Sónia Tavares: “Tenho mau feitio, mas tenho uma série de desculpas”

Não quer ser a punk, não quer ser cara de causas, não quer que lhe digam o que fazer, retrai-se quando tem de pensar muito antes de falar. Não tem problemas com a exposição. “Não sou a Madonna, ninguém acampa à minha porta, não sou perseguida na rua”, diz. Continua lamechas depois de ter sido mãe. Não é uma mulher discreta, arrasta folhas atrás de si. Não tem jeito para a cozinha, não entende o comando da televisão, é uma excelente jardineira. E, agora, ao 10.º álbum, um tom mais cru, mais duro, mais áspero. Uma conversa com a voz dos The Gift.

A menina do papá, a adolescente tímida, a miúda que não foi flautista. A banda que nasce num sótão de Alcobaça, o nome, os ensaios, aquele sumo de limão que sabia mal. O curso de Antropologia por terminar. A explosão na música. As crises existenciais. As críticas que não lê, as notícias que não vê. A diversão no Instagram, os videoclipes que grava num quarto em casa. As conversas com Brian Eno. O pijama mental da pandemia e a descrença na Humanidade. E aquela imagem de ajeitar os colarinhos dos colegas num elevador em Nova Iorque. Sónia Tavares anda na estrada com “Coral”, disco com vida própria, com os Pauliteiros de Miranda, os Gaiteiros de Lisboa, um coro clássico. Concertos a 1 de dezembro na Casa da Música, no Porto. Dia 2, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Aos 45 anos, é uma mulher resolvida?
Nalguns assuntos sou, em todos não. Feliz de quem aos 45 é resolvido com tudo. Eu não. Mas não é por isso que não hei de querer viver mais 45, mesmo na imprevisibilidade de não os resolver na mesma.

Admite que tem mau feitio, que é difícil de aturar, que não gosta de dar o braço a torcer. Demasiado politicamente incorreta? Ou demasiado intempestiva?
Nunca digo ou faço nada com a intenção de ser a punk. Não é por aí. As coisas que faço, digo, as decisões da minha vida, tudo vai sendo genuíno. Tenho mau feitio, mas tenho uma série de desculpas para apresentar nesse sentido a meu favor e em tribunal ganharia com certeza.

Há aquela imagem de uma mulher poderosa.
Acho que é o facto de não ser muito discreta. Toda a minha vida fui mal interpretada quando digo alguma coisa e levanto a voz. Lembro-me de amigas me dizerem não fales assim com o senhor. O quê? Como? Só pus a voz um pouco mais alta, talvez o meu tom não seja fácil de decifrar, mas não é nada do que vocês estão a pensar. Tentei uma vez na vida ser discreta, mas não consigo. Acredito que seja por fragilidade. Nem sempre, mas às vezes, quando há traços muito vincados na personalidade, acho que podem ser fragilidades. Não sou psicanalista, mas, de vez em quando, ponho-me dentro da minha cabeça, e percebo que é por aí. Percebo que sempre fui uma rapariga tímida, ao contrário daquilo que possa parecer, porque até eu me espanto como é que eu, em tímida, consigo arrastar folhas atrás de mim, mas começo a perceber que foi uma forma de estar na vida desde miúda. Acho que foi adaptação. Se calhar não, se calhar estou a dizer um monte de disparates, se calhar isto já vem comigo e sou assim, tenho a mania que sou tímida e não sou nada. Ai sou tímida, sou introvertida, e depois falo que me desunho. Se calhar, tenho algumas personalidades que andam aqui em conflito há algum tempo.

Crises existenciais?
Sempre. Com certeza. Desde criança. Uma pessoa já tinha idade para pensar e já tinha crises existenciais. Julgo que estas características, com a idade, começam a notar-se mais.

A idade não dá serenidade, paciência, tolerância?
Dá. Depende. Sim, além de trazer serenidade traz uma visão das coisas um bocado mais realista. Quando se é muito jovem, tem-se uma sensação inconsequente, agora não. Agora lido melhor com as coisas, tenho uma visão muito mais realista, então, se calhar, sofro um bocadinho mais.

E aquela visão romântica de ser capaz de mudar o Mundo que vem da juventude?
Eu? Mudar o Mundo? Nem sei se um batalhão de mim, como diz a Björk, conseguiria mudar qualquer coisa. Na minha frágil existência, vou tentando mudar um bocadinho, não o Mundo, mas coisas que me estão mais próximas. Na incapacidade de mudar o Mundo, é mais fácil tomarmos conta daquilo que nos está mais próximo e, se calhar, consequentemente, não sei como, se refletirá num Mundo melhor. Isto é um bocadinho ideologia de Miss Universo, mas é por aí.

