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Se não pagou, não leia. É crime

Fotos: AdobeStock

As queixas da Imprensa ressoam noutros setores de atividade

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Jornais e revistas partilhados diariamente entre dezenas de milhares de pessoas, livros inteiros ao dispor através de meia dúzia de cliques, filmes e séries amplamente acessíveis a troco de nada (por vezes ainda antes da estreia oficial), milhares de canais disponíveis por poucos euros. A pirataria está longe de ser um crime sem vítimas.

A atividade arranca ainda de madrugada. Pouco depois das cinco da manhã, os primeiros jornais começam a ser partilhados. Em regra, antes das nove, já lá pára tudo o que é diário de âmbito nacional, desportivos incluídos. Mas também lá se encontram revistas. E jornais regionais. Internacionais também. De Moçambique e da Venezuela, por exemplo. Estima-se que, entre os vários grupos dedicados à imprensa escrita, o número de publicações partilhadas diariamente ronde as 90.

Um sem-fim de material perversamente colocado ao dispor de mais de 50 mil pessoas que integram o mais popular dos grupos de partilha ilegal de jornais e revistas no Telegram, aplicação de envio de mensagens instantâneas e partilha de ficheiros que se destaca pelo elevado nível de encriptação e segurança.

Entre os utilizadores deste e doutros grupos de partilha ilegal de publicações impressas, algumas figuras conhecidas da nossa praça (lá iremos). Para ler, basta descarregar. O esquema é de tal forma “profissional” que até já foi criado um grupo de backup, para que caso o grupo original seja encerrado os ficheiros não se percam.

Depois, são os caminhos que se abrem a partir dali. Porque não faltam casos em que os usurpadores, depois de obterem os PDFs via Telegram, os partilham através de outras aplicações. E assim se vai lesando diariamente todo um setor que já de si enfrenta dificuldades acrescidas a cada ano que passa.

Segundo estimativa da Visapress, entidade responsável pela gestão coletiva dos direitos de autor imanentes dos jornais, revistas e jornalistas, o impacto potencial destas partilhas ilegais nas vendas em banca excede os 40 milhões de euros anuais.

Mas os efeitos nocivos do Telegram estão longe de se cingir ao setor da imprensa escrita. Porque tal como existem grupos dedicados à partilha ilegal de jornais e revistas, também os há dedicados aos livros. Ou à música. Ou mesmo aos filmes e às séries. E para ter acesso a tudo isso, só há que entrar no grupo ou canal certo.

É aqui que reside o maior perigo. Porque, com todas estas facilidades, o acesso a ficheiros partilhados ilegalmente deixa de estar vedado aos ases da tecnologia. “É como um canivete suíço, está tudo ali à mão, com ferramentas que podem ser usadas de forma muito simples”, resume Carlos Eugénio, diretor executivo da Visapress, que não acredita que quem pertence a estes grupos o faça por desconhecimento ou ingenuidade.

“Estes utilizadores não são completamente desinformados. Acho que há a ideia de que a culpa não é deles, ‘os ricos que paguem a crise’. A questão é que a Imprensa não é rica, nunca foi. Nem são mecenas.” Pelo que a partilha ilegal de publicações tem um impacto dramático, no meio e fora dele. Porque menos receitas traduzem-se em menos recursos, materiais e humanos, o que por sua vez se traduz em menos escrutínio. E isso impacta toda a população.

“Se os jornais não têm meios, se há notícias falsas porque não há recursos nem tempo, no final do dia é toda a comunidade que sai prejudicada. Estamos a travar uma luta constante para manter o ecossistema democrático vivo e saudável, mas está a ficar cada vez mais empobrecido.”

A angústia é partilhada por outros setores, dos livros à música, passando pelo audiovisual. Por isso, há pouco mais de um ano, Visapress e GEDIPE – Associação para a Gestão de Direitos de Autor, Produtores e Editores juntaram-se para pedir ao Tribunal da Propriedade Intelectual uma providência cautelar destinada a encerrar à força uns quantos grupos do Telegram.

