Rui Cardoso Martins

Tristeza, angústia, temor


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Em resumo geral, algures na vida, Bernardo tomou a decisão mais importante e falou com a mulher, explicou-lhe (mas talvez ela desconfiasse, talvez até já soubesse) o que sentia quando se punha a pensar no escuro, disse à filha que o papá ia continuar a gostar dela, saiu de casa e foi tentar ser feliz, vivendo os novos direitos humanos do século XXI no Ocidente. Em resumo curto, os direitos do século implicam deveres e falhar-lhes é legalmente castigado:

– O senhor Bernardo vem acusado do crime de violência doméstica na pessoa do senhor João.

Foi assim que a juíza começou a sentença de Bernardo, depois explicou pormenores da “ofensa à integridade física qualificada”. Quase no fim da decisão, em voz alta, decretava o carácter público de um crime da vida privada de Bernardo:

– Agiu voluntariamente sabendo que a conduta era proibida por lei, querendo provocar ferimentos no ofendido, sabendo que é seu companheiro… ou que era seu companheiro.

Bernardo vestia um belíssimo, mas discreto, fato de tweed inglês. O cabelo grisalho e rente, os sapatos de couro emolduravam – por assim dizer – o porte de um cavalheiro. Trazia uma mochila cara na mão direita e um brilho estóico nos olhos, pronto para tudo. Firme como um pinheiro adulto na orla da praia, quando o vento e o mar se jogam um contra o outro, sob um céu de chumbo.

O casal Bernardo-João saiu para a noite de Lisboa, há dois anos, e correu mal. Parece agora uma história exemplar do pré-confinamento, as coisas estranhas que aconteciam na madrugada. Uma noite danada que vai sair cara, caríssima a Bernardo, e amarga e violenta para João. Entre o que ficou provado:

– Depois dos factos, o ofendido sentiu tristeza, angústia, temor, impedindo-o de retomar a vida de modo saudável.

Não sabemos tudo, mas chega o registado na ficha policial, na acusação do Ministério Público e, agora, na sentença. Viviam fora de Lisboa, resolveram ir jantar à capital e, depois, foram a uma discoteca. Tudo o mais se provou, disse a juíza:

– Ou seja, a relação dos senhores, a ingestão de bebidas alcoólicas neste dia, que se dirigiram para Lisboa a fim de se dirigirem a espaços nocturnos, com a intenção de pernoitarem num apartamento que pertencia ao senhor Bernardo, que no fim da noite, ao saírem da discoteca Finalmente, os senhores discutiram por causa de uma terceira pessoa. Que às três da manhã, o senhor João se dirigiu ao apartamento onde o senhor estava e aí voltaram a discutir. Durante a discussão, o senhor disse ao senhor João que teria de se ir embora. O senhor João disse que não, acto contínuo o senhor aproximou-se do senhor João e agrediu-o na face e na nádega direita, em seguida, arguido e ofendido colocaram-se em agressão física mútua.

Continuou para a sala, Bernardo deu-lhe pontapés, atirou-o para o sofá, agrediu-o na cara.

– O ofendido teve um difícil regresso à actividade profissional, dificuldade de retomar a actividade, de tomar decisões necessárias às suas funções, falta de estímulo para o trabalho.

A favor de Bernardo, a ficha criminal limpa, a integração profissional, ser pai de uma criança que acompanha no crescimento. Contra Bernardo: disse a juíza que em casos de grande gravidade, como a violência doméstica, a justiça tem de ser “não-miserabilista, sob pena de quebra de confiança da comunidade”. Entre danos físicos, patrimoniais e morais, Bernardo pagará cerca de sete mil euros a João.

– Entendeu tudo o que lhe disse?

– Sim, disse Bernardo.

Saiu num passo certo. Uma mulher saiu atrás dele a chorar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)