Joel Neto

Trinta e duas


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Não há limite para as aplicações de uma terceira mão. A falta que uma terceira mão faz é tão gritante que se torna até difícil conceber como chegámos aqui só com duas.

O mais curioso é que se inventa de tudo para atenuar o tormento dos pais de um bebé – de fraldas descartáveis a robôs de cozinha especiais, de câmaras de vigilância a chupetas cada vez mais iguaizinhas a um mamilo de mulher – e ainda ninguém inventou uma terceira mão. Uma terceira mão, sim, podia revolucionar isto tudo.

Até quem não tem bebés beneficiaria de uma terceira mão. Por exemplo: quando queremos apanhar os cocós do cão e segurar a trela do bicho ao mesmo tempo, mas depois não há uma mão livre para abrir o saco dos cocós – o que é que nos falta? Ou quando saímos do supermercado com os sacos das compras (estão a ver, daqueles grandes, das compras do mês), um em cada mão, à chuva, a correr, e de repente precisamos de accionar o comando para abrir a porta do carro – com que mão o accionamos se não tivermos uma terceira mão?

Não há limite para as aplicações de uma terceira mão. A falta que uma terceira mão faz é tão gritante que se torna até difícil conceber como chegámos aqui só com duas. Apetece rir na cara de Darwin. Maior erro de design, não me ocorre.

E, claro, isso torna-se ainda mais evidente quando há um bebé em casa. Se uma pessoa segura o bebé ao colo com uma mão e quer dar-lhe do biberão com a outra, com que mão põe o Benfica mais alto? Ou o funeral da rainha?

Felizmente, ainda me lembrei disso a tempo. Resultado: ganhou a humanidade. Eis aqui, portanto, o meu grande contributo: uma terceira mão. Tantos anos a escrever livros, naquela obsessão godardiana de me tornar-imortal-e-então-sim-morrer, e afinal bastava-me pensar um pouco em como seria a minha vida – que digo eu, a nossa vida – de um certo Outono em diante.

Hei-de ser lembrado por isto. A terceira mão, sim, trar-me-á fama e fortuna. Imaginem o impacte que uma coisa destas terá – sei lá – na indústria da tecelagem. Ou no desdobramento táctico de uma equipa de basquetebol. Ou no próprio sexo (mal posso esperar por contar à Marta).

Até na medicina. Quer dizer: uma pessoa está ali tranquilamente a realizar uma cirurgia vascular, põe-se a cauterizar uma artéria qualquer, o eletrocautério numa mão e o dreno na outra, e de repente sente uma comichão avassaladora no nariz – com que mão atende ao imperioso chamamento? (E isto se não tocar o telemóvel. Mas, pronto, vamos uma mão de cada vez.)

Portanto, é Deus querer: o homem acaba de sonhar. Por mim, considero a patente registada. Um dia hão-de dar o meu nome a escolas secundárias. Não fica mesmo excluída – não quero parecer convencido – a inscrição do nome dos Açores no palmarés da academia sueca. E mais importante do que isso tudo: o meu filho vai crescer orgulhosíssimo.

“Ah, o meu pai é bombeiro”, diz um. “Ah, o meu pai escreve poesia”, gaba-se outro. E ele: “Pelo amor de Deus, o meu pai inventou a terceira mão.”

Portanto, se a vossa dúvida era essa, a resposta é não: não me preocupa nada a sobrecarga de trabalho que o bebé trará – se estou preparado para ela, se vou conseguir ser tudo o que terei de ser. As mulheres é que têm derrocadas emocionais às 32 semanas. Eu fui ao Cortázar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)