A decisão, favorável, foi proferida em novembro do ano passado, com ordem para bloquear 17 grupos e canais de partilha ilegal de jornais, revistas e filmes que, em conjunto, têm mais de dez milhões de utilizadores. No entanto, a vitória não foi tão contundente quanto possa parecer. Quase dois meses depois, a decisão ainda não teve quaisquer efeitos práticos, visto que a tentativa de notificar o Telegram bateu no poste.

“A morada que está disponível é nos Emirados Árabes Unidos e quando se foi lá bater à porta percebeu-se que é só uma caixa de correio. Tem sido difícil porque eles não respeitam nada nem ninguém.”

Seja como for, Carlos Eugénio não tem dúvidas de que, nesta luta, o modus operandi tem de passar cada vez mais pelas ações de repressão. “Primeiro tentámos as ações de informação, mas não estavam a resultar. Os leitores simplesmente ignoraram. Durante o confinamento, ainda podia perceber alguma bondade cristã de partilhar publicações. A partir daí, deixou de fazer sentido de vez. Mas criou-se uma espécie de bola de neve.”

Até porque, e uma das grandes dificuldades passa precisamente por aí, há uma questão cultural na génese de tudo isto: a ideia de que se pode aceder a jornais, revistas, livros, música, filmes, entre outros, sem pagar e sem que isso constitua sequer um problema moral.

Rui Moura, diretor-geral da VASP (empresa de distribuição de publicações) e antigo comandante operacional da GNR, tem constatado isso mesmo, desde que decidiu embrenhar-se nesta questão. Regressa aos grupos do Telegram e a algumas figuras influentes que por lá andam para reforçar a tese. Advogados de renome, empresários de alto gabarito, clínicos afamados, padres, gente que teve ou tem cargos estatais.

“Esta ousadia denuncia um quadro de valores morais reprovável e uma enorme falta de ética na utilização da informação, já para não falar da evidente afronta aos instrumentos de defesa dos direitos de autor. Ao adotarem estas práticas de pirataria, enquanto figuras públicas, são igualmente irresponsáveis, colocando em causa o equilíbrio de todo um setor.”

Muitos surgem com o número de telefone pessoal (por vezes até com foto). É o caso de Luís Botelho Miguel, diretor nacional do SEF, por exemplo. Ou do ex-espião Jorge Silva Carvalho. Ou do ex-ministro António Martins da Cruz. Ou do jornalista e professor universitário Camilo Lourenço. A “Notícias Magazine” seguiu o rasto dos contactos visíveis na aplicação, para perguntar às pessoas referidas o porquê de estarem em tais grupos.

Mas Luís Botelho Miguel remeteu para a assessoria de imprensa do SEF, que não respondeu em tempo útil. E Jorge Silva Carvalho recusou comentar. Já António Martins da Cruz assegurou que não sabia sequer que fazia parte desses grupos. “Se lá estou é porque alguém me meteu lá, porque eu nem uso o Telegram.” No entanto, confirmou a “Notícias Magazine”, no dia em que foi contactado tinha estado online. No seguinte também. Quanto a Camilo Lourenço, esclareceu que entrou para estes grupos numa espécie de missão de vigilância, quando teve conhecimento de que estavam a ser partilhados ilegalmente conteúdos com a sua assinatura.

E não, o problema não começa e acaba no Telegram. Longe disso. Rui Moura aponta também o abuso de conteúdos através das grandes plataformas como o Google e o Facebook, “que desviam o investimento em publicidade, utilizando os conteúdos de outrem sem pagar”, e a pirataria particular entre amigos, que banaliza a distribuição de PDFs.

Depois, ainda há a questão da falta de licenciamento das empresas que recorrem aos serviços de clipping. Uma pecha que se faz sentir até nos órgãos do Estado, “que utilizam e difundem internamente os conteúdos obtidos por clipping, pagando o serviço, mas não os direitos de autor devidos, pois na generalidade não têm licenças de clipping secundário”, salienta Rui Moura.

