Rui Cardoso Martins

Terrível caso da Colômbia


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Os “falsos positivos”. O sentido das palavras nos diferentes países pode deixar-nos perplexos. Em Portugal, um falso positivo é aquele que foi declarado, por engano, infectado com um vírus. Na Colômbia, de onde vos escrevo uma crónica de tribunal viajante, um “falso positivo” é vítima de um dos processos judiciais mais dilacerantes da história da Humanidade. Guardei recortes dos jornais “El Espectador” e “El Tiempo”. Resumem o que se tem passado em directo na televisão.

Aconteceu entre 2007 e 2008 e provocou milhares de mortos. Em Bogotá, diante de mães, irmãs, viúvas, um homem disse na sessão Jurisdição Especial para a Paz (JEP): “Assassinei o seu ente querido, que era inocente, e quero pedir-lhe perdão”. Este admitia o que fez com as próprias mãos. Os superiores hierárquicos, não. O general Paulino Coronado: “Aceito a minha responsabilidade por excesso de confiança ao ter assumido como certo o que era dito pelos meus subalternos, de que as operações militares eram legais, quando não o foram. Aceito a minha responsabilidade por não ter investigado para castigar estas falsas operações”.

Os “falsos positivos” eram jovens e adultos camponeses das aldeias que eram apanhados ao acaso nas estradas e sumariamente executados. Ou – na face mais demoníaca do caso – enganados com falsas promessas de trabalho, levados para outro local e mortos a tiro simulando ter sido em combate. O nível da baixeza é impressionante: matavam-nos a sangue-frio e vestiam-nos como guerrilheiros para acumularem quotas pré-estabelecidas de “terroristas” mortos! O escândalo rebentou quando as famílias se revoltaram – o meu marido, o meu filho, não eram guerrilheiros – e quando a imprensa provou que alguns mortos tinham as botas calçadas ao contrário. Nem as botas calçavam direitas aos inocentes. Rapazes de mãos calejadas na agricultura. E quando o pai de um militar honesto e heróico, Raúl Carvajal, colocou o corpo do filho na carrinha e foi apresentar queixa: mataram o meu filho porque ele se recusou a disparar contra inocentes.

“Faltam os máximos responsáveis”; “Aqui faltou verdade”: cartazes que as mulheres levantaram esta semana no tribunal.

O civil Alexánder Carretero confessou diante das mães, das irmãs e das viúvas: “Declaro-me responsável por ter traído pessoas de Soacha, de Gamarra, Aguachica e Bucaramanga para as entregar ao Exército Nacional para que as assassinassem. Sou responsável por me ter oferecido, sabendo o que se ia passar com os vossos seres queridos, e recebendo-os em minha casa, em Ocaña. E sou responsável porque convenci e enganei pessoas para as entregar ao Exército”. Havia uma quadrilha dentro das unidades militares de Ocaña, no Norte de Santander, Nordeste do país, a Leste de Medellín. Dinheiro, benesses, viagens, elogios na folha de serviço. As pressões eram por resultados em falsos guerrilheiros mortos.

Na Colômbia continuam os massacres de líderes dos direitos humanos e defensores do ambiente. É um exercício nervoso, ler os jornais até dói. Pessoas encontradas nas lixeiras, desmembradas em sacos. Muitas notícias destas. Passaram os anos de Pablo Escobar, o capo dos capos do narcotráfico, do poder e dos assassinatos à sua ordem. Mas ainda agora um ex-sicário de Escobar, que esteve preso 25 anos (300 assassinatos às suas mãos, cerca de três mil relacionados, números redondos), ganha a vida como youtuber, explica nos cemitérios, para as câmaras, como matou esta pessoa importante. Esperam-se agora as confissões na JEP das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e do M19, que há anos escolheram a paz e reconciliação. O problema é que muitos dos antigos guerrilheiros criaram grupos de dissidência armada e recomeçaram os assassinatos, vinganças, sequestros e narcotráfico.

Escrevo esta crónica na selva de Tayrona, parque nacional, ontem vi dois caimões no rio, parados como troncos. Mas trago das altitudes andinas de Bogotá os elogios de colombianos à paz política e social de Portugal. Por assim dizer, aos muito menos sanguinários crime e política portugueses.

Não será sempre assim, mas daqui vê-se a diferença.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)