Bruno Miguel teme e vai ficar a tremer. A mãe dele também. Célio Silva sente-se todo entupido e só quer libertar ira e vapor - está tão alterado no transtorno que nem repara que meteu a filha criança num protesto antidemocrático bloqueador. Dona Neusa há de chamar esquerdista ao jornalista, vai dizer que dali não arreda pé, mas sairá com a sua bandeira verde-amarela debaixo de uma chuvinha murcha. Entretanto houve um carnaval. Bolsonaro caiu, Lula foi o que se reergueu. E o Brasil virou.
18.44 horas do dia 30 de outubro de 2022. Nada na filosofia nos ensina o início de um arrepio ou explica em que consiste a divisão de alegria e a sua máxima proliferação. Só talvez a eletrostática ou então a eletrodinâmica, essas compreendem as cargas e descargas, os corpos elétricos, o movimento e os amperes da euforia dos que caminham de novo vivos. Foi tudo na altura de um eco cosmológico de gritos arrebatados, não ensaiados, um alvoroço de vozes a arder num verbo transitivo que pôs o país na posição contrária ou inversa para que estava a caminhar.
Foi às 18.44 horas que a contagem de votos da 2.ª volta presidencial do Brasil, que tinha começado uma hora e 44 minutos antes com Jair Messias Bolsonaro, 67 anos, o candidato do partido da Direita evangélica e liberal, a liderar a contagem dos primeiros votos, que começou no sul, onde ele é especial, virou. A partir dali e da hora histórica crepuscular, Luís Inácio Lula da Silva, 77 anos, candidato da Esquerda e do Partido dos Trabalhadores, duas vezes anteriormente posto pelo povo no Palácio do Planalto (2003 a 2011) era o 39.º presidente da República do Brasil. Foi renhido: 50,9% para Lula, 60 345 999 votantes; 49,1% para Bolsonaro, 58 206 354 votantes. Foram uns meros 2 139 645 de votos a mais num país de 212 milhões de habitantes, de 156 milhões de eleitores, a menor margem da História do Brasil, o maior vexame para o único presidente não reeleito desde a redemocratização.
O miniprotesto golpista que não chegou a ser
Agora são dois dias a seguir. A manifestação é macambúzia, está frio, chove um xaile de morrinha rota, uma forte frente fria assola São Paulo desde a noite eleitoral, a temperatura despencou para metade, 14 graus, e debaixo dos grandes alfeneiros, que são árvores fantasmais com troncos tentaculares, corre um vento insidioso. Ali é a borda da mega metrópole São Paulo. Não estão nem 50 pessoas junto à histórica Ponte das Bandeiras, na cercadura da marginal Tietê, a vasta estrada sempre inchada de carros do anel rodoviário de betão que divide o centro de São Paulo do seu subúrbio carecido. E percebe-se logo que aquelas pessoas só precisam de exteriorizar raiva e frustração, libertar vapor aos berros, “Brasil primeiro”, “Brasil é nosso!” ou de atirar pelo ar o quadrilátero ideológico paradoxal “Deus, pátria, família, liberdade”.
São adultos extremados, metade homens, metade mulheres, elas mais reformadas ou desempregadas, eles, alguns, com t-shirts paramilitares, voz grossa unilateral, todos com a bandeira verde-amarela a ulular. Ouvem-se duas cornetas de ar, atiram-se mais slogans monotemáticos, muitos carros retribuem a rechinar. Estão só na berma, já não tapam trânsito algum. E aos poucos sobreleva-se a melancolia daquela ira ideológica sem saída em democracia e o protesto não cresce para a montanha, é só um rato que ninguém vai perfilhar. São bolsonaristas radicais e estão apostados num protesto golpista sem provas nem sentido contra a vitória democrática de Lula nas presidenciais.
No país e nos seus 27 estados, entre dia 31 de outubro e 2 de novembro chegou a haver 235 troços de estrada bloqueados pelos protogolpistas. Armaram-se com camiões, pneus a arder, reclamação, faixas de letras capitulares a gritar “LULA NÃO!” ou súplicas sem reciprocidade “SOS Forças Armadas”. Em 48 horas, a Polícia Rodoviária Federal, que foi acusada de ser permissiva com os protestos ou até conivente com alguma desordem pública, aplicou 1992 multas a condutores que obstruíam a liberdade de ir e vir. O balanço mostra que o valor das multas ultrapassa 18 milhões de reais, num mínimo de cinco mil reais (988€) ao máximo de 17 mil (3362€), para quem é cabecilha ou organizador.
