Toy é rei no regresso das festas populares

Não tem filtros nem superstições. Foge ao politicamente correto e é muito mais do que um cantor de música ligeira. A prova são as multidões de gente de todas as idades que junta em cada palco que pisa pelo país. No ano de voltar em força aos espetáculos de verão, fomos para a estrada com Toy. Está na moda, sabe disso. E a agenda está carregada, concertos quase todos os dias, são para cima de 50.

Vila de Roriz, terra de mosteiros em Santo Tirso. Sexta-feira, são 19.30 horas, o sol ainda brilha, e o palco já está erguido no meio do recinto relvado, ladeado de árvores, onde se avistam mesas corridas à moda de arraial e pequenos carrosséis. É a festa de S. Pedro de Roriz. Há já quem guarde lugares na primeira fila, munidos de cadeiras de praia pousadas mesmo coladas às grades, para o grande concerto da noite. Os foguetes que se fazem ouvir, qual coincidência, parecem um anúncio há muito esperado por uma comissão de festas que tanto trabalhou por isto: Toy chega de Mercedes preto, vestido de polo rosa e calças de ganga, num corre-corre, entre beijos a meio mundo. Não é hábito fazer soundcheck, mas o técnico de som é novo e não deixa nada por mãos alheias.

Os músicos já o esperam em cima do palco, chegaram a meio da tarde. A bateria, a guitarra, o baixo, o teclado, as back vocals, está tudo pronto. Entre banda, técnicos, road manager, roadie, motorista (que também é braço direito e amigo de longa data), são 13 os elementos da equipa. Alguns seguem-no nesta vida há duas décadas. “Podemos fazer uma cena?”, pergunta. É ele quem marca o ritmo na guitarra e “No woman, no cry”, de Bob Marley, começa a soar nas colunas. Indicações e mais indicações ao técnico de som, não descansa até estar perfeito. Nem deixa pendurada a meia dúzia de miúdos que ali está a gritar “Toda a noite” de papéis azuis na mão. Salta do palco, dá autógrafos, tira selfies. “Vocês estão a fazer esta reportagem só comigo? Estou na moda, não estou? Até vou ser a cara do Intermarché, convidaram-me.” António Ferrão não tem filtros, diz tudo sem medos, é pura genuinidade para lá das graças sem fim. No cartão de cidadão, está a um passo dos 60, mas sente-se com 35, mesmo depois de um AVC há 15 anos. Palavras dele. Ainda há tempo para ir aos camarins, instalados em contentores brancos nas traseiras do palco, antes do jantar. E mete-se à estrada a caminho do restaurante Casa da Eira, de portas abertas só para a equipa.

Saudades da lufa-lufa dos espetáculos de verão? Tantas. “Quando, em 2020, comecei a desmarcar concertos foi uma tristeza abismal. Sempre a pensar nas pessoas que trabalham comigo, neste pessoal todo. Resolvi gravar e pedi-lhes para participarem.” Não é que seja rico, diz, mas na verdade foi bafejado pela sorte (será mesmo sorte?) de nunca parar à conta de uma presença televisiva que já vem dos primórdios – não há quem não se lembre das músicas do Buéréré ou do mítico programa “Na casa do Toy”, de 2003. “Fiz 50 canções para as novelas da SIC, 40 para o ‘Amor Amor’ e mais dez para a ‘Lua de Mel’. Na RTP, fiz a banda sonora do ‘Pôr do Sol’ e participei em episódios, fiz seis programas ‘I love Portugal’, fiz o ‘Taskmaster’. E fui comentador do ‘Big Brother’ na TVI. Trabalhei sempre.” Só que a falta dos concertos, essa, “foi muito, muito forte”. “Porque é o que mais gosto de fazer.”

Escolhe filetes de pescada para jantar. E água, só bebe água quando está a trabalhar. Neste ano, está a vingar bem o jejum da pandemia. Mal imaginava. Não tem as contas na cabeça, embora seja contabilista de formação, só no verão são para cima de 50 concertos. Está em todo o lado. “Achava que quando isto acabasse que as pessoas iam ter muita fome de concertos, que ia haver muito trabalho. Mas é muito gratificante estar a acontecer desta forma. Até fico sem jeito quando as pessoas são generosas e me fazem elogios. É um bocadinho assustador ao mesmo tempo, porque querem-me para tudo e nunca gosto de dizer que não.”

