Joel Neto

Toda a infância


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Como dizer agora do dia em que pude mostrar ao meu filho o jardim pelo qual chorará na faculdade? Como explicar a emoção de serpentear com ele por entre as árvores que trepará sem que estejamos a ver, assustando-nos de morte – de subir com ele os degraus em que rachará a cabeça, de lhe entregar a posse do quarto onde pendurará posters de jogadores, de instalá-lo na casa para onde confluirão as suas memórias de infância, cada uma delas, até que tudo se confunda numa só entidade, os cheiros de uma alcatra numa noite de Inverno, o sol entrando pela janela num sábado de manhã, os cães correndo ao encontro dele após a escola, um beijo piroso trocado pelos pais?

Tenho tido a sorte de viver uma vida emocionante, mas poucas vezes tão emocionante como nesse momento em que pela primeira vez atravessei com o Artur o pequeno mundo que, no fundo, plantei para ele. Foi há dias, aqui, na velha casa dos Dois Caminhos, onde José Guilherme construiu o seu sonho e agora nós construímos o nosso. Eu tinha pedido ao Chico para aparar a relva, e a chuva caiu durante toda a manhã, determinada a ajudar. Quando abri o portão, com a Marta por uma mão e o ovo suspenso na outra, vogava um cheiro a jardim após a monção, como aquele que inspirou Hermès. As camélias retorciam as folhas carnudas, numa saturação feérica. As cássias abriam os braços, tão amarelas como nunca. Algures, adejava a flor que, um dia, será a primeira cujo nome ele me perguntará.

Dali a pouco veio a Colette, aos saltos: “Quero ver! Quero ver!”. Atrás dela, o Gauguin respirou fundo: “Mais um para eu criar?”. Depois chegou o pai da Marta, e a seguir os meus próprios pais. Contámos melhor da infecção, do misto de competência e gentileza de quantos nos acompanharam no hospital. Pusemos um ar blasée: um pequeno susto, que nos ajudará a pôr as coisas em perspectiva e ainda nos permitiu aprender as primeiras logísticas com acompanhamento privilegiado. Mas o que queríamos mesmo era escrever um daqueles louvores no jornal, “parabéns a toda a equipa dos serviços de Obstetrícia e Neonatologia que com extraordinário” isto e aquilo – ao menos um post de Facebook, como aqueles que, exagerando a nossa própria importância, publicamos no dia a seguir ao aniversário, “na impossibilidade de agradecer a todos individualmente” etecetera e tal.

E pôr os nomes delas, claro. Médicas, enfermeiras, auxiliares. A Joana, a Patrícia, a Rita, a Luísa, a Adriana, a Helena, a outra Luísa. A Lisandra, a Cathy, as duas Saras, a Paula, a Bárbara, a Lívia, a Mafalda, a Angelina. A Irene, a Lúcia, a Fátima e todas as restantes, recitadas uma a uma, como numa melodia circular, raveliana, e também como num texto confuso e grato que não sabe bem para onde vai (como este). Olha, vai para aqui: a certa altura os cães foram deitar-se no sofá pequeno, a olhar o menino. O meu pai conferiu o PVC das janelas novas. Fez um comentário sobre a pintura dos tectos. “O teu avô, se visse como esta casa está, não havia de gostar, havia de adorar”, proclamou. A Marta sorriu-me, por entre as vozes e as excitações. Enviou-me um beijo piroso. E, sentindo pena de não poder guardar aquele momento numa caixinha, eu achei que estava tudo, enfim, no seu devido lugar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)