Ser antissocial, viver sem regras, num mundo à parte

"Uma ausência de empatia ou remorsos, acompanhado de comportamentos sedutores e manipuladores", relata Catarina Lucas, psicóloga e psicoterapeuta

É uma perturbação de personalidade, não é uma forma de vida, nem tem nada a ver com a timidez. É falta de empatia, é desrespeito pelos outros, é não cumprir normas sociais, é impulsividade. Diagnosticar é difícil. Mudar ainda mais.

Um homem ou uma mulher, na casa dos 30 anos, vidas instáveis, mudam de casa constantemente, nunca estão bem, saltam de emprego como quem muda de roupa, não são capazes de estabelecer relações afetivas e sociais, de amor, de família, de amizade. Com frequência, não reagem bem ao que lhes é negado, muitas vezes são impulsivos e até agressivos porque não se importam com as regras sociais, raramente sentem remorsos dessa inabilidade de viver em comunidade. E depois avaliam erradamente as consequências dos seus comportamentos nos outros, na sociedade. Tudo tem de ser à sua imagem e medida.

É como se o Mundo não funcionasse da mesma maneira para todos. Há um mundo dentro da cabeça de um antissocial que só ele entende, que só ele vê, que só ele sente. Os outros estão errados. Não há empatia, não há respeito, não há regras, não há relações interpessoais. Há impulsividade por dentro e por fora. O que é ser antissocial? Um transtorno? Uma forma de vida?

Ser antissocial significa ser portador de uma perturbação da personalidade, ou seja, um conjunto de traços mais ou menos estáveis ao longo da vida que causam disfuncionalidade e sofrimento ao próprio ou aos outros. Estima-se que um a dois por cento da população mundial tem esta perturbação, vulgarmente conhecida por sociopatia. Não é uma condição ligeira, é uma situação séria, grave, que perdura ao longo da vida. “A perturbação de personalidade antissocial é uma condição que se caracteriza por um padrão consistente de desrespeito pelos outros, dificuldade no estabelecimento de ligações empáticas, incapacidade na manutenção de relações interpessoais e tendência para comportamentos impulsivos e/ou agressivos”, adianta Pedro Morgado, médico psiquiatra, professor de Psiquiatria e Neuroanatomia na Escola de Medicina da Universidade do Minho, investigador do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da mesma universidade.

Ser antissocial não é, de forma alguma, um estilo de vida. É preciso escavar mais fundo para ver para lá do que a aparência ora mostra, ora esconde. Ser antissocial não significa necessariamente inaptidão total de viver em sociedade ou capacidades sociais deficitárias. Há casos de manipulação, de sedução, de encaixe social em que parece que tudo está bem ou normal. Mas não está. Casos menos evidentes, mais dissimulados. Mais abaixo do radar.

Catarina Lucas, psicóloga e psicoterapeuta, fala de “uma ausência de empatia ou remorsos, acompanhado de comportamentos sedutores e manipuladores”. É um problema que interfere significativamente nas horas e nos dias. “Quanto mais intenso, mais disfuncional e maior interferência na vida da pessoa”, sublinha.

Dificuldade de cumprir as normas sociais formais e informais, desrespeito pelos direitos dos outros, inaptidão para relações interpessoais. Está descrito e tudo tem as suas consequências. Porque há, sobretudo, transgressão que pode afetar quem está ao redor. Sabe-se que os antissociais têm imensa dificuldade em estabelecer ligações afetivas profundas e estáveis com os outros. E isso é grave. O autocentramento e não perceber a perspetiva do do outro, a ausência de culpa ou a necessidade de satisfação pessoal são formas violentas de estar na vida que têm sérias repercussões. Há histórias ligadas a atividades ilegais, roubos, destruição de bens, outros crimes, mas ser antissocial, um sociopata, não implica ser obrigatoriamente um criminoso.

Miguel Ricou, psicólogo clínico, professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, presidente do conselho de especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, garante que não é fácil identificar o problema. “São diagnósticos estáveis ao longo do tempo, difíceis de alterar. Normalmente começam cedo na vida, habitualmente na adolescência, e mantêm-se pela idade adulta”, sustenta. “Estas pessoas são rejeitadas, afastam-se, deixam de comunicar.”

As causas e as consequências

Os sinais estão identificados. Transgressão das normas e leis, desconsideração pelos outros, manipulação, inabilidade para relações interpessoais, necessidade de satisfação pessoal imediata, impulsividade, tendência para a violência, ausência de sentimentos de culpa. Os antissociais não se encaixam no modelo social. E o impacto nos outros pode ser doloroso, grave, no limite, colocar vidas em risco – no caso de sociopatas e homicidas.

As questões que envolvem a personalidade não têm apenas uma camada. São complexas, não há uma única razão para explicar tudo o que acontece e têm diferentes níveis de gravidade. Pedro Morgado olha para as origens que podem explicar esse ser antissocial. “A evidência demonstra que as causas são multifatoriais. Existe uma componente genética e hereditária no estabelecimento desta condição, mas também uma influência significativa de fatores ambientais, incluindo as experiências precoces, os modelos parentais e a exposição a situações particularmente traumáticas durante a infância e adolescência.” Não há apenas uma causa, há várias.