O que a preocupa atualmente?
Preocupa-me a velhice, não me preocupa ser velha, não é isso. Esta situação dos idosos anda a dar cabo da minha cabeça e depois tenho a minha mãe neste impasse que é a vida. Mesmo tentando abstrair-me de tudo, não consigo não me projetar ali. É muito complicada a vida de um idoso. Não sei como é que vai ser quando lá chegar, não sei se quero lá chegar – isto é a coisa mais injusta de se dizer da vida, mas vendo o que vejo, lá está, é um impasse que, às vezes, dá vontade de dar o passo à frente e não há como.

Não são as rugas, não é a beleza…
Nada disso, é mesmo a condição de vida, é mesmo sentir que um dia, se calhar, vou estar sozinha e que, se calhar, não vou ter ninguém para cuidar de mim, como tanta gente não tem e anda aí desgraçada, de quem ninguém se lembra e está para aí jogada numa instituição qualquer, sabe-se lá em que condições. Isso faz-me imensa confusão.

Há alguma coisa que a irrite particularmente?
Há alguma coisa que não me irrite particularmente? É melhor perguntarmos assim. Às vezes, consigo estar num ponto de ebulição que há poucas coisas que não me irritam na vida. Às vezes, não consigo controlar a minha irritabilidade.

Segue os seus instintos e respeita os seus impulsos? É isso?
Às vezes, respeito o impulso, vou com o impulso e depois é tarde de mais. É o meu problema, nunca penso muito nas situações. A intuição, apesar de tudo, é o que me movimenta mais e não faço de propósito. É o impulso do instinto (que coisa horrível, merecia um Nobel com esta expressão).

Arrepende-se mais do que diz ou daquilo que não diz?
Não me arrependo daquilo que digo, é da maneira como digo. Já dei por mim a não dizer coisas porque sei que vou ser mal-entendida e isso, sim, irrita-me profundamente. Ter de ficar calada porque aquilo que vou dizer ainda vai provocar um turbilhão maior e não vou ser bem entendida. Ainda assim, são raras as vezes em que me consigo calar. Já dei por mim a fazer uma coisa que não costumo fazer que é pensar antes de dizer alguma coisa. Se vou pensar muito, retraio-me sempre, então é melhor não pensar.

Ser figura pública é um peso que se carrega nos ombros. Esse pensar antes de dizer? A exposição dá um papel de intervenção?
Dá-me ideia que o público, no geral, acha que por X ou Y serem figuras públicas têm o dever de anunciar, alertar. Não têm. Se não quiserem não têm e não têm de ser condenados por isso. Conheço muito músico, muito cantor, tantos que não utilizam o facto de serem figuras públicas, e de chegarem a milhares ou milhões, para promoverem a paz no Mundo. É um bocado à consciência de cada um. Quem sou eu para estar a dizer devias, portanto, também não gosto que me exijam a mim.

Estas redes sociais vieram dar cabo dos circuitos ainda mais do que aquilo que já estavam a carburar há algum tempo. As pessoas têm de se adaptar e eu tento, as pessoas pedem-me às vezes por favor e eu compreendo, não vou conseguir chegar a lado nenhum sozinha, mas posso partilhar porque talvez, quem sabe? Portanto, nesse sentido, é um peso. A mim não me pesa nada, mas acredito que não tem de ser assim, não se tem de exigir a quem seja, olhe você tem cinco milhões de seguidores, por favor, vá falar desta causa. Cada um utiliza a rede social ou a sua expressão como quiser. Eu estou aqui pela música, supostamente as pessoas deviam procurar-me por isso.

Os The Gift nos bastidores do Nos Alive 2019
(Foto: DR)

A certa altura, partilhou o seu problema de saúde, a fibromialgia. Isso foi importante? Ou calhou?
Calhou. Veio à baila em notícias: Herman José revela não sei o quê. Que disparate, o Herman José já sabia porque eu já lhe tinha contado, e era uma coisa pública, eu é que nunca fui escarrapachar em lado nenhum. A partir desse momento, é normal que as pessoas comecem a contactar-me mais nesse sentido. A única coisa que posso fazer é mostrar-me solidária porque a fibromialgia é uma doença muito específica, cada pessoa é uma pessoa, não sou médica, não posso aconselhar.

