Um Natal com o coração ao largo

Katerina, Olexandra e Anastasia, ucranianas, chegaram há nove meses. Em Portugal, encontraram teto, paz, uma mão estendida. Não se cansam de agradecer. Mas há barreiras que resistem. A língua, as dúvidas burocráticas, a incerteza quanto ao futuro. E uma quadra que nem de perto terá o sabor de outros tempos.

Dantes, quando esta altura do ano se aproximava, Katerina Nesterova, 72 anos de uma vida passada quase por inteiro em Kiev, sentia logo o espírito natalício a invadi-la. Por poder juntar a família, por haver tempo, pelo doce sabor do lar. “Sempre gostei muito desta época”, diz à filha. Olexandra, de 52 anos, vai traduzindo o discurso da mãe, no inglês possível. Mas de há uns tempos para cá tudo mudou, a vida tombou-a uma e outra vez, foram golpes tão contínuos que mal deu para respirar. Uma das filhas morreu-lhe em julho do ano passado com covid, o marido em setembro, com uma pneumonia, o irmão logo a seguir, Katerina ainda mal começara a colar os cacos. Depois veio aquela madrugada de 24 de fevereiro que não dá para esquecer, a guerra a entrar-lhes implacável pelo sono adentro, o som das explosões a ecoar num oitavo andar a norte de Kiev, na orla este do rio Dnipro, as sirenes a gritarem ensurdecedoras, a neta apavorada com os estrondos, elas (avó e neta) a fugir dali com pouco ou nada. Vieram as filas intermináveis, os mísseis a rasgar os céus, uma noite em claro numa estação de metro feita bunker, a mudança temporária para casa de familiares, o pão a sumir-se num ápice, o perigo que não parava de rondar, uma fuga apressada para a Polónia, onde a “Notícias Magazine” as conheceu, em março. Foi também lá que se encontraram com Olexandra, tia de Anastasia. E que arrancaram para Portugal, à boleia de uma missão humanitária promovida pela Câmara da Maia.

Agora, Katerina pode dormir em paz, sem o som das explosões a infernizar-lhe o sono, tem um teto, água, luz, comida, roupa lavada, um espaço para viver com a filha e a neta. Mas nada nesta época é como dantes. A anciã não esconde o desânimo. Pelas perdas irreparáveis, pela guerra que não dá tréguas, pela dor de ter de estar longe do país pelo qual continua a suspirar. “Agora é diferente. O meu marido morreu, a minha filha também, sinto-me triste, não tenho energia. Não é igual.” E os olhos começam timidamente a encher-se de lágrimas, por muito que ela se esforce para as conter. Ainda por cima morre de saudades da Ucrânia, guarda memórias tão boas do tempo em que lá viveu, ainda sonha voltar, gostava de ir lá morrer. “Mas não é possível pensar nisso agora.” Até porque tem uma neta a cargo, Anastasia ainda nem 18 anos fez, a mãe já morreu (a filha que Katerina perdeu para a covid), o pai há muito deixou de constar, resta à garota um padrasto que, à custa da lei marcial, continua retido na Ucrânia.

O desalento cravado nos olhos meigos da avó nada tem de ingratidão, não se cansa de o mostrar, usa o pouco português que sabe para agradecer. “Obrigado, obrigado a quem nos ajudou, obrigado a todos.” Di-lo uma e outra vez. Encontramos Katerina, Olexandra e Anastasia numa casa que lhes foi cedida pela Câmara da Maia, em regime de comodato (um contrato que prevê um empréstimo durante um dado período de tempo, assegurando que o bem é devolvido no mesmo estado em que foi emprestado). E que a autarquia tratou de restaurar, mobilar e limpar, antes de elas chegarem. Vieram para cá em junho, depois de terem passado três meses com uma família de acolhimento. É uma casa térrea em Gueifães (Maia), pequena e modesta, sem luxos nem cuidados decorativos. Tem duas janelas e três divisões, uma sala que é também uma mini-cozinha, um quarto com dois colchões, um deles no chão, uma casa de banho. Têm um pequeno fogão portátil, uma mesa para as refeições, quatro cadeiras, um frigorífico, um aquecedor, três ou quatro armários, o essencial para viver. “Não temos muitas coisas materiais, mas temos o mínimo. E as coisas materiais não são o mais importante”, dizem. Não há acesso direto pela rua, para se entrar é preciso passar por uma entrada comum e por uma casa que está cedida a uma outra família ucraniana, ao todo são três famílias. Mas isso não parece incomodá-las, veem até a proximidade com outros compatriotas como um ponto a favor. “Assim acaba por ser mais fácil, sentimo-nos mais integrados, mudarmos para outro país é muito difícil”, aponta Nastia (como carinhosamente lhe chamam a avó e a tia), que já “arranha” o português.

