Três destinos em aberto

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Às vezes pergunto-me, pergunto-me… depois lembro-me do meu caro Mário de Carvalho, que gosta de perguntar: se te perguntas, porque é que não te respondes? Porque não sei. Para onde foram aquelas vidas? Que Natal tiveram, que Ano Novo as espera? Passei anos a escrever histórias de tribunais. Há cinco anos, regressei a este poço da morte portuguesa, vidas às voltas numa roda de aço a alta velocidade, em explosões de motores, ódios, amores, acasos ridículos, planos mal desenhados. A qualidade improvável da realidade: quando escutares uma história inverosímil, que ninguém se atreveria a publicar, prepara-te porque é verdadeira. A primeira frase que escrevi, no regresso em 2017, foi: “Vivemos presos a coisas estranhas que ficam normais”. Um homem entrara algemado na sala de audiências, era Rodrigo, condenado por usar o bilhete de identidade de outra pessoa para pedir créditos em lojas. A ex-mulher tinha feito o mesmo: pôs a sua fotografia num bilhete de identidade furtado e levou um televisor para casa sem pagar. Dias depois, a mulher estava na sala de tribunal, bela e perplexa. Berta trouxera escoltada a filha bebé, uma bonequinha de caracóis. Berta disse que não sabia de nada. O companheiro trazia coisas valiosas e dizia sempre que era comprado a um amigo. A menina agarrou o microfone dos réus com uma vozinha astral:

– Qué cantar!

– Queres cantar?!

– Eu cante! Eu cante, cante!

– Minha querida, isto não é para cantar, disse a mãe.

– Pode cantar, que não está a gravar, sossegou o funcionário.

Um microfone humilde, baço, feito para cantar confissões, não canções. O feio microfone dos réus pareceu levantar o pescoço e agradecer ao júri, surpreendido por passar à final. O que é que a criancinha viu em casa, plasmado em ecrã comprado com crime?

– Qué cantar!

E agora, 2021, a entrarmos em 2022, o que cantará esta menina de (faço as contas) quase sete anos? Os pais estarão presos? Uma semana depois, vi o rapaz dos headphones azuis. Tinha 20 anos e ia ser julgado pela primeira vez. O rapaz rebentou um carro no dia 25 de Dezembro de 2015. Roubou GPS, auricular, fugiu.

– Eu não estava sóbrio. Tinha bebido álcool e a porta estava aberta. Lembro-me de fugir, vinham pessoas atrás de mim.

Era dia de Natal e não tinha prendas, não tinha mãe, não tinha pai.

– Eu estava a viver na rua.

– O senhor tinha ajuda de alguém?

– Ninguém.

Em 2017, estava já a tirar um curso de cozinha. Tinha um quarto, uma cama. Encontrou um pai sem arrombar mais portas.

– Vivo com o meu pai. O meu pai adoptivo.

– Foi adoptado?

– Ainda não é, mas está a tratar disso.

– Vive com a pessoa que o criou, é isso?

– Vivo com a pessoa que me reconheceu.

– Que o senhor trata como pai.

– Sim.

E surgiu um frágil sorriso no rapaz dos headphones azuis.

Dias depois (que mês, este regresso…), avisaram-me no corredor que estava ali um presidiário muito perigoso. Ameaçara de morte um guarda prisional. Polícias couraçados como besouros barricavam esquinas do tribunal. Veio de macacão creme, com os braços algemados atrás das costas.

– É assim, podem-me condenar, o meu nome está aí escrito, eu não digo! Eu sou massacrado dentro da cadeia!

– Vamos ouvi-lo para dizer de sua justiça.

– Justiça em Portugal, justiça em Portugal?! Eu já estou condenado, eu posso ir embora!

E cinco vezes recusou dizer o nome.

– Sou presidiário desde 91, desde 91 para aqui, só estive dois meses fora. Preso desde os 16 anos, em vários presídios.

No dia do caso, quando recolhiam os tabuleiros nas celas, António quis telefonar. O guarda respondeu que tinha de ter pedido o papelinho com o jantar. O telefonema era só no dia seguinte, mas o guarda, com as senhas na mão, decidiu que “violava as regras”.

António não recebeu visitas. Ameaçou o guarda de morte.

– Falar não é crime. Para mim, crime é eu chegar aqui e vazar-lhe um olho.

Mas quando António saiu, algemado atrás das costas, parecia um menino assustado.

Onde estais, menina cantora, rapaz dos headphones, menino velho que vive na cadeia? Daqui vos mando o que não sei dizer, mas vou dizer, o meu amor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)