Não tenho a obrigação de andar a promover a luta contra a fibromialgia. Quero que se lembrem de mim pela minha música, não pela minha doença, a doença é um extra que aconteceu. Não gosto que me associem diretamente. Quer ser cara disto? Não, não quero ser a cara de nada porque, para já, não represento as pessoas na sua generalidade. E depois porque é uma responsabilidade que não tenho estrutura psicológica para aguentar. Sei que não conseguiria dedicar-me a seguir esse caminho de vamos lá, vamos à luta. O meu nível de intervenção não é esse, é muito mais passivo.

No Instagram, tanto fala do novo álbum, como faz um vídeo engraçado quando chega à cozinha e sabe que não a arrumou na véspera, como dá mimos ao gato Lúcio que transforma numa estola, como dá os parabéns aos amigos. Qual a relação com as redes sociais?
Damo-nos bem, colaboramos, somos úteis, há interação, porém, não somos irmãos. Foi uma coisa que aconteceu, são os sinais dos tempos, tive de me adaptar. Eu que sou aquela pessoa que não percebe nada de tecnologia, que não acompanha nada, que não consegue, tão-pouco, mudar de canal e tem de pedir ao filho ‘muda aí à mãe que não percebe nada deste comando’. É um instrumento de promoção do trabalho e comecei a aproveitar o Instagram, que é o único sítio onde estou. É uma maneira de descontrair e não levar aquilo muito a sério e fazer questão de dizer que não levo nada daquilo a sério e que também não me levo a mim muito a sério. Pronto. Calma. E divirto-me porque se tenho de usar porque tem de ser, e chegamos a toda a gente por ali, aproveito para me divertir, acho piada fazer uma piadola. Há dias fiz um passatempo e ri-me tanto com as respostas. Pus uma fotografia das modelos da Victoria’s Secret e escrevi: quem me identificar nesta fotografia leva um CD dos Gift. Uma pessoa fez uma montagem comigo lá no meio com a cara de peixeira. Ganhou. Ganhou. E é assim que me vou divertindo.

Recuemos ao passado. Filha única, neta única. Era uma miúda mimada q.b., a menina do papá?
Sim, sempre.

Uma adolescência descontraída ou problemática? Uma miúda rebelde ou tímida?
Fui tudo um pouco. Olhando para trás até foi uma adolescência bastante pacífica naquilo que se pode chamar pacífico para uma miúda que não gostava de estar em casa, não havia noite que passasse em casa. Comecei a trabalhar muito cedo. Aos 16 anos, trabalhava num bar e continuei até estar na faculdade. Sempre gostei de trabalhar e isso dava-me algum dinheiro para as desventuras de uma teenager. Foi uma adolescência relativamente pacífica ainda que estivesse rodeada de gente a beber, entre outras coisas. Apesar de tudo, sempre tive presente minimamente as consequências dos meus atos. E como tinha um medo que me pelava do meu pai, piava fininho.

Fazia parte do grupo das miúdas populares da escola?
Não, nunca. As minhas amigas eram populares, eu andava lá. Diga o que não pertence ao conjunto naquelas análises dos livros de Matemática. Diga o que não está bem no conjunto. Era eu.

Pensava no que queria ser quando fosse grande?
Não tinha nada de concreto. Tinha a Antropologia, tinha a Arqueologia, tinha uma série de coisas acabadas em ia. Tudo a ver com História, tudo a ver com o Egito e com aquele mistério. Lembro-me de estar no 11.º ano e ainda andar bastante desorientada com o que é que ia ser a minha vida, entretanto aparecem os Gift e paro com a Antropologia, as coisas foram acontecendo. Mas, sim, foi um curso de vocação.

No sótão do Miguel, a banda começa a ganhar forma. Como eram os ensaios?
Superdescontraídos, não havia responsabilidade de nada, a única responsabilidade era de fecharmos a porta à chave quando saíssemos. Não tínhamos a responsabilidade de concertos, não tínhamos a responsabilidade de agradar a ninguém, não tínhamos a responsabilidade de vender discos. Acabava por ser um paraíso, estar ali a fazer o que se gostava tranquilamente a olhar para o céu com o mosteiro ali ao lado. Deitávamo-nos na varanda a beber uns sumos de limão horrorosos que o Miguel lá tinha em casa, chamávamos-lhe Aspegic de tão mau que era. Foram tempos muito bons, muito tranquilos.

