Toxoplasmose: um perigo que espreita na gravidez

Vera Lopes, com o filho nos braços, passou por grande ansiedade durante a gravidez. Até ter o resultado do teste de avidez de anticorpos temeu a possibilidade de abortar (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Mafalda está à espera de bebé e deixou de mudar a areia da gata, mas Ana não se preocupou muito e continuou a limpar o caixote dos gatos, nas duas vezes em que esteve grávida. Vera soube que estava infetada durante a gestação e acredita que tenha sido com alimentos. Três (con)vivências com a infeção, um fantasma que pode assombrar uma das melhores fases da vida da mulher.

A gravidez “planeada e muito desejada” de Vera Lopes não demorou a ficar “ensombrada” com a possibilidade de ser interrompida. Após um ano a tentar engravidar, sem sucesso, em conjunto com o marido, Nuno Sequeira, decidiu agendar uma consulta médica para averiguar eventuais problemas de fertilidade. “Fiz análises, mas meteu-se o Natal, andava mais descontraída e não fui logo mostrar os resultados”, conta a técnica administrativa de 29 anos, que vive em Mem Martins. Em janeiro de 2021, soube que estava grávida, foi de imediato à médica e levou as ditas análises, que acusavam toxoplasmose.

Vera foi encaminhada para uma ginecologista-obstetra com especialidade nessa área, que a esclareceu. “Dependendo da altura em que fiquei infetada poderia ser necessário fazer um aborto, devido a uma possível malformação do feto”, recorda, não esquecendo o “grande sufoco” que experienciou desde a realização do teste de avidez de anticorpos, que indica o grau de infeção e se o contágio ocorreu antes ou depois da gravidez, até receber o resultado, cerca de três semanas depois. “Queríamos fazer uma surpresa à família. Estávamos muito felizes, mas fomos logo confrontados com a hipótese de abortar. Tentava não desanimar. Não foi fácil. Sofri imenso”, desabafa.

Causada pelo parasita protozoário Toxoplasma gondii, a toxoplasmose é uma “infeção assintomática em 80% dos casos”, observa Maria Manuel Sampaio, ginecologista-obstetra do Hospital CUF Porto, indicando que os humanos podem ficar infetados através da “ingestão de carne mal cozinhada, fruta, legumes ou água (não filtrada) contaminados ou do contacto com fezes de gato contaminadas”.

É na gestação que o perigo poderá estar à espreita. “A infeção congénita resulta da passagem do parasita através da placenta, após infeção materna recente”, explica Marta Rodrigues, assistente graduada de Ginecologia e Obstetrícia, que exerce funções no Hospital CUF Porto e no Hospital da Luz da Póvoa de Varzim. Segundo alguns estudos, acrescenta a médica, “cerca de 90% dos recém-nascidos com toxoplasmose congénita são assintomáticos ao nascimento, dois terços vão ter doença moderada com calcificações intracranianas e alterações oftalmológicas como doença da retina e um terço vai ter doença grave com hidrocefalia e coriorretinite macular. Outras manifestações possíveis são hidrocefalia (30-68%), icterícia (40-60%), plaquetas baixas (40%), anemia (20-50%), febre (40%), aumento de tamanho do fígado e baço (20-40%), linfadenopatia (30%), convulsões (20-40%) e microftalmia (20%)”.

As possibilidades são pouco animadoras e ainda que os dados sobre a taxa de infeção na grávida não imune sejam díspares, estima-se que a infeção ocorra entre uma por mil a dez mil gestações, a nível mundial. “O risco de transmissão depende da idade gestacional, sendo cerca de 15% no primeiro trimestre, 44% no segundo e 70% no terceiro”, revela Maria Manuel Sampaio, especificando que “quanto mais tarde ocorrer a infeção, na gravidez, mais provável é esta passar para o feto”, porém, “nas idades gestacionais mais precoces, as sequelas são maiores”. É, por isso, apologista que as gestantes saibam como podem ficar infetadas e as formas de evitarem o contágio pois, por vezes, há o exagero de “pensarem que podem ‘apanhar’ toxoplasmose em muitos mais sítios do que realmente é possível”.

Vera estava informada acerca dos riscos e fontes de contágio pelos dados que reteve quando “acompanhou de perto” as duas gravidezes da cunhada. “A mãe do Nuno tem uma horta biológica. Presumo que o contágio tivesse sido pelo consumo desses produtos, que são cultivados numa área descampada por onde passam imensos animais”, comenta a técnica administrativa, que sentiu um “enorme alívio” quando recebeu o resultado do teste da avidez, mas “não a 100%”, confessa. “Sabia que estava a ser acompanhada por bons profissionais, mas durante a gravidez estamos mais sensíveis e temos muitos receios. Só quando o Enzo nasceu e verifiquei que era perfeitinho é que fiquei descansada.”

Dos hábitos alimentares aos gatos em casa

Mafalda Gomes espera o nascimento da primeira filha, Matilde, em “meados de outubro”. Na primeira consulta de gravidez foi questionada sobre alguns hábitos alimentares e se tinha gatos em casa. “Assim que falei na Leia comentaram logo para não me preocupar que não teria que me desfazer da gata. Pensei que jamais faria uma coisa dessas”, refere a lisboeta de 29 anos, que é gestora de produtos numa companhia de seguros. Afirma que recebeu informações e alguns esclarecimentos sobre toxoplasmose por parte da enfermeira, que também indicou algumas medidas preventivas.

