Temos de combinar alguma coisa… e nada

Uma coisa é certa, deixar o encontro marcado na hora - ao invés de deixar só a intenção - aumenta a probabilidade de ele vir a acontecer

A carapuça serve a todos, não há quem nunca tenha sugerido a marcação de algo que nunca chega a acontecer. Porque será que é assim? É uma questão cultural? É a falta de tempo? É culpa da rotina?

Quem nunca disse “temos de combinar alguma coisa” – entenda-se um jantar, um almoço, um café, dois dedos de conversa – que nunca chegou a acontecer que atire a primeira pedra. O dicionário português é um mar embrulhado em infinitas expressões e o “havemos de combinar” é um chavão tão entranhado quanto o “tudo bem?” em jeito de saudação – que, bem sabemos, não tem a expectativa de que a pessoa pare a contar-nos a sua vida. Afinal, porque é que, na esmagadora maioria das vezes, não chegamos a vias de facto?

As teses sobre o lugar-comum a que todos recorremos, sobre esta bengala linguística, são muitas. Comecemos pelo princípio. “Quando nos relacionamos seguimos regras de interação. E esta expressão é, basicamente, um ritual, uma saudação, uma forma de alimentarmos as relações, de mostrarmos que queremos mantê-las. Porque, à partida, já sabemos que vamos ter dificuldades em cumprir isso”, explica a socióloga Emília Araújo, que faz investigação sobre sociologia do tempo. Na maior parte das vezes o “temos de combinar alguma coisa” nunca chega a acontecer porque “as pessoas não conseguem ter tempo para acomodar tudo”. Ou seja, queremos de facto encontrar-nos, mas a oportunidade nunca se cria e adia-se. Já lá iremos.

E o facto de nunca chegarmos a combinar efetivamente alguma coisa é também muito influenciado pelas novas tecnologias. Nisso, o filme Denise Calls Up, dos anos 1990, é o retrato perfeito. Conta a história de sete amigos de Nova Iorque que acabam por nunca se conseguirem encontrar pessoalmente e por manterem o contacto apenas via telefone. “Há toda uma mudança cultural que potenciou outro tipo de contactos e é sempre mais fácil e cómodo pegar no telefone do que propriamente ter que organizar um jantar, agilizar uma data conveniente a todos, vestir, sair, deslocar. É um modo de estar das sociedades contemporâneas, alimentado pela revolução digital”, aponta Emília Araújo.

É certo que os diversos recursos que temos para contactar com o mundo não substituem a presença, “mas acabam por trazer essa sensação de estar com os outros não estando, o comodismo, o conforto que é não ter que planear”.

Vidas aceleradas, ritmos frenéticos, refúgio em casa

Voltemos ao adiamento e à crónica falta de tempo que pauta as nossas vidas. Os ritmos acelerados que nos sugam toda a atenção e as rotinas enraizadas também têm, e muito, culpas no cartório. De acordo com Teresa Freire, professora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, que investiga a forma como arrumamos o nosso quotidiano e encaixamos o lazer, “hoje, as pessoas têm muitas coisas para gerir no seu dia a dia, um ritmo de vida muito intenso”. Mais, não só temos o tempo muito ocupado como temos vidas cada vez mais imprevisíveis, atividades profissionais sem horários definidos, trabalho aos fins de semana, a somar à vida familiar, aos filhos. E é difícil prever e planear estes encontros quando vivemos com tanta imprevisibilidade. “Quando encontramos alguém, há uma sensação de querer estar com essa pessoa, imediatamente dizemos que temos que nos encontrar. Mas depois entram todas as rotinas e tarefas que fazem parte da nossa vida e o encontro fica em lista de espera.”

A docente acredita que o dizemos quase sempre com intenção, “mesmo estando conscientes de que isso não vai acontecer”. É um encontro que morre na praia logo à partida. “Se pensarmos bem não o dizemos a pessoas com quem temos pouco contacto ou quando há maior distância na relação.” Mas a falta de investimento que fazemos no lazer é, sustenta, uma questão cultural. “Há culturas em que as pessoas têm estes momentos de descontração na sua agenda diária. Depois do trabalho, no fim do dia, vão sempre tomar um café com amigos e este tempo para as pessoas se encontrarem já existe, naturalmente, na rotina.” Algo que não acontece em Portugal.

“Não temos esse hábito, o de incluir o lazer na nossa agenda diária. Somos pouco sociáveis no sentido de partilhar momentos de descontração. No tempo que temos entre o fim do trabalho e o jantar, somos muito mais de interior, de nos refugiarmos em casa, mesmo tendo um clima fenomenal. Não é uma questão de clima, é de hábitos. E é o espaço exterior que fomenta o encontro.” Teresa Freire alerta, contudo, que esta é uma questão que não é só pessoal, é estrutural. O contexto tem que o proporcionar, não só tem que haver um maior equilíbrio entre o tempo de trabalho e o de lazer, mas também têm que ser criados espaços diferentes nas cidades que potenciem estes momentos de convívio. “Os espaços comuns têm um papel bastante ativador desta regularidade. As cidades estão a tentar investir nesta evolução. Mas ainda há muito caminho pela frente”, comenta.