A estudar em Lisboa, entre Lisboa e Alcobaça, cá e lá, a banda explode, deixou o curso de Antropologia. Foi uma decisão difícil?
Saí apenas pela certeza de que podia voltar quando quisesse. À faculdade posso voltar com 70 anos, à música, se calhar, não. Ainda por cima não estava a perceber muito bem o que era aquilo que estava a correr tão bem, o aquilo que ainda não se percebia o que era.

Os seus pais gostavam de música, ouviam discos em casa, a Sónia fez parte de uma orquestra. Compreenderam a opção?
Ouvia-se música em casa, sempre. E eu tocava flauta na orquestra. Sou flautista. Se tudo corresse bem, a minha vida não tinha sido nada disto. O sonho de ser flautista acabou aí aos 17 quando já era incompatível, a orquestra, os Gift, a faculdade, tudo ao mesmo tempo. Às vezes, olho para trás e penso como é que tinha capacidade para fazer aquilo tudo ao mesmo tempo. Cheguei a ter três empregos de uma vez só e ainda andava na escola.

Três empregos?
Trabalhava num bar à noite, ia para as aulas de manhã, à hora de almoço e durante a tarde abria uma loja de souvenirs, onde aproveitava para estudar porque não vendia grande coisa, tinha um gameboy que o Nuno [Gonçalves, amigo e membro dos The Gift] me emprestou, ao fim de semana ainda servia uns almoços no restaurante de uma amiga. Precisava de me ocupar e precisava de dinheiro. Custava-me que o meu pai, além de me pagar as contas, tivesse de me pagar os sapatos e essas coisas que eu já queria tanto ter. Portanto, fiz-me à vida.

Os The Gift em fevereiro de 2018, na Union Chapel, em Londres, onde promoveram o álbum “Altar”
(Foto: DR)

Andaram à batatada por causa do nome da banda ou foi um processo tranquilo?
O Nuno tinha um nome (não vou dizer o nome porque não há necessidade). E, de repente, arranjei um nome, vi-o numa prateleira de discos, um vinil todo preto que dizia The Gift a branco, um disco de uma banda gótica, Sister Wood. Eu pensei é isto, disse aos meus colegas e foi aceite imediatamente. Foi mais uma batatada interna que tive de arranjar para demover a ideia do outro nome.

Quando percebe a potencialidade da sua voz?
Já tinha percebido que falava alto, desde muito cedo, ainda sem cantar. Havia uma coisa que me incomodava imenso, dizerem-me vinha ali na esquina e já vinha a ouvir a tua voz. Isso dava-me cabo dos nervos. Na adolescência, reuníamo-nos todos para jogar Pictionary, e aquelas coisas que implicam gritar muito, e eu gritava tanto que ninguém mais se ouvia. Proibiram-me de jogar. A Sónia não joga, acabou-se. Também houve uma amiga que me proibiu de empoleirar nos bancos da frente do carro quando vou atrás e de começar a falar para a frente. Também fui proibida. Agora que sabia cantar, ou que teria algum jeito, fomos percebendo todos ao mesmo tempo.

Achava piada quando a sua voz era confundida com a de um homem?
Não achava piada nenhuma, agora acho. Lá está, um assunto em que me consegui resolver. Perturbava-me por nenhum motivo especial, devia ter percebido olha és diferente, isso é bom, é giro, mas não, tinha de vir o Brian Eno para me dizer isso depois de não sei quanto anos. Perturbava-me inclusivamente que olhassem para mim num palco e ficassem na dúvida. Perturbava-me. Depois começou a dar-me gozo e ainda mais gozo que ficassem mais baralhados ainda. Ficava um bocado chateada porque achava que não me estavam a dar valor. Na realidade, era uma maneira de me dizerem que era estranha, era diferente, e que não havia mal nenhum nisso, porém, a comparação não era a mais feliz. Gostava mais quando me diziam a sua voz fez-me lembrar a Grace Jones. Aí, gosto, isso está bem, isso pode ser, é andrógena, é isto, é aquilo, essa pode ser.