Mas, aos poucos, como as cartas em castelo, ou as claras mal batidas que ganham demasiado ar, o protesto desinsuflou. Os estados problematizados caíram para 11, os bloqueios para menos de metade durante o feriado de dia 2, e à noite, após o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro sobre a legalidade do jogo da obstrução – “Não é legal: o fechamento de rodovias prejudica o direito de ir e vir das pessoas, está lá na nossa Constituição, e nós sempre estivemos dentro das quatro linhas”, disse o ainda chefe de Estado num vídeo pelas redes sociais -, o movimento condenou-se à autodestruição. Resistiram ainda um pouco mais, como os gauleses irredutíveis, os redutos do bolsonarismo, Santa Catarina, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Acre, Goiás. Já no Nordeste, região em que Lula teve quase 70% dos votos, os bloqueios eclipsaram-se, as estradas estão todas abertas, caíram todos os bloqueios da conspiração. Também não terá ajudado o Palmeiras ter sido campeão antecipado do Brasileirão, hendecacampeão, roubando o 1.º lugar nas manchetes aos golpistas que nunca tiveram o horizonte minimamente à mão.
Célio queria uma intervenção militar, porra!
Este é um discurso típico sintetizador. “Eu estou a protestar porque eu sou contra a Esquerda, sou contra o comunismo. Eu acredito e defendo os valores da família, da igreja, da liberdade e eu digo, essa eleição foi fraudada, as urnas foram fraudadas, tem vídeos que provam, essa eleição não tem transparência.” É Célio Silva, 30 anos, divorciado, que diz sem pestanear. E entra logo de pés juntos contra o Mundo. “Não foi o Bolsonaro contra o Lula; foi o Bolsonaro contra a Folha de São Paulo, foi o Bolsonaro contra o Judiciário, foi o Bolsonaro contra toda a media, a media é toda esquerdista, comunista.” E o que é que espera conseguir aqui, Célio Silva? Ele espera um SOS marcial. “Espero uma intervenção militar, porra!” Espera uma intervenção militar contra a democracia no seu país? “Sim, uma intervenção militar. Mas eu respeito a democracia. Ou então tem que ter um terceiro turno [3.ª volta da eleição], desta vez com votos auditados.” Mas os votos são auditados, Célio: tem o Tribunal Superior Eleitoral, tem a fiscalização de urna do Tribunal de Contas da União, vocês têm das urnas mais encriptadas do Mundo todo, não há registo de violação e o terceiro turno é uma ficção, não existe, pois não? “É, nunca teve. Mas isso assim é que não pode ficar.” E depois o Célio Silva insiste que a filha Milena quer falar. A filha tem 11 anos. “Eu acho que o Lula não pode entrar”, diz a criança muito devagar. “Se o Lula entrar, o nosso país vai afundar. Não vai ter o que comer. O nosso Brasil não pode virar a Venezuela, não”, diz a Milena, a Milena de 11 anos. Você sabe, Milena, que o Lula já foi duas vezes presidente do Brasil [2003 a 2011]? Da última foi no ano em que você nasceu e você nasceu aqui, não era Venezuela, pois não? A pequena Milena, que não devia estar ali, não sabe o que responder. E o pai, que veste um hoody grosso com estampados de comics do Batman, boné, bandeira ao pescoço, cara de paulistano apanhado no frio, que hoje deixou de trabalhar na sua oficina de conserto de motas para protestar, cavalga. “Vai deixar de ter liberdade religiosa. E o direito de ir e vir.” Mas, ó Célio, Lula já foi presidente oito anos e houve liberdade religiosa, ou não? “É. Mas ele vai tentar outra vez e se conseguir, só Deus sabe o que pode acontecer.” E o direito de ir e vir, que está consagrado na Constituição, é o que vocês, protestantes, estão a tentar interromper aqui, não é? O direito dos carros irem e virem. “É”, diz Célio Silva sem perceber a projeção. “Mas não gostei do resultado da eleição, por isso estou a protestar, a defender os meus direitos, os direitos das pautas em que acredito.” E depois o Célio Silva delira e quase merece levar com um poema na cara, ou com um lírio estalado na cara, qualquer coisa em que a beleza vença a incivilidade, como levou o atordoado homem da repartição de Finanças no poema de Manuel António