Joel Neto

Um lugar onde crescer


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

É a escala. A continuidade de que falava Handke: o sentimento de repetição de certos actos e o processo de identificação do próprio eu – é a duração. E, sim, num lugar destes podem perder-se as proporções.

Porque é que eu quero – porque é que nós queremos – que o Artur cresça aqui, no lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, ilha Terceira? Porque crescerá a meio caminho entre a Europa e a América. Melhor: porque estará no centro do Atlântico Norte, no coração da cultura ocidental, entre influências europeias, norte-americanas, africanas, sul-americanas – até asiáticas. Mas não só. Porque terá o mar à volta, como aquilo que o separa do outro e também o une a ele, desafiando-os a ambos a estender o braço. Porque poderá conhecer uma razoável abundância e todos os géneros de pobreza, contanto consigamos ajudá-lo a munir-se de curiosidade e de amor. Porque terá no próprio quintal as árvores e as flores, as pedras e os animais sem os quais nenhuma criança devia crescer. Porque aqui os elementos são mesmo elementos: o vento sopra, a água jorra, a terra treme. E porque, apesar de todo esse milagre, a escala se manteve humana.

Há dias esteve cá a Mariana Ferreira, com as colegas da rítmica. Houve um tempo em que não tinha sobrenome: era só a Mariana, filha do Nuno e da Leocádia, a menina tímida que não se conseguia fazer rir. Agora é uma das garotas que a Marta treina, e que de vez em quando eu vou ver em trocas e colaborações, alternando passos rítmicos com dificuldades corporais e de aparelho. São adoráveis: ainda há dias juntaram os mealheiros para comprar uma pilha de babetes e peluches que reuniram numa cestinha para o Artur. E eu pergunto-me como me verá a Mariana. Provavelmente não se lembra daquelas noites de marchas em que me metia com ela, tentando roubar-lhe um sorriso. Mas eu lembro-me. E agora lembro-me dela de dois âmbitos diferentes, o que nunca me aconteceu com as crianças que conhecia em Lisboa (ou a elas comigo).

É a escala. A continuidade de que falava Handke: o sentimento de repetição de certos actos e o processo de identificação do próprio eu – é a duração. E, sim, num lugar destes podem perder-se as proporções. A queijada local é a melhor queijada do Mundo, o poeta local é o maior poeta do Mundo, a gruta local é a mais fantástica gruta do Mundo. Corrompem-se as posições relativas, as fotografias perdem profundidade de campo, as perspectivas desorientam-se. Um homem foi quase médico, quase pintor, quase político, quase professor, quase empresário e, mesmo assim, cultiva de si mesmo a imagem de um semideus. Praticamente todas as maneiras de se ser vaidoso, em terras como esta, são menos elegantes. Portanto, só se pode viver aqui saindo daqui. Ou mantendo um pé dentro e um pé fora, como já escrevi.

Mas na cidade éramos todos passageiros. Estávamos a caminho de outro lugar, não conhecíamos o motorista e o lugar nunca era o mesmo. Os objectos, as rotinas, as cores, os cheiros: nada disso tinha realmente de se guardar. Já aqui, guardamo-los. E sobre todos eles guardamos as pessoas. Frequentemente, o camponês, em que tantas vezes se esconde mais mundo do que naquele semideus. Mas para falar disso terei de falar de como a Marta percebeu que, pela primeira vez na vida, tinha vizinhas, e essa é outra crónica.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)