Entretanto, concertos por todo o lado, o sucesso, datas lá fora. Como se digere tamanha exposição?
Não tenho problema nenhum com exposição de nada. Não sou a Madonna, ninguém acampa à minha porta, não sou perseguida na rua, não tenho paparazzis na esquina nem nas árvores em frente às minhas janelas, as pessoas que me abordam normalmente são discretas e é para me darem os parabéns que eu aceito sempre. Como tranquilamente nos restaurantes, também se não comesse, paciência, faz parte. Temos de perceber o contrário. Eu se visse a Lady Gaga a jantar num restaurante, sei que não a ia incomodar, e não queria, mas tinha de arranjar maneira de ir falar com ela. Pronto. Percebo que as pessoas nem se lembrem se estão a incomodar, ou não, ficam contentes por te ter ali, e eu entendo, e fico contente também. Cada um gere como entende. A exposição não me chateia nada. Tem sido muito trabalho, hoje [28 de outubro] fazemos 28 anos, e olho para trás e penso já penámos tanto, já fizemos tanto, já aconteceu tanta coisa. Lembro-me de tantas odisseias que tivemos, mesmo no estrangeiro, às vezes, até tinha um bocadinho de pena de nós. Lembro-me frequentemente de estarmos num elevador em Nova Iorque, íamos ter com a nossa agente, estávamos desanimados, já não me lembro com o quê, estávamos a trabalhar tanto e não estávamos a ter as recompensas que desejaríamos, íamos reunir com alguém importante, e eu a ajeitar os colarinhos dos meus colegas, a tirar-lhes o pelo e a caspa dos ombros, a olhar para mim e a pensar lá vamos nós outra vez. Há quantos anos é que nós arranjamos os colarinhos nos elevadores, ainda hoje continua a ser a mesma coisa porque continuamos a ir sozinhos às coisas. O Nuno dizia, há pouco tempo, temos de marcar concertos, eu, se for preciso, visto o meu melhor fato e vou de balcão em balcão marcar um concerto dos Gift. É um bocado anos 1990, um bocado velho da parte dele, mas achei poético ao mesmo tempo. Realmente foi sempre isso que fizemos a vida toda, vestir o fatinho e ir vender a nossa companhia de circo por aí.

Viver da música é ingrato?
Acredito que, financeiramente, para muita gente seja muito bom. Para mim, é porreiro, não é muito bom, nem muito mau. Está bom. Emocionalmente é muito mais complicado quando, às vezes, se está em terra de ninguém, que é o que eu sinto que acontece um bocadinho com os Gift. Ou somos a Madonna e as coisas acontecem como desejamos e é assim porque temos poder para isso, e é tudo ótimo. Ou és tão pequenino, tão pequenino, que és incansável, o sonho move-te mais do tudo. Só que não estamos nem aqui nem ali e, portanto, as coisas, às vezes, são muito complicadas de gerir. Eu e o Fernando [Ribeiro, marido, membro da banda Moonspell], às vezes, brincamos, somos as estrelas do rock pobres porque é muito complicado ser estrela e não ter um star quality à volta que te permite ser uma estrela. A estrela vai à mesma limpar o cocó do gato, estender as peúgas, também vai ao supermercado e também vai visitar a mãe ao lar. Sinto-me, às vezes, em terra de ninguém. Porém, com 28 anos e olhando para trás e com a legião de fãs que temos, tudo o que já passámos, tudo o que aconteceu, todas as intempéries, se formos a ver correu tudo bem, foram tudo problemas de menor porque cá estamos e continuamos com as pessoas que gostam de nós. Já não vamos encher o estádio de Alvalade, mas vamos continuar a ter o nosso público, nos teatros, à nossa imagem, porque é também tempo de dar lugar aos novos. Às vezes penso que é injusto porque somos mais antigos e andarmos a lutar com a novidade é muito complicado. Tenho de trabalhar o triplo para aparecer no jornal comparativamente a uma novidade que não tem de esforçar nada. Os velhinhos acabam por ter de batalhar para terem alguma evidência.

A velhice aqui não é um posto?
Há sempre aquela questão de respeito, mas se um promotor tiver de anunciar um concerto não sei quê ou um concerto da novidade que vem aí, às vezes acontece. Mas não faz mal porque já enchi Coliseus, já enchi o Altice Arena, já fui aos melhores festivais do Mundo, o Brian Eno já cantou comigo em palco, fez-me dois discos. Está bem, foi bom, foi pleno. Tudo tem o seu apogeu, não digo que agora estejamos em queda, não é isso, mas se é para continuar que seja com alguma dignidade e que seja com os pés assentes na terra. Se há coisa que me perturba é ver um artista em fase decadente – eu sei que é por amor e o amor à arte vence tudo – e que não tenha um amigo que lhe diga ‘não faças pá, já chega, a placa já nem sequer cabe na tua boca, os dentes já te estão a sair para a frente, não vás’. Há artistas que conseguem gerir isso melhor do que outros.