Pina, pelo que ele diz agora: “E agora, o Lula e os petistas e os comunistas e os esquerdistas estão todos infiltrados na cultura, você sabia? Eles vão tentar nos infringir com a cultura, você vai ver, você vai ver”, fica o Célio Silva a ecoar. Mas nisto abeira-se uma mulher, é a dona Neusa, tem 71 anos, cabelo arroxeado a flamejar, vem vestida de auriverde da cabeça aos pés, e atira logo a abrir: “Cuidado. Ele é um perigoso esquerdista!” O Célio Silva faz cara de ofendido, depois de confundido, fica a fixar a mulher que redireciona o indicador. “Não é você. É esse, esse aí”, corrige ela a esticar para o repórter a trajetória da arma do dedo apontador. O repórter sorri relativamente, leva a mão ao coração, faz uma cara de emoji corado, depois outra de emoji maroto e sossega a senhora dona: “Não conto, dona Neusa, não voto aqui no seu país, só voto mesmo lá em Portugal”, e a mulher que anteriormente tinha dito “nós somos a resistência civil!”, “nós somos a resistência moral” e “daqui não vamos sair”, mas que menos de meia hora depois já estava a abalar para sua casa de classe média paulista lá na zona boa da Consolação, faz um emoji cara de careta, depois uma cara de corada e desanda dali a murmurar “nossa, que frio está a ficar aqui”, e a sua capa feita duma bandeira vai atrás dela frouxa e murcha a ondear.
A Avenida Paulista a arder de emoção
Na enorme língua preta e verde-amarela da Avenida Paulista a bulir, as pessoas parecem translúcidas, avançam no tráfego das grandes ondas, deflagram umas nas outras, os sorrisos estouram desde dentro e não param de se multiplicar. As cores são uma cacofonia, os sons uma alegria, estrepitam foguetes no ar, até as nuvens mudam de cor, o vermelho é o novo sabor.
Depois da eleição de 30 de outubro de 2022, o dia da virada em que o Brasil ferveu e transbordou, Lula surgiu ao povo em chamas, alagado no carnaval de lágrimas, exultante de suor, com palavras de apaziguamento. E foi com a sua mão esquerda aberta erguida, a mão na fotografia gigante, a mão a planar no oceano de povo que encheu todos os olhos e todos os cantos da Avenida Paulista a apinhar e a cantar, a mão dos seus quatro dedos excecional, que prometeu um Brasil para todos os brasileiros.
“Olha, eu queria apenas dizer para vocês que essa não é uma vitória minha. Não é uma vitória só do PT. Essa foi uma vitória de todas as mulheres e homens que amam a democracia, que querem liberdade, que querem um país mais justo. Essa foi a vitória das pessoas que querem mais cultura, que querem mais educação, que querem mais fraternidade, mais igualdade. Essa vitória é de todos os homens e mulheres que resolveram libertar esse país do autoritarismo. Por isso, eu queria dizer para vocês que eu ‘tô’ com dificuldade, porque eu teria que fazer três discursos: um naquela ponta, outro naquela ponta e um aqui.” E Lula foi, e Lula fez, e o povo todo chorou.
Depois daquele dia, como um balde de água dura, caiu uma forte frente fria que iria durar mais seis dias e só ao sétimo descansou, atirando outra vez para os 29 graus o termómetro adequadamente tropical.
O rapaz dos três empregos está a temer
É outro dia depois. O rapaz dos três empregos, Bruno Miguel Miranda, 29 anos, que é broker, agente imobiliário e explicador a tempo parcial, passa pela mulher cujo emprego é sentar-se numa esquina a segurar um cartaz político perdedor e não a vê. Já vai no segundo autocarro e a paisagem que aguarela na sua janela é agora muito diferente. Saiu do Condado coruscante na Avenida Faria Lima, a alameda da alta cilindrada e da finança, passou excecionalmente pelo Jardim Ângela, o bairro mais despossuído de São Paulo, onde foi ver uma prima enfermiça e entretanto anoiteceu na pele e nas paredes. Ali, os postes passam ensarilhados nos fios da clandestinidade, que cresce, a estrada entorta, dois amortecedores dão repelões, as casas colam-se umas às outras como colmeias incompetentes ou mestres cubistas incapazes, a cidade é um caos rodopiante de poeira sonora e visual, tudo é mais descurado, mais pobre, daninho, fatal.