Ir para lá da rotina dá trabalho

A verdade é que ir para além da rotina também dá trabalho. Segundo Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde, “agimos na maior parte das vezes sem pensar muito”. O psicólogo também defende a tese de que “queremos genuinamente combinar alguma coisa, mas temos vidas exigentes e dizemos isto mais para manifestar uma vontade”. Até porque tudo o que representa ir além daquilo que habitualmente fazemos, das pessoas com quem habitualmente estamos, diz, “implica maior gasto de energia, maior adaptação, para encaixar na rotina do nosso dia a dia”. E as pessoas “resistem a isso”. “Até podemos sugerir um jantar, motivados pela satisfação daquele encontro imediato, mas depois entramos na rotina e nunca mais nos lembramos. Acredito que não somos hipócritas na maior parte das vezes.”

Embora também possamos ver o outro lado da moeda: “Podemos usar a expressão para sairmos de uma situação desconfortável, para adiarmos uma circunstância sem sermos desagradáveis. Assim, damos conta de uma vontade que no fundo temos pouco interesse em concretizar”. Mesmo assim, grosso modo, a ideia de combinar alguma coisa alinha-se com a intenção de “manter uma expectativa de futuro naquela relação”. Só que é muito difícil introduzir uma mudança na rotina, custa mudar o chip, mesmo que, na teoria, se saiba que isso nos faz bem e que o encontro vai ser compensatório. “Na prática, é muito mais fácil fazer as coisas sempre da mesma maneira, porque já está tudo automatizado e isso dá-nos uma sensação de segurança, a sensação de que não temos que tomar decisões. Se tenho que tomar uma decisão é porque é algo que não acontece todos os dias.” É como ir ao ginásio. Quem tem o hábito entranhado na rotina fá-lo sem pensar muito, porque já faz parte do dia a dia, mas quem não o tem “encontra desculpas”.

Uma coisa é certa, deixar o encontro marcado na hora – ao invés de deixar só a intenção – aumenta a probabilidade de ele vir a acontecer. Mesmo assim, até nesses casos temos a tentação de desmarcar. “Às vezes chega o dia e estou cansado, não estou bem disposto e é mais fácil decidir ‘não me apetece’ e enviar simplesmente uma mensagem. O engraçado é que sei que se for me vai fazer bem e vai valer a pena. Mas se não for, acabo por me convencer que foi melhor ficar em casa, porque assim até vi um filme e descansei.”

Tempo elástico e mais individualismo

O tempo, sempre o tempo no centro da questão. E talvez não saibamos, mas temos formas culturais de nos relacionarmos com o tempo. “Em Portugal e nas sociedades sul-europeias, latino-americanas, temos a expressão ‘há de’. Hei de fazer um jantar, havemos de tomar um café. Não dizemos ‘na sexta-feira vamos encontrar-nos àquela hora’. É o ‘havemos de’. Há uma tendência para adiarmos o que temos para fazer”, explica Emília Araújo, que logo acrescenta: “A nossa sociedade é caracterizada por uma certa desvalorização do tempo livre, que é para estar com o outro, para conversar. Se formos às sociedades nórdicas, os próprios jeitos de linguagem são diferentes. Aqui, dizemos ‘até logo’ quando todos sabemos que esse ‘logo’ não existe. Será talvez daqui a uns meses, não será logo à tarde. Mas, num país nórdico, logo é logo.” A socióloga sublinha que temos uma forma de nos relacionarmos com o tempo muito mais dilatada, de o tornar mais elástico. Basta ver que a reunião que começa às 8.30 horas raramente começa à hora certa.

Além disso, o ato de marcar um compromisso e “de o entender como uma questão de honra valorizado socialmente perdeu-se na sociedade contemporânea, por isso, as pessoas também desmarcam muito facilmente”. A isso não é alheio o facto de vivermos numa sociedade cada vez mais individualista, mais fechada, com mais dificuldade em comunicar, lá está, muito graças às novas tecnologias. “Mas viver sozinhos é o contrário de uma sociedade. É muito difícil construir e manter relações sem presença. É certo que o virtual e todas as ferramentas que existem são extremamente úteis, mas tem que pressupor sempre o contacto físico, a interação, a conversa presencial. Quando isso não existe, a confiança é completamente diferente.”

Junta-se o individualismo à falta de tempo, à imprevisibilidade das vidas, às rotinas enraizadas e difíceis de contrariar, à tendência para adiar, à facilidade das tecnologias, e está criado o caldeirão perfeito para ficarmos presos no mundo das probabilidades. Havemos de combinar alguma coisa, havemos.