O que é estar em palco? Uma emoção, um nervoso miudinho, borboletas na barriga?
É aquela hora e meia de descanso, ao contrário daquilo que as pessoas pensam. Não se pensa em mais nada senão no disco, nas canções, e naquela situação que se cria com o público. É um descarregar de adrenalina. A gente trabalha, é a nossa recompensa ao fim do dia. Há quem coma um chocolate. Eu como um chocolate e dou o concerto.

“Detesto cozinhar, não sei, não gosto. Só tenho cozinha porque veio agarrada com a casa”, conta a vocalista dos The Gift
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Consegue ler o público que tem à frente?
Consigo, claro, até pelo bater de palmas antes de entrar em palco. Normalmente, temos uma introdução, somos muito teatrais, se as pessoas começam logo a bater palmas eu penso isto vai ser extraordinário. Se não, penso hoje vou ter um grande trabalho, isto vai ser complicado, vamos lá a isto. Não me lembro de nenhuma vez que não tenha acabado em bem.

E agora o 10.º álbum, “Coral”, com os Pauliteiros de Miranda, Gaiteiros de Lisboa, um coro clássico de 48 vozes, menos guitarras, menos baterias, menos baixos. Um registo diferente do habitual que nasce de alguma insatisfação enquanto músicos?
Senti-me sempre super insatisfeita e o Nuno também, mas isso é normal. Quando as pessoas estão a ouvir o disco pela primeira vez, já nós estamos a pensar no próximo. Já aconteceu tanto, já fizemos tanto, aquilo já está nas nossas mãos há tanto tempo, quando vem para fora é o fogo de artifício, e já estou a pensar na próxima feira. Há sempre aquela insatisfação, há o trabalho cumprido, e depois é um contentamento descontente que provoca essa insatisfação. Não sei se lhe possa chamar insatisfação, mas é uma ansiedade. E a ansiedade não dá grande satisfação.

A sua voz com outras vozes. O seu tom está mais cru, mais despido, mais intenso?
Não fazia sentido que fosse de outra maneira. Para já, é um disco maioritariamente cantado em português. Quando comecei a fazer pop nos anos 1990, as minhas influências cantavam em inglês, não ouvia a pop cantada em português – havia a Sétima Legião, os Heróis do Mar, os Ban, os GNR, os Madredeus, chega, para mim, estava bom. Comecei a fazer música por causa de uma banda inglesa, portanto, é natural que remeta a minha música para o inglês e do inglês vêm outras coisas inerentes, a eletrónica, a experimentação, os efeitos da voz. Mas em português isto não me fazia sentido absolutamente nenhum. Numa altura em que quisemos resgatar um bocadinho dessas influências, não fazia sentido que a voz estivesse tão amolecida. Queria que fosse uma coisa mais crua, precisamente, mais dura até, não tão macia, mas que também faz parte de sermos portugueses – a nossa língua não é nada macia, é dura, é áspera, ao contrário da nossa língua falada pelos brasileiros que a cantam tão bem. Mas foi precisamente essa aspereza que eu e o Nuno achámos piada e é um disco onde a eletrónica é muito pontual, que está ali para abrilhantar as vozes e não o contrário. A ideia era deixar as coisas o mais cruas possíveis.

E construíram um objeto de arte, um disco-livro.
Para nós, é uma obra de arte, para as pessoas, não sei se o entenderão assim. Ainda por cima porque somos os miúdos das cassetes, e dos CD e dos booklets, de ler as letras. Para nós, é importante ter alguma coisa física que possa acompanhar o som. A letrazinha, uma fotografia da banda, porque é isso que espero das bandas que gosto, portanto, é isso que também gostamos de oferecer. Nesse sentido, é uma obra. Até porque acho que as plataformas digitais são tudo menos poéticas. É o que é. Eu ouço música no Spotify porque tem de ser, porque é assim mesmo, mas compro sempre os discos das minhas bandas de eleição.

