusão, primeiro, que o negócio já não se ia materializar e, depois, que iam ter muita dificuldade em reaver o dinheiro investido, os 14 500 euros…

– Foi aí que percebemos que tipo de pessoa era.

– O seu marido sentiu-se enganado por esta situação?

– Sim, ele tinha-nos sido apresentado por uma pessoa de confiança e acreditou plenamente. Andou muito optimista, muito confiante.

Agora chegava-se ao impacto directo da burla. O dinheiro da família era destinado a outra coisa, mas foi desviado e desapareceu como manteiga derretida no alcatrão.

– O projecto que tínhamos era a educação da nossa filha. O projecto era pagar-lhe um curso no estrangeiro, como tínhamos feito com a mais velha. Catorze mil, para nós, é muito dinheiro, afectou-nos imenso.

A voz da mulher incluía agora a injustiça, a culpa maternal e paternal, por não dar à filha o que já dera à primogénita.

Um amigo do casal contou:

– Foi uma aposta que ele fez, mas teve de ceder noutras áreas, e afectou também uma das filhas. Era um assunto que já evitávamos, via-se que isso o deixava muito em baixo.

E o burlão a esfumar-se, como mestre escapista, especialista em desaparecimentos, em furtar-se a encontros com as pessoas que enganava. Mas um dia, no aeroporto de Bissau, encontraram-se por acaso. Contou o amigo que ele disse, perturbado:

– “Olha, está ali o tal senhor!” e foi ter com ele. Falaram na parte de trás do avião. Não ouvi a conversa. Mas quando o meu amigo volta, eu pergunto: “Então, como está isso?”. “Ele vai outra vez adiar o pagamento”, respondeu.

No dia do julgamento o burlão não apareceu. Nem o dinheiro, nem a vergonha.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)