Sorria, está a trabalhar

Aos poucos, as empresas estão a alterar estratégias para captarem colaboradores, manterem os que consideram essenciais e atraírem outros, se possível mais qualificados, mais motivados e, sobretudo, mais felizes. Porque a felicidade é a chave do novo conceito de trabalho a nível global.

É um mundo dentro de um outro mundo. Um mundo diferente, onde quem entra não encontra os tradicionais modelos de trabalho, as habituais estratégias de metas, os usuais métodos laborais. Até a disposição dos espaços é inédita. Na Lionesa Business Hub, em Leça do Balio (Matosinhos), a dois passos do Porto, o ambiente que se respira é outro. O oxigénio chama-se espírito de comunidade naquele polo de criatividade que junta sete mil colaboradores de 47 nacionalidades.

“O bem-estar de todos é um compromisso.” A sentença, qual mote constante do sentimento que nunca é dado a permitir desaparecer na empresa, é proferida por António Pinto, o diretor de marketing. Ali, nada foi deixado ao acaso. “Estudámos todos os processos de felicidade e melhores práticas a nível internacional”, conta. E dessa análise cuidada saíram estratégias que visam colocar em primeiro lugar a garantia de que todos os que ali trabalham se sentem felizes. Como boa parte deles são jovens saídos há pouco das universidades, uma das ideias passou por criar um ambiente que não fugisse do contexto universitário, para que o choque da entrada no competitivo mercado de emprego fosse sentido o menos possível.

“Essa transição pode ser complicada e, nomeadamente, conduzir a níveis elevados de stresse e ansiedade”, lembra António Pinto. Os jovens que na Lionsesa encontram a primeira experiência ativa de trabalho têm à disposição espaços colegiais, uma espécie de ecossistema comunitário que os procura, simultaneamente, proteger e motivar.

“Utilizámos espaços comuns como prioridade. Há uma cozinha comum que serve também para reuniões, uma sala social de convívio, um reading corner que permite concentração total, casulos para descansar, uma minibiblioteca com livros provenientes da Livraria Lello, área de jogos, um chef que de duas em duas semanas se apresenta em formato showcooking, aulas de surf, golfe e ioga, até uma rede social interna que permite interação entre os membros da Lionesa. Enfim, tudo o que é necessário para que os jovens se sintam bem e plenamente integrados”, detalha. Afinal, lembra, António Pinto, “os índices de felicidade disparam 32% se o talento for explorado no processo de conceptualização.”E os escritórios “já não são mais apenas um espaço de produção, mas de colaboração e convívio que cultivam as relações interpessoais.”

Com a mobilidade e o teletrabalho em cima da mesa em tons que a pandemia veio carregar como nunca dantes, empregadores e trabalhadores lidam com um cenário novo em que o segredo assenta na felicidade, nirvana que guiará os colaboradores ao pleno num panorama laboral em permanente mutação e onde o segredo assentará – e já se vai assentando – em originais jogadas de captação e retenção de talentos, de oferta de bem-estar, de estímulo à produtividade constante.

Tal como na Lionesa Business Hub, também a Quilaban, uma das mais antigas empresas portuguesas a atuar no ramo da saúde, que se destaca no comércio de soluções de diagnóstico como a sequenciação genética, tem no bem-estar dos trabalhadores a filosofia maior. “Quem aqui trabalha tem que estar envolvido com a nossa missão e identificado com os nossos princípios. Nada melhor do que cuidarmos deles em primeira linha para tal se concretizar. A solução é simples: sermos muito humanos e estarmos próximos das pessoas”, aponta Sérgio Luciano, CEO da Quilaban.

Sérgio Luciano, CEO da Quilaban (Paulo Spranger / Global Imagens)

Com sede na Quinta da Beloura, em Sintra, conta com 120 colaboradores presenciais, num total de 260 que se espalham por pontos do globo tão diversos que vão da Europa a África. “Promovemos três dimensões que consideramos fundamentais: a identidade de quem trabalha connosco, a preocupação em divulgar o nosso modelo de impacto funcional – perceber como a atuação de cada um vai impactar no propósito da empresa – e construir uma visão integrada que promova a interação entre todos.” Com o próprio CEO incluído. Pelo menos três vezes por ano, Sérgio Luciano convida os trabalhadores para um encontro com ele onde podem dizer tudo o que pretenderem. Sem amarras, preconceitos ou inibições. “Discutimos desde temas estratégicos a políticas de investimento. Deixo-os à vontade para colocarem no ar o que bem entenderem. Até porque não há questões tontas, a resposta é que pode ser tonta, mas esse risco é só meu.”