A banda tem uma aplicação, a Rev, onde cabe tudo, o disco, um documentário, programas de TV e rádio, conteúdos nunca antes vistos, concertos exclusivos. Toda uma adaptação às novas tecnologias?
E finalmente entender que isto não é um bicho de sete cabeças e que os sinais dos tempos não são nossos inimigos, são nossos aliados. Portanto, tudo o que se passa com esta era digital, temos de agradecer porque chegamos a muito mais pessoas de uma forma muito mais fácil, podemos ter contacto diário com os nossos fãs que estão do outro lado do mundo. Nesse sentido, é uma aliada e foi um bocadinho a pensar nisso que fizemos a nossa aplicação. Além de querermos compilar o nosso trabalho, achámos que era uma maneira de criar uma proximidade ainda maior com as pessoas que nos apoiam há tanto tempo. É por isso que lhes damos o disco em primeira mão, os concertos em primeira mão.

Tem dois programas nessa aplicação. O que acontece por lá?
O Driving You Slow é um programa de entrevistas que eu, pretensiosamente, achei que conseguiria conduzir uma entrevista com três ou quatro perguntas e depois a gente conversa. Claro que não, aquilo é uma crise de nervos que não se aguenta. Depois tenho outro que me dá um prazer diferente, Na Pele De, em que faço videoclipes em casa, num quarto, fiz um palco com umas luzes à moda antiga, à David Lynch, estava para aí virada, com um veludo vermelho. O que é que faço? Faço uma adaptação de uma canção do David Bowie, por exemplo, canto e faço um videoclipe e vou visitando coisas engraçadas. Deu-me alguma liberdade para começar a experimentar outras coisas, tipo sou muito boa na realização, sou muito boa no argumento, sou muito boa a fazer luzes, e então tem-me dado um gozo imenso fazer tudo, andar ali a acertar os holofotes, meter um trambolho de um manequim.

Nas críticas, consegue ler nas entrelinhas o que é construtivo e o que é demolidor?
Não leio, nem uma, nem outra.

Marisa Liz fez-lhe rasgados elogios no The Voice e fez saber que não desiste de um dueto consigo. O que se passa?
Somos amigas há tantos anos e só por isso é que diz isso na televisão. Já lhe disse: ‘não canto contigo porque não canto com ninguém’.

É a voz dos The Gift e ponto final?
Sou a voz dos Gift. Dei uma abébia ao Rodrigo Leão porque ele é um rapazinho que tem muito jeito para a música.

A questão está resolvida?
Está. Ela sabe, noutro dia, falámos e ela sabe que sou assim como sei que ela é assim e que qualquer dia lhe saía aquilo na televisão. E saiu.

Em Loures, em 2006, nos bastidores do concerto que resultaria no CD/DVD “Fácil de entender”
(Foto: DR)

Alguma vez lhe fizeram um convite indecente? Fazer parte de um partido político? Dar a voz a uma marca manhosa?
Já me convidaram para ser mandatária, nem me lembro do partido, por Leiria – nem que fosse o partido de Deus nosso senhor. Publicidade manhosa? Não. Venham aqui cantar à festa da secundária, umas mais graves do que outras. Ou quanto é que custam os Gift? Custam X. E só com a rapariga? Esta já foi há uns anos.

Tem um filho de dez anos. A maternidade amoleceu-lhe o coração? Ficou mais lamechas?
Fiquei igualmente lamechas, sou bastante lamechas, o que me deixou mais lamechas foi a minha fibromialgia rebentar depois da gravidez.

Estava grávida e andava por todo o lado.
Fiz turné grávida, fiz turné a dar de mamar. Fui ao Brasil, fui à América, sei lá onde fui, fiz uma turné em Espanha com o Fausto dentro da barriga, estava a ver quando é que explodia.

Ser mãe deu-lhe mais medo ou mais coragem?
Medos, sim, na medida em que agora tenho um pequeno ser pelo qual tenho toda a responsabilidade do Mundo, e educar é muito complicado. Hoje em dia, já digo que não quero educar o meu filho para ser doutor, quero educar o meu filho para que seja um tipo decente e que tenha valores. Mais coragem no sentido em que agora tens este brinde e vais tê-lo para o resto da vida. É um ato de coragem saber que vais ter de ser responsável e que tens de ter amor firme de dizer-lhe que não, mesmo que isso me esteja a consumir. Aturar um miúdo de dez anos com os seus caprichos de um miúdo de classe média é um ato de coragem.

Nunca fui muito corajosa no sentido em que não gosto muito de arriscar, quando me veem com o cabelo cor-de-rosa, ah, você é tão arriscada, não sou nada, é só um cabelo cor-de-rosa. Para dar um passo em frente, tenho de perceber muito bem que aquele chão não se vai mover.