Os antissociais sofrem. “Sofrem com as consequências, são muito marginalizados pelos outros, precisam de ajuda e têm ajuda, intervenção psicológica, psicoterapêutica, psiquiátrica”, realça Miguel Ricou, admitindo que “os processos de intervenção não são fáceis”. A privação de experiências sociais, as poucas estratégias de funcionamento social, o isolamento, o alheamento, a dificuldade de perceber as suas emoções e as dos outros, e os conflitos que advêm de tudo isso, são complicados de digerir, de ultrapassar. “Sentem-se sozinhos no Mundo.”

Sofrem e fazem sofrer. Os antissociais dissimulados vestem a pele de seres aparentemente adaptados. Em todos os casos, os problemas não se resolvem ao apontar-lhes o dedo, isolá-los ou condená-los. Para Pedro Morgado, “é importante considerar as suas perspetivas e providenciar-lhes o apoio clínico necessário para que melhor possam compreender a gerir a sua situação”.

E o contexto pandémico pesou nos dias destas pessoas? Que efeitos teve em quem é antissocial? “A pandemia agravou uma tendência que já se fazia sentir, nomeadamente a tendência ao isolamento e ao fechar na bolha de cada um. As pessoas interagem menos, têm menos tempos para socializar e acabam por se fechar na sua concha”, responde Catarina Lucas. A humanidade foi obrigada a isolar-se, os contactos sociais ficaram suspensos. O que, defende a psicoterapeuta, “gerou um desabituar do convívio e interação social”.

Ansiedade social é outra coisa

A perturbação antissocial da personalidade e a perturbação de ansiedade social, a chamada fobia social, são condições totalmente distintas. Pedro Morgado separa as águas. “A fobia social é uma doença em que existe um medo acentuado e persistente de situações sociais onde exista exposição a pessoas estranhas ou ao possível escrutínio por outras pessoas”, explica. “A pessoa teme agir de um modo (ou mostrar sintomas de ansiedade) que lhe seja humilhante e embaraçoso e, por isso, experiencia níveis de ansiedade muito significativos”, refere o psiquiatra. Outra coisa é ser antissocial.

Há vários níveis de intensidade e gravidade em ambas, quanto mais intenso maior é a interferência na vida das pessoas. Tanto uma como outra merecem toda a atenção, ambas podem ser graves. “A ansiedade social porque limita o dia a dia da pessoa, impede de ter relacionamentos interpessoais, gera ansiedade e até evitamento de situações sociais”, diz Catarina Lucas.

No caso da personalidade antissocial, é grave porque, repara a psicoterapeuta, “existe uma diminuição da capacidade de sentir afeto ou empatia, o que pode gerar situações graves na relação com os outros. Esta é uma condição muito comum em casos graves de homicídio ou atentado à integridade física de outras pessoas.” A história de uma pessoa tem uma forte relação com o desenvolvimento de uma fobia social e, segundo Catarina Lucas, poderá haver alguma ligação a passados de bullying ou de sobreproteção parental.

Miguel Ricou destaca a questão da ansiedade na fobia social. “O grande problema é que as pessoas respondem à ansiedade e sentem vergonha de o fazer em situações sociais. Daí a sensação de incapacidade nas coisas que possam fazer.” É uma situação desconfortável, desagradável, de fuga. O receio de exposição em público, de interagir com os outros, porque tudo provoca ansiedade.

Há nervosismo por causa do medo, o receio de fazer alguma coisa embaraçosa ou ridícula. O medo de causar má impressão que leva a evitar certos contextos sociais ou a recusar convites. Cristiana Pereira, psicóloga clínica na Oficina de Psicologia, vinca que cada caso é um caso. “A intensidade da ansiedade social e a extensão das situações sociais temidas variam de pessoa para pessoa. Por exemplo, algumas pessoas sentem algum receio com o que lidam razoavelmente bem, enquanto outras se sentem completamente esmagadas pela intensidade do seu receio. Para algumas pessoas, o receio encontra-se limitado a uma única situação social (por exemplo, falar em público), enquanto, para outras, a ansiedade social surge em quase todas as situações sociais.” Pode, porém, haver variações. “Os sintomas da perturbação da ansiedade social podem mudar ao longo do tempo, podendo surgir se uma pessoa estiver a enfrentar muitas mudanças, stress ou exigências na sua vida”, considera a psicóloga clínica.

O histórico familiar, a estrutura do cérebro, o meio ambiente, podem ajudar a explicar a ansiedade social que, para Cristiana Pereira, “está relacionada com diversos fatores que poderão incluir estilos e traços de personalidade, por exemplo, introversão, timidez e perfeccionismo”.

A pandemia veio dar mais atenção à saúde mental, ao bem-estar psicológico, fala-se mais destes assuntos, as pessoas pedem e procuram ajuda com mais facilidade. Miguel Ricou reconhece essa mudança. E, de alguma forma, o isolamento imposto protegeu quem sofre de ansiedade social, dos que se afastam porque se sentem incapazes e não querem fazer má figura, dos que sentem o coração a saltar do peito, a cara vermelha, os tremores, a voz a gaguejar. A socialização aconteceu de outras formas, à distância, sobretudo. “Ficámos todos atrás de um ecrã, onde as pessoas se sentem mais seguras. E as redes sociais são um refúgio bastante bom para estas pessoas.” Voltar a normalidade pode ser doloroso para quem já tinha essas dificuldades. “É evidente que estes casos de ansiedade social têm tendência a agravar-se quando se volta a uma vida real”, observa Miguel Ricou. Haverá um antes e um depois da pandemia.