No dia a dia, quem trabalha na Quilaban é incentivado a estratégias diferentes que permitem dinâmicas também elas diferentes. “Convidamos os colegas que têm conflitos de trabalho, normais em todo lado, a irem ter uns com os outros e a passarem o dia juntos. Temos grupos de Whatsapp que funcionam como rede social e onde é partilhado tudo o que é feito pelas equipas para que todos saibam o que fazem, estejam onde estiverem. E contamos com vários programas que integrem também as famílias dos trabalhadores”, descreve Sérgio Luciano.

A ligação à natureza e o compromisso com a sustentabilidade são também lemas e na Quilaban há constantes programas de educação para a saúde, assim como exposições e incentivo a práticas culturais. Plantam-se árvores em conjunto, visitam-se exposições, promovem-se ações de apoio que beneficiam instituições de auxílio social.
“Porque o trabalho é uma extensão do espaço familiar tem que existir sempre a noção de consciência abrangente a nível social”, define o responsável. Além disso, práticas como a separação de resíduos, a igualdade de género e o negócio justo e ético “nunca são esquecidas”. Para que a motivação esteja sempre em alta e o bem comum no topo da pirâmide de importância.

Realização pessoal, o novo paradigma

Um estudo recente publicado pela Harvard Business Review aponta que a nível global os colaboradores que se sintam “esgotados e infelizes” têm 18% menos produtividade, geram 16% menos lucro, aumentam em 49% os acidentes no trabalho e contribuem pela negativa com mais 37% de absentismo.

Atenção especial foi dada ao comportamento dos millenials, a última geração a entrar no mercado de trabalho, grande parte com estudos superiores e níveis de conhecimento acima da média. Um inquérito que ouviu as suas aspirações concluiu que 90,6% pretende oportunidades de desenvolvimento, 75% valoriza o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, 59,4% tem mais em conta o salário e benefícios oferecidos pelo empregador que o acolhe e 53,1% opta por patrões que priorizem conceitos como os valores e a cultura empresarial.

Um outro artigo publicado pela prestigiada instituição universitária norte-americana, assinado por Susan Peppercorn, lembra que cada pessoa passa, em média, 90 mil horas da sua vida no seu posto de trabalho. E uma terceira investigação sobre o assunto da mesma Harvard Business Review, que desde a multiplicação do teletrabalho se tem debruçado deveras sobre questões ligadas à felicidade em contexto laboral, este desenvolvido por Emma Seppälä e Nicole K. McNichols, assinala que os líderes mais eficazes “são orientados por valores, transparentes, compassivos, humanos e reconhecem os funcionários como indivíduos únicos”. Resultado: “Os seus funcionários também têm um desempenho melhor”.
Nuno Cerejeira Namora, advogado especialista na área do Direito do Trabalho, viu o panorama com que estava habituado a lidar alterar-se significativamente desde o início da pandemia, que nos últimos dois anos e meio consigo carregou mudanças significativas no conceito do trabalho, quer na forma como o encaramos, quer na forma como com ele lidamos em diferentes contextos.

“A pandemia trouxe algumas alterações, sobretudo novos modelos como o teletrabalho e uma maior flexibilidade. E sublinhou a realização pessoal, trazendo à tona o conceito de felicidade no trabalho, cada vez mais assumido como prioridade nas empresas para combater o novo fenómeno da chamada ‘great resignation’”, assinala o especialista.
Tal fenómeno teve origem em 2021, nos Estados Unidos da América, e diz respeito a um movimento em que os trabalhadores, em massa, fazem cessar os seus contratos por iniciativa própria e procuram novos projetos profissionais. “O sentimento de desânimo e desmotivação foi o elemento catalisador para esta onda, como ocorreu, por exemplo, na Apple, quando esta impôs aos trabalhadores, quando estes regressaram do teletrabalho, um modelo de trabalho fixo”, descreve Nuno Cerejeira Namora.