Vai tão absorto, Bruno Miguel, que nem vê António Ferreira, o bananeiro de 68 anos que nunca viu o mar – mas que já viu e continua a ver mais estrelas do que os demais porque se levanta todos os dias há 40 anos às quatro da manhã e não sabe parar de sorrir com os seus quatro dentes todos -, não vê mais nada nem mais ninguém, continua a pensar na prima acamada, acabadiça, tão magra, tão descorada, era bonita, alegre, roliça, como é que vai contar à mãe que a Ana Liz, pobre Ana Liz, se perdeu. Há de chegar a casa 120 minutos depois de ter saído do seu emprego de camisa engomada e bem cintada no Condado. Foi um tempão no autocarro, tempo inteiro de um jogo de futebol com prolongamento e irresolução, ele que nem é do Palmeiras, nem sabe quem é Abel Ferreira, o Pensador – “Não importa de onde você é, de onde você veio e qual a cidade onde você nasceu, nós somos do tamanho dos nossos pensamentos” -, nem imagina que o penafidelense transformado em palmeirense vai que não vai ainda pode vir mas é a ser treinador do Esquadrão de Ouro Brasilzão.
O rapaz já chegou a casa em Jundiaí, já beijou a mãe, já se descalçou, já descabelou o irmão, que o sacudiu agarrado ao jogo shoot em up no ecrã, já decidiu que não é esta noite que lhe vai contar da dependência e da perdição da Ana Liz. Em vez disso, estica a conversa do resultado eleitoral, que não correu como contavam, enquanto dá voltas no prato aos pastéis do Bar do Pedro no Mercadão que a mãe acabou de lhe aquecer. “Você lembra, mamãe, daquilo que meus clientes investidores andavam a dizer se o Lula viesse a ganhar?” A mãe retorce as mãos e o avental, encosta-se ao balcão a temer o que ele vai dizer e diz: “Lembro, sim, Bruno Miguel, aquilo de quem tem dinheiro para investir? E que se ganhasse o PT ia passar a investir no exterior?” “Isso”, diz o rapaz a cirandar com o garfo pelo prato, a esfarelar um pastel. “Hoje já houve reunião especial lá na empresa e algumas pessoas vão ficar com horário reduzido, eles preveem quebras”, diz ele reticencioso. “Mas não se preocupa, não, a gente se vira, já tenho um quarto emprego em vista, é uma coisa de segurança, é daquele amigo que eu falei, a gente vai-se virar.” A mãe ensombrece, disfarça o olhar, começa a mexer num pano muito depressa a limpar uma mancha imaginária no balcão, diz: “Ah, você não tem fome, meu querido, andou de novo comendo porcarias lá no Condado, chega em casa não tem mais fome não”, e retira-lhe cuidadosamente o prato da frente com lentidão, reembolsa dois dos pastéis intactos e quando já os metia no frigorífico pergunta sem olhar para trás: “E a Ana Liz, você foi finalmente vê-la, como ela está?” Apanhado de surpresa, a pensar no quarto emprego, o rapaz inventa uma tosse, foi o que lhe ocorreu, levanta-se muito depressa, vai curvado a tossicar, debruça-se na pia para beber diretamente da torneira. “Não bebe dessa, meu querido, tem aqui da filtrada que é melhor”, diz ela a levantar uma caneca transparente na mão. O rapaz engole, limpa a boca com as costas da mão, endireita-se, faz que se recompõe dos pulmões, diz. “É, não deu não, amanhã a gente vê, talvez eu possa passar finalmente lá.” E a mãe desvia os olhos, vira ligeiramente as costas, retorce-se outra vez no avental, faz de conta que não percebeu e fica a morder um lábio para não chorar. “Vou dormir, sua bênção, minha mãe”, diz o rapaz a sair da cozinha, a passar a mão pelas costas e pelo braço da mãe, “Deus te abençoe, meu querido”, e quando ele já vai a fechar a porta do quarto e já está a fitar o poster antigo do Neymar colado na parte de dentro da porta, que tem os cantos escanados, reparando que as mãos lhe tremem, ainda a ouve dizer num fio muito baixinho, muito fino, a esmorecer, “durma com os anjos, meu amor”.