As Nesterova são uma das 22 famílias ucranianas que, em março, vieram para Portugal pela mão da missão “Sorrisos de Esperança”, organizada pela autarquia maiata. Na altura, 15 ficaram a residir na cidade. Mas quatro já voltaram para a Ucrânia. Uma outra mudou-se para a Áustria. As restantes dez, que incluem 15 adultos e seis crianças, continuam a ser acompanhadas pelas técnicas de Ação Social da autarquia. “Diagnosticamos, identificamos e providenciamos o que é necessário, sempre na perspetiva de ajudar a reconstruir as vidas, a reencontrar estabilidade emocional e económica, para que as pessoas se sintam cidadãs capazes e integradas nesta comunidade”, refere Emília Santos, vereadora do Desenvolvimento Social na autarquia maiata.

Katerina, por exemplo, teve direito a uma consulta oftalmológica e a um par de óculos, graças a um protocolo estabelecido com uma ótica local. Anastasia está a ter consultas de pedopsiquiatria e psicologia. Está ainda inscrita num grupo de voluntariado do município. E, ao fim de semana, com um empurrãozinho das técnicas, começou até a trabalhar num restaurante. “Lavo loiça”, esclarece. Pior é na escola, onde a barreira da língua se junta à intrincada rede dos termos específicos da área que escolheu. Anastasia começou um curso de Informática na Escola Secundária da Maia, gostava de ser programadora, mas tem sido tudo um enorme desafio. “É muito difícil. Nunca tinha tido Informática na escola e agora é muita coisa. E em português. Às vezes fico a pensar: ‘O que é que se passou aqui?’.” E acompanha o desabafo com um irritado “fuuu”. Mas apoio e compreensão não lhe têm faltado. Dos colegas, da diretora de turma, dos professores no geral. Aliás, as Nesterova não poupam elogios aos portugueses. “Gosto muito. São calmos, queridos, simpáticos”, sublinha Katerina. Nem esquecem toda a ajuda que têm recebido. “Arranjaram-nos esta casa, enchem-nos o frigorífico [recebem apoio alimentar do Rotary Club da Maia], têm-nos dado roupa, porque a que trouxemos foi pouca. Obrigado.”

O dilema de Olexandra

Enquanto Anastasia se divide entre a escola, o trabalho e o voluntariado, Katerina e a filha vão-se ocupando como podem. Estão agora a terminar um curso de Português, a que acederam por via do Centro de Emprego da Maia, com aulas diárias das 14 às 18 horas. Mas os progressos têm sido lentos. Para Olexandra, então, tem sido o cabo dos trabalhos. “A Nastia já fala bem, a minha mãe um bocadinho, eu pouco, pouco.” E esboça um sorriso que é um misto de sentimento de culpa e de “estou feita”. No resto do tempo, tenta levar a mãe a sair, a conhecer, a visitar. Quer muito ajudá-la a sentir-se em casa. “Já fomos a Gaia, a Matosinhos, a Vila do Conde, à Póvoa de Varzim, a Viana do Castelo.” Lentamente, e com um divertido sotaque, vai enunciando as localidades em que já fizeram “check”, sempre à boleia dos transportes públicos. E depois há o Porto, o Porto é especial. “Sinto-me o Harry Potter.” Olexandra di-lo e sorri como uma menina, enquanto, com gestos, tenta mostrar que se refere às capas usadas pelos estudantes universitários, semelhantes às do universo criado por J.K. Rowling. Também Katerina está rendida: “É uma cidade muito antiga, muito interessante, muito linda”.

Mas sozinha não se aventura. E essa é uma das razões que segura Olexandra em Portugal há já nove meses. Quando a guerra começou, vivia em Israel, com o marido e as filhas. Mas as primeiras imagens do conflito deixaram-na com o coração nas mãos, não podia não fazer nada, sabia que a mãe e a sobrinha precisavam dela. Arranjou então maneira de seguirem para a Polónia, juntou-se a elas, viajaram as três para Portugal. O plano foi sempre ajudá-las na integração e voltar para Israel assim que possível. Mas a missão é sinuosa. “Sei que a minha família sente a minha falta, falo com eles todos os dias, o meu marido e as minhas filhas [de 20 e 25 anos] até já vieram cá visitar-me, no verão. Mas a minha mãe e a Nastia precisam de mim aqui, ainda não são independentes, enquanto não forem não posso ir para lado nenhum, quero que se sintam confortáveis cá.” À questão da independência, acresce o medo de deixar Katerina entregue a uma solidão que se agigante. “A minha mãe sozinha não vai para lado nenhum. Estando cá, eu pego nela, vamos passear. Senão fica em casa, não se sente à vontade. Ainda por cima, a Nastia estuda, trabalha, passa muito tempo fora. E a minha mãe, vai passar aqui os dias sozinha?”, questiona, e a preocupação apodera-se-lhe do rosto. “É difícil para a minha família, mas eles compreendem, têm-me apoiado sempre.” Olexandra sente-se ainda mais constrangida por não ter um visto permanente, o que lhe tem suscitado uma série de dúvidas burocráticas. “Tenho sempre medo de ir e não conseguir voltar.”