Carlos Eugénio reconhece que tem sido feito um trabalho no sentido de “catequizar para essa necessidade” e expõe as luzes e sombras da questão. “Neste momento, a Assembleia da República já tem licença secundária, a presidência do Conselho de Ministros também, o presidente da República. É certo que há muitos órgãos do Estado que ainda não têm, mas creio que este ano vamos dar um salto significativo nessa matéria. Já em relação aos partidos, posso-lhe dizer que não temos um único partido licenciado.”

Prejuízos colossais

As queixas da Imprensa ressoam noutros setores de atividade. Nos livros, por exemplo. Um estudo da APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, feito em 2012, apontava para perdas totais (em todo o setor de edição e livrarias) superiores a 115 milhões de euros anuais. Desde então, não há novos números, mas Pedro Sobral, presidente da APEL, não tem dúvidas de que o impacto da pirataria é “tremendo”.

“Por três razões, sobretudo. Por um lado, o pouco incentivo moral em relação à questão dos direitos de autor. A reprodução é considerada banal e não há a noção de um custo moral. As plataformas de streaming por subscrição têm ajudado a criar alguma noção de que é preciso pagar, mas não é suficiente. Por outro lado, a cultura do incentivo à fotocópia, muito promovida até pelas universidades, que evoluiu para a digitalização de PDFs. E depois a ausência de um enquadramento legal mais punitivo sobre as fontes de pirataria. Além de que muita da pirataria não é residente em Portugal, o que cria um problema acrescido.”

De resto, nem os artigos científicos escapam. Há inclusive um famoso site de pirataria nessa área que se orgulha disponibilizar quase 90 milhões de artigos científicos de todo o Mundo a custo zero.

Os prejuízos adensam-se ainda mais se nos focarmos no setor do audiovisual. Segundo estimativa da FEVIP – Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais, as não vendas potenciais relativas às operadoras de cabo, aos canais por subscrição, às plataformas OTT (Over-the-Top) como a Netflix e a HBO e aos cinemas ultrapassam os 200 milhões de euros anuais. “E é uma estimativa por baixo”, ressalva Paulo Santos, diretor-geral da FEVIP. O também diretor-geral da GEDIPE – Associação para a Gestão de Direitos de Autor explica o que está em causa.

“Um dos grandes desafios para o setor do audiovisual, para além da pirataria de streaming, que é um problema imenso e de difícil controlo, prende-se com as IPTVs [ofertas de serviços agregados de emissões de televisão pirateados], que, por 5 ou 10 euros, oferecem acesso a dois mil, três mil canais e a videoclubes virtuais, e com isso tiram público aos cinemas, clientes às operadoras de cabo, publicidade às televisões, assinantes às plataformas OTT e aos aos canais que transmitem jogos de futebol. E depois é uma pescadinha de rabo na boca. A capacidade de investimento diminui, a programação também e por consequência os assinantes.”

E o ciclo pernicioso repete-se indefinidamente. Paulo Santos, que fez parte da carreira na Polícia Judiciária, não se conforma: “É um fraco sentido ético e de responsabilidade social para com o tecido social envolvido no ecossistema do audiovisual, que é responsável por 3% do PIB nacional e representa dezenas de milhares de postos de trabalho.” É que ao contrário de uma ideia que se foi fazendo comum, a pirataria não é um crime sem vítimas.

O cenário é igualmente arrasador na indústria musical. Miguel Carretas, diretor-geral da Audiogest, puxa a fita atrás para explicar um contexto pouco simpático. “Com o início da Internet, de uma forma geral, os serviços ilegais [de partilha de música] implementaram-se a uma velocidade bem superior aos serviços legais. A indústria musical entra no milénio num ciclo de decréscimo acentuado de receitas, em Portugal e no Mundo, e a grande explicação para esse decréscimo não foi a redução do consumo de música, de todo, porque nunca se consumiu tanto. Teve que ver precisamente com o consumo ilegal de música.”

Um precedente altamente ingrato, destaca. “Quando os serviços legais chegam, já havia a ideia de que o acesso deveria ser gratuito. Há uma geração para quem a música é tão importante como o ar que se respira, mas é a mesma geração que entende que se deve pagar pela música o mesmo que se paga pelo ar: nada.”