Mafalda Gomes espera o nascimento da primeira filha, Matilde. Já antes da gestação tinha rigorosos hábitos de higiene interiorizados, por isso a sua rotina pouco mudou
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

A toxoplasmose é um tema abordado nas consultas de preconceção e na primeira de gravidez de Marta Rodrigues. A ginecologista-obstetra realça que as grávidas “colocam perguntas acerca dos cuidados a terem e comportamentos a evitarem”, sendo “a questão dos animais de companhia uma preocupação frequente”. Para a especialista, “um gato doméstico tem uma associação muito fraca com a infeção aguda”, isto porque, “os felinos só excretam os parasitas infetantes durante três semanas da sua vida”. Por este motivo, recomenda que as gestantes “lavem bem as mãos após mexerem no gatinho e que deleguem a limpeza da caixa de dejetos do animal a outra pessoa”. Maria Manuel Sampaio corrobora, dizendo haver “imensos mitos” e que “se não tiveram contacto com o parasita até então, será um enorme azar o contacto pela primeira vez num gato que já coabite a casa”.

Na perspetiva de Mafalda, conselhos como “higiene constante e rigorosa, pessoal e de alguns alimentos, não fizeram grande diferença, porque já tinha hábitos interiorizados, devido à covid-19”. Sempre que mexe na gata tem o cuidado de “não levar as mãos à cara” e quem passou a mudar a areia do caixote da felina foi o marido, Rodrigo.

De acordo com o documento “Protocolos de Diagnóstico e Terapêutica em Infecciologia Perinatal”, da secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, “estudos belgas revelaram que a implementação de programas educacionais de ordem higiénica e dietética reduziram a taxa de seroconversão de 60% durante a gravidez”. E como em idade adulta a toxoplasmose é na maioria dos casos assintomática, o estudo serológico é “a única forma de detetar a infeção”, pelo que, “a prevenção secundária baseia-se no rastreio da população de grávidas com a finalidade de detetar uma seroconversão durante a gravidez e iniciar terapêutica o mais precocemente possível”, assinala o documento.

A pesquisa de anticorpos, de acordo com Maria Manuel Sampaio, “idealmente, deve ser feita na preconceção”, até para “alertar as mulheres não imunes a terem todos os cuidados necessários para prevenirem a infeção já no período em que estão a tentar engravidar”. Durante a gestação, a análise é feita a cada trimestre, se a grávida não for imune.

Os resultados dos exames indicavam sempre que Ana Cardoso, de Marinhais, Salvaterra de Magos, não era imune à toxoplasmose, nas duas vezes em que esteve grávida. Mesmo assim não delegou no marido, Ricardo, a tarefa de limpar diariamente a areia dos quatro gatos durante a gestação de Morgana, de três anos, e de Michael, de sete meses. Atualmente com 33 anos, Ana lembra quando, grávida da primogénita, as profissionais de saúde lhe perguntaram se tinha gatos. “Disse que tinha e disseram que se calhar era melhor dá-los”, conta a profissional da área do turismo, mostrando uma certa indignação com o que ouviu e confessando que preferiu rir e simplesmente afirmar que jamais abandonaria os felinos. “É exagero puro e desconhecimento, que só conduz ao abandono de animais. Apeteceu-me mandá-las estudar. Mais depressa ficava contaminada através de uma alface mal lavada”. Na segunda gravidez foi diferente: “Não me disseram nada. Já me conheciam.”

Ana considera-se uma pessoa informada sobre o tema e tanto na primeira como na segunda gravidez não teve “nenhum receio” em ser infetada. Limpou sempre os caixotes dos gatos sem luvas, mantendo porém “cuidados normais”, como “lavar as mãos com frequência” ou “não colocar as mãos no rosto enquanto mudava a areia”. Diz que “até sushi comia” e que “apenas evitava consumir saladas frias fora de casa”. “Fiz a vida normalmente e tudo correu bem. Os meus dois filhos são saudáveis”, destaca.

Ana Cardoso, com o marido e os filhos, confessa que nunca deu grande importância à toxoplasmose durante a gravidez e continuou a limpar os caixotes dos gatos
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Mafalda Gomes, que aguarda tranquilamente o nascimento de Matilde, considera que “não se deve fazer um bicho de sete cabeças das inúmeras possibilidades”, afinal, “todas as grávidas ouvem diversas histórias péssimas durante a gravidez e a toxoplasmose é uma delas”. Dez meses depois de ser mãe, Vera Lopes sente-se mais aliviada. “No primeiro mês de vida do Enzo ainda tive alguns receios, mas agora estou mesmo descansada. O rapaz é enorme, come e dorme bem, dá pouco trabalho, está saudável.”

Como prevenir

  • Evitar beber água não filtrada;
  • Lavar as mãos após mexer em terra;
  • Lavar bem a fruta com casca e os vegetais crus;
  • A grávida não imune à toxoplasmose deve consumir a carne bem cozinhada;
  • Bancadas da cozinha, facas, tábua e outros utensílios devem ser bem lavados após a preparação da carne;
  • Evitar tocar nas mucosas (ocular, bucal) durante o manuseio e a confeção dos alimentos;
  • A carne deve ser sempre bem cozinhada ou congelada durante 24 horas a pelo menos 12 ºC;
  • Evitar comer mariscos crus;
  • Não deve fazer a limpeza dos dejetos dos gatos.