Valter Hugo Mãe

Rivoli 90


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Se pudesse definir o Rivoli, por mais que seu corpo de palácio antiquasse, haveria de o fazer através da palavra futuro. Ainda hoje, e talvez especialmente hoje, o Rivoli significa que vamos sobreviver, sim.

O teatro de resistência costumava ser na sala da cave, mais pequena, onde se via Beckett ou Genet, as Visões Úteis ou o Bruto, onde se ficava para debater o Mundo, como a memória nazi estava presente na queda do muro, como era a morte no Iraque, o que se dizia do Irão, as Lages, a folia ocidental, a ansiedade por sermos europeus. No Rivoli, durante anos a fio, encontrei a mais franca problematização da cultura e da política, da arte, do papel dos sonhos, dos medos, da esperança, da contingência da portugalidade e da periferia que é o Norte. Como grande sala de todas as expressões, o Rivoli não era apenas o espaço onde entrávamos como público, era sobretudo o acontecimento das ideias. Um intenso confronto com os tempos e sobretudo com a necessidade de haver futuro. Se pudesse definir o Rivoli, por mais que seu corpo de palácio antiquasse, haveria de o fazer através da palavra futuro. Ainda hoje, e talvez especialmente hoje, o Rivoli significa que vamos sobreviver, sim.

As grandes cidades usam seus palácios sem peneiras. Para estarmos sob suas paredes iluminadas, suas colunas robustas, pórticos simbólicos, as esculturas das musas, tantas mulheres nuas a ir ao encontro de antigos tiques machistas e fascínios entesoados, não devemos precisar de roupas de protocolo e menos ainda de pagar fortunas. Os palácios devem abrir aos comuns e na pura normalidade. Com todas as suas especificidades, devem convidar as pessoas para o exercício quotidiano do pensamento e do sonho. E isso tem de ser amplo e livre. Era um jovem, quando pude começar a entrar no Rivoli, depois do comboio de uma hora que me separava do Porto e impunha o complexo de Cinderela: à meia-noite era imperioso voltar, porque senão não havia mais como chegar a casa. E entrava para ouvir falar do que a pressa da sobrevivência parecia fazer calar. Eu queria saber onde estavam inscritos os artistas na confusão até assustadora da realidade.

Lembro de um homem que levantou todas as suas economias e percorreu o país a comprar toda a comida enlatada disponível. Começara a Guerra do Golfo e contavam-se sustos deste tamanho. Íamos para a faculdade para manter o fabrico de qualquer coisa, e íamos ao Rivoli para descobrir passagem. Como fabricar e sobreviver. Tinha de haver mais, muito mais. O nosso tempo não poderia acabar numa guerra que abrisse por toda a Europa, a escalada da merda nazi, o fim dos bons. O nosso tempo tinha de ter solução.

O Rivoli faz 90 anos e é a grande casa da ebulição das artes e do pensamento do Porto. A casa de todos, com suas impurezas e suas falhas, é instrumento fundamental da liberdade das pessoas do Porto. O pior que lhe aconteceu em 90 anos leva o nome de Rui Rio, a doença mais horrenda de que a Cultura do Porto alguma vez padeceu. Hoje, podemos dizer que o Rivoli se curou de um cancro. Está vivo. Vai superar a pandemia e significará o futuro para outros miúdos que, como eu um dia, vivem à míngua de oportunidades. O Rivoli é uma solução. Foi uma solução fundamental na deriva da minha vida. Celebrarei sempre sua alegria, sua vigência, seu brio.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)