Viver com um músico estimula a criatividade artística?
Nem eu estimulo a criatividade artística do Fernando, nem ele a minha. Temos mundos completamente diferentes, encontramo-nos em vários pontos, como é evidente, e normalmente o que falamos de música tem a ver diretamente com trabalho. A música, para nós, em casa, é já só trabalho.

E como foi a pandemia?
Foi estranha, foi ambígua. Se, por um lado, para mim, estava a acabar o Mundo porque não sabia o que é que era quando começou tudo e, ainda por cima, sou ultra fatalista, por outro, andar de pijama dois anos… confesso que não desgostei, se não fosse, entretanto, não ter o que pôr dentro do frigorífico. Quando digo pijama também é um pijama mental porque a pessoa, de repente, tenta encontrar um conforto em tempos estranhos nalguma coisa. Quando recomeçaram os concertos, que estava desejosa que acontecessem, a crise foi terrível, começou-me a custar ir, comecei até a ganhar fobia de sair à rua e ter de enfrentar pessoas. Foi tudo estranho. Era um contentamento descontente, era um conforto que não era confortável. Fiquei muito pior da cabeça, fritei muito mais neurónios durante a pandemia, ganhei 15 quilos, fiquei chateada comigo, depois deixei de ficar, fiquei outra vez, depois veio outra pandemia. Então, está bem, vou engordar mais 15, quero lá saber, entretanto o Mundo acaba com um apocalipse zombie.

Nesse tempo, começam a construir o “Coral”.
A Rev, no primeiro tempo, vem-nos salvar a vida, vem-me salvar a cabeça, sobretudo. E depois, já com a Rev em andamento, é quando se começa a pensar no Coral. Fez-se luz, deixa-me cá começar a viver outra vez que tenho estado só a existir.

Vê televisão?
Não, nada, nem sequer sei ligar a televisão. Tenho um comando que é uma coisa como os telemóveis que se tem de fazer assim com o dedo. Não tenho sensibilidade para aquilo, não me peçam que com o meu dedo gigante consiga. Não consigo. Só vejo coisas no computador, séries e pouco mais.

Passa então ao lado da avalanche noticiosa?
O meu marido não passa, portanto, vai-me informando do que acha que eu tenho de saber ou do que posso ou não saber porque há coisas que eu não posso saber.

Também já fez saber que não é uma fada do lar…
Detesto cozinhar, não sei, não gosto. Só tenho cozinha porque veio agarrada com a casa. Não tenho jeito nenhum. Sou uma excelente jardineira no meu quarto andar, sou boa, cuido delas, falo com elas – eu sei que é ridículo, mas dá um resultadão melhor do que o substral. Carinho e substral.

Tem fé na Humanidade?
Nenhuma. Na Humanidade? Nenhuma. Vamos ficando cada vez mais expeditos, mais espertos, mais inteligentes, estamos sempre a evoluir, achei que a consciência ia ser uma coisa mais implícita e vejo que é precisamente o contrário. Eu sei que não sou um velho do Restelo, mas vejo a Humanidade a caminhar para sítios que nunca pensei. E se me perguntam, hoje em dia, se sou livre, não sei. Sou? Sentia-me muito mais livre nos anos 1990 do que me sinto agora. Fé na Humanidade com as atrocidades que tenho visto a acontecer? Nenhuma. Tenho fé nalgumas pessoas que vão tentando fazer as coisas melhores e melhor a quem está ao lado delas. Mas na Humanidade, em geral, não, porque tenho a sensação de que os maus, em quantidade, são mais do que os bons. Mas isto sou eu que sou uma pessimista.

Em Espanha, em 2004, durante a turné AM-FM
(Foto: DR)

Se pudesse cristalizar um momento da sua carreira, qual seria?
O Brian Eno foi muito importante, foi, bolas. Não é propriamente só um produtor, é o Brian Eno. Cristalizava todas as sessões de estúdio que tive com ele, todas as conversas, aquilo que aprendi, o que me diverti, o que desfrutei. É uma pessoa tão interessante, tão inteligente, que cristalizaria toda a aprendizagem que tive com ele não só na música, na maneira de estar na vida.

E na vida, o que cristalizaria?
Não há necessidade de cristalizar nada, tudo tem o seu tempo. O que foi um momento da minha vida há dez anos, hoje se calhar já não importa da mesma forma. Agora cristalizaria o “Coral” e tudo o que passei no “Coral”, é um disco mesmo importante para mim. E cristalizaria a energia da juventude, isso cristalizaria.