E se é verdade que cada vez mais pessoas vão aderindo aos serviços legais de streaming, há uma certa mentalidade que continua bem viva. Prova disso, realça Miguel Carretas, é que o serviço gratuito do Spotify continua a ser o mais utilizado em Portugal. “A primeira coisa que a pirataria nos fez foi esta alteração de paradigma e mentalidade e isso é o mais difícil de combater.”

Depois, há problemas adicionais. Como os serviços de streaming ilegais. “Plataformas que constituem verdadeiras jukeboxes de música que disponibilizam ao público.” Ou os cyberlockers. Que “no fundo são arquivos digitais colocados em servidores seguros, a que as pessoas podem aceder para descarregar os ficheiros.” E depois ainda há a questão das plataformas onde se vai partilhando música livremente. Casos do YouTube (não confundir com o serviço de YouTube Music), do Facebook, do TikTok.

“Até aqui invocavam o conceito de ‘safe harbor’. Ou seja, assumiam-se como serviços neutros, invocando que não eram responsáveis pelo que lá se partilhava. Mas essas plataformas ganham dinheiro com o conteúdo que lá é partilhado. O YouTube, por exemplo, continua a ser a maior plataforma de partilha de música mundial e não está sujeito a licenciamento. A diretiva europeia dos direitos de autor no mercado único digital vem pôr fim a isso.”

Avanços e impasses

Em causa está a célebre Diretiva do Direito de Autor, uma das iniciativas legislativas europeias mais polémicas dos últimos anos. O Artigo 13, os apelos à revolução, a confusão instalada no mundo cibernético e até um famoso youtuber português (Wuant) a anunciar de forma trágica o fim da Internet, recorda-se? Teve tudo que ver com isto. E, independentemente de toda a polémica que o assunto gerou, a diretiva foi mesmo aprovada, em março de 2019.

Na prática, as plataformas passam então a ser responsáveis pelos conteúdos carregados pelos utilizadores, aumentando-se desta forma a pressão para que estas celebrem acordos de concessão de licenças com os titulares de direitos, “que deverão receber uma remuneração adequada pela utilização das suas obras ou outro material protegido”. O senão é que esta diretiva ainda não foi transposta para a legislação portuguesa e que, face à dissolução recente do Parlamento, dificilmente será antes do verão.

Mas este é apenas um dos passos que têm sido dados no sentido de conferir uma maior proteção aos direitos de autor e à propriedade intelectual. Há outros avanços dignos de registo. Já em 2015 foi assinado em Portugal um memorando de entendimento entre os titulares de direitos, os operadores de telecomunicações e a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC) que passou a permitir o bloqueio de sites que disponibilizem conteúdos protegidos por direitos de autor de forma ilegal.

Mais recentemente, foi aprovada a lei n.º 82/2021, que alargou o raio de ação nestes casos: ou seja, os sites piratas passam a poder ser bloqueados tanto por DNS como por IP. “Aquilo que esta lei nos vai trazer é a oportunidade de vermos os nossos direitos efetivados de uma forma real”, entende Carlos Eugénio, da Visapress. A este propósito, Miguel Carretas, da Audiogest, defende mesmo que Portugal tem “um edifício legislativo muito acima da média europeia, o que nos torna num país vanguardista” no que toca ao combate à pirataria.

O que não quer dizer que não haja um trabalho colossal pela frente. Desde logo pela natureza movediça dos piratas, que transformam a luta contra a partilha ilegal de conteúdos num permanente jogo do gato e do rato. Por vezes, fecha-se um site e no dia seguinte está novamente a funcionar, com outro endereço. Depois, porque ter boas leis e aplicá-las em conformidade são coisas distintas.

Manuel Lopes Rocha, jurista que trabalha na área dos direitos de autor e da propriedade intelectual há 40 anos, admite isso mesmo. “É uma área muito complexa. Ou se pratica ou não se sabe. E a aplicação nos tribunais criminais é muito fraca. Por vezes, mesmo no Tribunal da Propriedade Intelectual. Todos os colegas se queixam. O Centro de Estudos Judiciários tem de formar juízes nesta área, que é uma área que vale milhões.”