Entre os principais motivos encontram-se justificações como o impacto do trabalho na vida pessoal, a desconsideração, a instabilidade ou a incerteza quanto à evolução das carreiras. Somam-se a estes fatores a falta de flexibilidade, o excesso de horas de trabalho ou o mau ambiente laboral. Sinal disso mesmo foi deixado claro numa pesquisa elaborada pela Microsoft, que concluiu que cerca de 40% da força de trabalho do mundo inteiro estava a considerar demitir-se no ano de 2021.

Felicidade constante, o grande segredo

Por cá, os efeitos práticos da “great resignation” ainda são incipientes. Mas já há quem recorra à rescisão de contrato por insatisfação para procurar outra motivação profissional e pessoal. “Hoje, o mercado é mais global, o que tem permitido a inúmeras profissões, nomeadamente liberais, obterem emprego onde quiserem e com muito mais frequência. Esta tendência fez-se sentir também em Portugal, refletindo-se num mercado de recrutamento extremamente dinâmico e competitivo”, indica o especialista.

O recurso de empresas a estratégias que visam implementar o conceito de felicidade no trabalho não é, por isso, surpreendente. E tende a multiplicar-se com a naturalidade possível nas mais diversas áreas. “A figura dos ‘happiness managers’, que garantem o bem-estar das equipas e o acompanhamento permanente das necessidades e o estado dos seus membros, além de procurarem em permanência os melhores programas que contribuam para a satisfação dos colaboradores, vai sendo cada vez mais frequente”, garante Nuno Cerejeira Namora.

Na Critical Manufacturing não há um “hapiness manager” propriamente instituído. Mas existem estratégias que têm o trabalhador e a sua felicidade como objetivos centrais. Esta empresa, sediada na Maia e especialista em gestão de produção, automoção e análise de dados para indústrias tecnológicas avançadas, promove com regularidade ações focadas na atenção dada aos 300 trabalhadores que a compõe. “Começa logo pela atenção dada no processo de recrutamento, onde se procura perceber as expectativas dos candidatos e o seu enquadramento com o mindset da empresa”, conta Liliana Macedo, People Operations Manager da Critical Manufacturing.

Liliana Macedo, People Operations Manager da Critical Manufacturing

“Procuramos que quem connosco trabalha seja um ‘buddy’, um companheiro, um facilitador que tenha a capacidade de desenvolver o seu trabalho a 100% e se sinta acompanhado em permanência. Não queremos que fique connosco por ficar, mas porque se sente feliz e perceba que está a usufruir de uma experiência diferente”, diz Liliana Macedo.

Para lá de questões profissionais, os funcionários têm direito a certas regalias não muito frequentes noutros contextos laborais, desde massagens a apoio psicossocial, até assistência financeira disponível 24 horas por dia e ajuda familiar. “E temos uma equipa que lhes proporciona ‘happy days’, com surpresas como almoços, festas temáticas e palestras. No fundo, tentamos sempre surpreender os nossos colaboradores, respeitando a individualidade de cada um.”

Na Critical Manufacturing, há atividades regulares que juntam os funcionários

A Herdade do Rocim, com ação no Alentejo e na região de Leiria e administrada e gerida pela enóloga Catarina Vieira, é outro dos exemplos onde a pessoa vem antes do trabalhador, para que ambos se fundam num só, em que a felicidade laboral é uma constante. “Não nos cingimos apenas à questão da produção. Os recursos humanos são extremamente importantes, daí possuirmos um manual de acolhimento que é progressivamente melhorado”, conta. Desse manual constam ações como o apoio constante aos funcionários na área da saúde, a promoção do conhecimento, o estímulo à criatividade e “um quadro favorável de condições e de motivação aos trabalhadores”.

Catarina Vieira, administradora da Herdade do Rocim (Nuno Brites / Global Imagens)

As famílias também não foram esquecidas, com bolsas de estudo para os filhos dos funcionários que podem ir até aos 750 euros por ano, acesso a bens culturais, como a compra de livros com descontos de 50% ou consultas médicas comparticipadas. “Há também parcerias com farmácias, ginásios, clínicas dentárias, óticas, etc”, assinala Catarina Vieira.

No fundo, ações que permitam “motivar e reter” os trabalhadores. Com a felicidade destes em primeiro lugar. Sempre em primeiro lugar, como que a antecipar o futuro do mundo do trabalho.