O telemóvel não pára de tocar. A antiga presidente da Câmara de Setúbal liga-lhe, a mulher também (é casado desde 2009). À mesa, ainda aproveita para decorar os nomes de todos os elementos da comissão de festas, que apontou nas notas de um dos dois telemóveis. É ritual, faz questão de o fazer em todos os lugares por onde passa. Há de usar o dom da memória em palco. Para já, vai usando das anedotas para entreter todos à volta. Ao padre da freguesia, que o provoca, responde sem pruridos: “Só temos senhoras bem comportadas. Não vendo corpos em palco. Também dou missa, mas é devagarinho.”

E os missais vão longos, Toy está em estado de graça. Em cima do corpo já traz concertos em festas académicas, no Rock in Rio, onde conseguiu uma enchente no palco digital, no São João do Porto – na mesma noite, apesar de muitos percalços, ainda atuou em Vila do Conde às duas da manhã -, no Seixal, onde juntou mais de 20 mil pessoas. E tantos mais que lhe escapam da memória. “Depois ainda jogo à bola”, atira. A forma física de quem aguenta uma correria de espetáculos, uns atrás dos outros, numa roda-viva bem mais árdua do que se possa pensar, acredita piamente dever à genética. “E faço concertos todos os dias. Há melhor treino?” Não há.

Dança, flexões e solos de bateria
Este é o ano do regresso em força das festas populares, sem restrições à mistura. O povo estava sedento dos arraiais, das procissões, dos concertos, de freguesias inteiras a trabalhar para a festa. Os dois maiores municípios do país bem podem ser reflexo disso. Segundo a Câmara de Lisboa, só para as festas de 2022, foram investidos 1,7 milhões de euros, entre a autarquia e a EGEAC. No Porto, nas festividades alusivas ao São João, o santo popular da cidade, a Câmara investiu 630 mil euros. Certo é que estamos a poucas semanas de agosto, o mês-rei das romarias e do retorno dos emigrantes. Da Senhora da Agonia em Viana do Castelo à Nossa Senhora das Graças em Bragança, vem aí também a Feira de São Mateus em Viseu, a Nossa Senhora da Saúde em Gaia ou as Gualterianas em Guimarães.

O fenómeno Toy, presente em tantas por todo o país, com públicos que vão literalmente dos 8 aos 80, tem explicação. Pelo menos para ele. “Tem a ver, acima de tudo, com a minha postura. Mais do que com a minha música. Quando disse em televisão que no Natal fumávamos todos erva lá em casa, foi um ai jesus. Mas é mentira? Não é. E se já tinha pessoas de uma certa idade que me achavam piada, os mais jovens também começaram a gostar. Porque faço tudo de cara à vista. Ou seja, o meu caráter está à vista de toda a gente.” Até podia ser essa a única razão, não é. Toy dá espetáculo em palco. É muito mais do que música popular. É um entertainer e sabe disso.

Do restaurante acelera-se até ao Parque de Lazer de Roriz. Faltam poucos minutos para as 22 horas. Está um mar de gente em frente ao palco. Idosos, famílias, crianças, jovens. Toy entra no camarim para mudar de roupa: calças e blusão de couro pretos, t-shirt preta com um coração dourado estampado. Auriculares onde se lê “Toy” em letras de glitter, ora douradas, ora prateadas. O vice-presidente do Moreirense, Orlando Alhinho, aparece-lhe atrás do palco para lhe dar um abraço. Veio de propósito para o ver. Há um facto inequívoco, o cantor conhece gente em todos os cantos de um Portugal pequenino. Antes do espetáculo, não há superstições. Só aquece a voz – “e porque me dizem que faz bem”. E nervos? “Não. Está tudo pronto.”