Um emaranhado de obstáculos

Pavlo Sadokha, que se mudou para Portugal há mais de 20 anos e preside à Associação dos Ucranianos em Portugal, admite que os mais velhos são provavelmente “o grupo mais vulnerável” entre os mais de 50 mil refugiados ucranianos que chegaram ao nosso país nos últimos meses. Pavlo sabe-o por experiência própria. Quando a guerra começou, fez questão de ir à Ucrânia buscar os pais e uma irmã. “Ainda hoje não há um dia em que o meu pai acorde e não diga que quer ir lá morrer. E depois, não é que os mais velhos sejam maltratados, porque não são, mas não sabem deslocar-se sozinhos e acabam por passar muito tempo em casa, porque nós também temos de trabalhar e não podemos passar muito tempo com eles.”

Outro grupo de risco são os mais jovens. Até por causa da escola. Ainda recentemente, o “Jornal de Notícias” deu conta de que, dos mais de 14 mil menores ucranianos que entraram no país nos últimos meses, apenas 4376 estão matriculados no sistema de ensino em Portugal. Afonso Nogueira, responsável pelo espaço “Todos Aqui”, um centro de atendimento a pessoas refugiadas da Ucrânia, criado pela Câmara de Lisboa a meias com a Associação de Ucranianos de Portugal, ressalva que, entre os restantes dez mil menores, “muitos estão inseridas no ensino ucraniano à distância”. “Mas claro que nós achamos que este não é o modelo mais indicado. Depois de dois anos de pandemia, de um trauma grande provocado por uma guerra e pela mudança de país, em termos de saúde mental, este modelo não é o mais indicado. Além de que dificulta a integração.”

O responsável considera que, no geral, o processo de “acolhimento tem corrido bem” – “tem havido uma abertura e uma boa vontade enorme, tanto a nível individual como dos municípios, das organizações, das empresas” -, mas há problemas significativos que importa considerar e estudar, tanto mais quanto não se perspetiva que estes refugiados possam regressar a casa a breve trecho. “Um dos grandes problemas tem sido a procura de casa. Porque muitas famílias vieram a achar que ficariam cá uns dois meses e acabaram a ter de ficar por tempo indeterminado. Claro que houve muito boa vontade nos centros de acolhimento e mesmo nas famílias que receberam refugiados, mas a capacidade é limitada. E tem havido essa necessidade de encontrar outras soluções. É verdade que foi criado um fundo que permite financiar rendas, através do programa ‘Porta de Entrada’ , mas, para isso, as famílias quase têm de fazer prospeção imobiliária. E os senhorios têm de aceitar as condições, o que nem sempre é simples.”

Pavlo Sadokha fala ainda de outros obstáculos. Desde logo ao nível do emprego. “As pessoas têm tido dificuldades no que diz respeito ao reconhecimento dos diplomas das áreas em que se formaram e em que trabalhavam na Ucrânia. Há um instrumento online que o permite fazer, mas faltam assistentes que falem as duas línguas e possam ajudar.” Afonso Nogueira acrescenta que, tal como aconteceu com o alojamento, no início houve “muita boa vontade, muitas empresas que se chegaram à frente, mas que entretanto já perceberam que as pessoas não vão regressar ao seu país amanhã e estão um bocadinho menos abertas”. Não todas, realça. Há ainda a questão da língua. “Procurar cursos de língua portuguesa continua a ser difícil. Porque não há informação de qualidade disponível em ucraniano, nem um mapa que esclareça todos os cursos que existem, onde e como funcionam. Recebemos muitos pedidos de ajuda neste sentido”, salienta Pavlo. Afonso deixa ainda uma outra nota, particularmente relevante. “E falta algo importantíssimo, que passa por implementar de forma realista um plano de apoio à saúde mental dirigido aos refugiados. O que levanta uma dificuldade acrescida porque este trabalho tem de ser feito diretamente, não se pode recorrer a tradutores nesta área. E há muito poucos profissionais que falem as duas línguas.”

De volta às Nesterova, e à quadra festiva, Olexandra confessa que não têm grandes planos. Nem há espírito para isso. “A Nastia, no Ano Novo, vai a uma festa com o namorado [também ucraniano, mas conheceram-se já em Portugal]. Nós não vamos fazer grande coisa. A minha mãe vai cozinhar um bolo típico e vou levá-la a dar uma volta, a ver as ruas, as luzes de Natal, a sentir a atmosfera.” E desejos de Natal, têm? Faz-se silêncio, há como que um suspiro coletivo. “Eu gostava de ter as duas partes da minha família juntas [a mãe e a sobrinha, mais o marido e as filhas], ter os papéis para poder viajar livremente, para poder levar a minha mãe à Ucrânia.” Nastia diz que quer apenas calma. “Tudo sem stress”, atira com graça. Katerina põe o dedo na ferida. “Queria paz, queria ver as pessoas felizes.” E os olhos humedecem-se de súbito, Olexandra emociona-se também. Mas logo põem o coração ao largo. E voltam a sorrir. “Obrigado, obrigado por tudo.”

*A “Notícias Magazine” contou pela primeira vez a história da família Nesterova em março. Esse trabalho, “Guerra e paz: a longa odisseia de uma família de refugiadas ucranianas“, pode ser lido no site da NM.