Sobe ao palco com o público ganho. Mesmo não sendo crente, quase parece obra de Deus. Não há canção que não seja cantada em coro. E quase nem precisava de suar, mas não faz a coisa por menos. Aqui, entra música ligeira, pop, rock, maluquice, entretenimento. Tanto que ele próprio já não se consegue fechar num só rótulo. “Sou o Toy, não se sabe bem o que é. Acho que já deixei de ser um substantivo para ser um adjetivo.” Carrega o improviso – e é rei nessa arte – para um show de rimas constantes com Roriz e de canções criadas no momento onde entram os nomes das gentes memorizados pouco antes. O resultado não podia ser diferente: “E salta Toy e salta Toy, allez allez”. E Toy salta, e levanta a camisola para uma dança com a barriga, e toca guitarra por cima da cabeça, e faz beatbox, e flexões, e movimentos de anca até ao chão com Lola, uma das back vocals. Há tempo para as luzes dos telemóveis se erguerem em baladas românticas, como há para cantar Queen sozinho à guitarra, sem banda, ou para chamar o António em uníssono. Até para descer do palanque, num salto acrobático, para abraçar o público. Não entra cerveja no palco e o concerto não é toda a noite, mas é mais de hora e meia de performance, que fecha apoteótica logo depois de um solo de bateria assumido por ele.

A saída é apressada, vai ao camarim e corre logo para o carro. Há uma explicação: ainda vai atuar a um jantar da Liga Portuguesa de Futebol, em Valbom, numa alta rotação difícil de igualar. Amanhã há mais.

Nos bastidores de uma figura adorada
Se a idade é um posto, Toy sente-o bem. Continua a não ter medo do ridículo, a não ser politicamente correto nem sequer consensual. Mas ganhou um estatuto que ainda não foi capaz de lhe roubar a humildade. “Se olharmos para o que se dizia de mim na altura do programa ‘Na casa do Toy’ (quando pedia a legalização da prostituição, por exemplo) e para o que se diz agora, sente-se muita diferença. Porque tinha 30 e tal anos. Agora, com mais de 50, as pessoas respeitam-me mais. Não mudei. Continuo a não ter filtros. Não sou aquele indivíduo que só porque é cantor ou artista pensa: mas vou agora expor-me em cuecas aqui? Posso fazê-lo. É a minha postura na vida.” É despretensioso. Pode não parecer, no meio de tanto folclore e da loucura aparente, mas Toy – que cresceu a ouvir Pink Floyd, Genesis e Freddy Mercury – conquistou lugar cativo na cultura popular portuguesa também por ser um músico de mão cheia. Toca bateria, guitarra, baixo, teclas, compõe, escreve letras, faz produção. Conta quase cinco mil músicas registadas, de tantos géneros.

Passou a vida inteira a dizer que “não há estilos de música”. “Há músicos bons e músicos menos bons. Há grandes compositores e compositores medianos. E há malta que não cantando tão bem pode ser muito bom intérprete. Como o Gilbert Bécaud (músico francês).”

Às vezes dá um pontapé na água, não gosta de estagnar. O novo tema “Vai ao castigo”, que mergulha no rock, é prova disso. E é prova também de que há rock ligeiro. Entra no alinhamento que está bem ensaiado para todos os espetáculos deste verão. É sempre o mesmo. “Não se faz nada sem planear um bocadinho. Mas 20% do meu concerto foi criado em palco, em momentos de improviso que, resultando, depois adoto para todos. Aconteceu isso quando cantei Bob Marley pela primeira vez.” Aliás, há sempre margem para improvisar, dependendo do que vai sentindo do público. E o de Vila Frescainha de São Pedro, em Barcelos, foi mais difícil de ganhar. Ainda bem – já lá vamos.

Sábado, 17.30 horas, o palco montado numa praceta em chão de pedra junto à igreja. São as Festas de S. Pedro anunciadas num arco gigante. Os músicos chegam numa carrinha branca para o soundcheck. Passam tantas horas juntos nesta época que já se conhecem como ninguém. Os camarins são dentro do salão paroquial, há comida de boas-vindas. Queijos, presuntos, croissants, bolachas, compotas. José Carlos Carvalho, o road manager, anda num rodopio, de papel na mão, a anotar o que cada um quer jantar para avisar o restaurante.

Testam-se instrumentos, aquecem-se as vozes. E Toy – que chegou perto das três da madrugada ao Hotel Axis Basic, em Braga, onde toda a equipa dormiu – junta-se às 19 horas para todos subirem ao palco e afinarem pormenores. Claro, já há admiradores na primeira fila a pedir atenção. Ele rasga o sorriso e não consegue dizer “não”. É uma ciência que talvez nunca venha a aprender.

Desta vez, o restaurante para jantar não é exclusivo para a equipa. Mal põe os pés dentro, há um terramoto de selfies na cozinha, atrás do balcão, autógrafos a clientes, abraços, beijos. Quis omelete, para contrabalançar com a posta mirandesa do almoço com um amigo. E tem piadas – quase sempre malandras – na ponta da língua para tudo. A figura de palco não é uma personagem, os concertos são mostruários perfeitos de quem é Toy nos bastidores. “Sou um palhaço”, assume. E apesar da descontração, também é maníaco por profissionalismo. “Sou um gajo porreiro, mas no trabalho gosto de saber de tudo o que está a acontecer.”

O concerto só vai arrancar às 23.30 horas, há margem para brincadeiras entre todos nos camarins – e há muito espírito de equipa aqui -, para exibir dons dos músicos que o acompanham, para afinar a guitarra, para mostrar as sapatilhas que acabou de comprar, para recordar quando tropeçou nos cabos a entrar em palco e quando há vontade de ir à casa de banho durante o concerto. Para decorar, mais uma vez, os nomes dos elementos desta comissão de festas. Para mostrar fotos dos cães, dos gatos, dos filhos (tem três), da mulher. Tem pouco ou nada a esconder.

Enquanto isso, lá fora, uma procissão de 17 andores, feitos por cada lugar da freguesia, carregados em ombros por populares, percorre a praça até à igreja. E há uma zona de arraial debaixo de um manto de luzes para comes e bebes. É também muito disso que vive uma festa popular.

Improvisar, a arte de um artista
É hora do espetáculo. Está uma multidão à espera, mas esbarra num público pouco mexido e tem de investir ainda mais no improviso, num rol de rimas sempre personalizadas: “Se os homens querem ficar belos, bebam vinho sim senhor e depois venham para Barcelos”. Os momentos de êxtase entre danças e flexões repetem-se. É fórmula vencedora. E brinca: “Vocês fazem-me lembrar a minha sogra, leva pelo menos hora e meia para acordar”. A ovação era inevitável e haveria de conquistar a histeria que tanto procurou em autênticas maratonas em cima das tábuas. Puxa das músicas da novela da SIC, faz uma “tradução para português do Alentejo” de “You can leave your hat on” de Joe Cocker. Ainda dá dicas disfarçadas ao técnico de som. E mais um improviso: “Sensual, és tão sensual, na Frescainha não se canta nada mal”. Na audiência, sobressaem t-shirts estampadas com refrões das músicas sabidas de cor, mensagens em letras garrafais a correr nos ecrãs dos telemóveis levantados. E ele deixa o corpo e a alma em quase duas horas de concerto que se despede com “Estupidamente apaixonado”. Valeu a pena. Mal sai: “Hoje o concerto foi muita bom”. Tanto que se formou uma fila de fãs a perder de vista no final. E ele volta. Já chegou a estar mais tempo a dar autógrafos do que em cima do palco. Até porque “o espetáculo é um ato de amor entre cantor e público”. Só foi embora já o relógio estava a bater nas duas e meia da manhã, muito depois do fogo de artifício.

Atuar numa festa popular tem tudo de especial para um artista feito da massa do povo. “Não é igual a um concerto numa sala de espetáculos. Assim como o público vai com uma disposição diferente para um concerto sentado ou para um festival, nós também enquanto músicos.” Estuda a audiência para perceber o tipo de discurso que vai ter. “Um exemplo, atuar num lar da terceira idade não é o mesmo que cantar num jardim de infância. O alinhamento até pode ser o mesmo, mas a atitude é diferente.” O objetivo é que não muda: fazer com que as pessoas se divirtam. “E sintam que o espetáculo é delas, que pensei nelas.”

Nisso, podemos tirar-lhe o chapéu, Toy é exímio. Não é por acaso que no dia seguinte, segunda-feira, já ia descer mais a sul para um concerto em Semide. E depois outro e mais outro. Até ao Algarve. Férias? Só em dezembro e janeiro. Para quem é de Setúbal e cresceu com a praia aos pés, hoje já não consegue ir a banhos em Portugal. É inundado de fãs. E o verão é absorvido por trabalho. Costuma ir para as Caraíbas, desta vez vai a Zanzibar. E a Cuba, onde vai atuar em janeiro e aproveitar para matar dois coelhos de uma cajadada só.

Se dúvidas houvesse, os bastidores de Toy são a confirmação de um ícone da música popular, artista de massas, que faz por merecer os milhares e milhares de aplausos que arrecada em tantas festas por esse país fora. O verão vai ser longo.